Após anos nas letras juvenis, gaúcho volta a se dedicar ao romance para público adulto
Ubiratan Brasil
Por mais que busque o outro, o protagonista de Solidão Continental,
novo romance de João Gilberto Noll, confirma o título e persiste
solitário. Encontros carnais existem, mas a alma continua em busca de um
complemento. A sexualidade em Noll é dolorosa e sem saída. Solidão Continental
marca o retorno do escritor gaúcho ao texto longo dirigido a um público
adulto - nos últimos anos, Noll se dedicou a livros para adolescentes,
escrevendo sobre a fase da existência em que dúvidas profundas convivem
com certezas absolutas. Agora, com o novo romance, retoma temas que lhe
são eternamente caros.
'Gosto de compor cenas imprecisas', diz Noll
"A prática da escrita é que faz construir a minha literatura, as suas
atmosferas, a caminhada meio errante da minha criatura", afirma ele em
entrevista ao Sabático, por e-mail. O romance acompanha os
passos de um homem que, de Chicago a Porto Alegre, cruza o continente em
busca de respostas para suas divagações existenciais. Sobre o assunto,
João Gilberto Noll, 66 anos, respondeu, com o seu apurado estilo, às
perguntas enviadas.
Por que o grande personagem, em Solidão Continental, sempre parece ser o outro?
Se essa impressão ocorre, acho que ela vem do fato de o romance
apresentar um sujeito em constante formação, entre a maturidade e a
velhice, um homem que não se sentirá pronto enquanto não se inserir na
alma do outro ou na própria natureza que o circunda. Pássaros, formigas,
flor, o arrebol por vezes disfarçam a sua incompletude. Durante uma boa
parte do livro, ele tem esses elementos por perto para ignorar
provisoriamente a sua existência parcial. Mas me parece que se encarnar
de fato no outro, como acontece ao final de Lorde, isso não está agora
em pauta, o personagem não tem mais idade para encarar esse romantismo
tão radical.
Como sempre, o senhor faz da solidão uma arte. O que tanto o atrai na solidão?
Acho que os seres que sofrem alguma atração maior pela solidão têm no
seu mundo interior uma inflamação grave. Aqui, o de dentro é mais
dilatado que o de fora. Há casos sem anti-inflamatórios que aliviem. Mas
o protagonista de Solidão Continental sente que desperdiçou
sua vida nessa condição, precisa de um amor, de voltar a ter a
experiência do tato na pele do outro. Bem ao final, nos parágrafos
derradeiros, surge uma promessa e ele se deixa levar por uma coreografia
que o surpreende de fato, mas o cara não suspende o gesto e vai ali e
toca, e já se vê tirando a roupa e a do outro corpo também.
O senhor escreve para celebrar a vida, ainda que seus personagens pareçam viver em completo exílio. Como explica isso?
A cena que acabei de revelar mostra justamente isso. Esse exílio
contém em si, em certos momentos, seus próprios anticorpos. O instinto
de morte, esse estar desaparelhado para a vida prática, ordenadora,
construtiva, pode entrar em colapso e a luz entrar. A carnalidade então
se expõe. É o que acontece com muitos dos meus protagonistas. Tenho
notado ultimamente que a sua essência é a mesma de livro para livro. Não
há continuidade de um romance para outro. As circunstâncias mudam. Mas a
alma desse homem é a mesma a cada ficção. Esse ser geralmente sem nome,
sobretudo em Solidão Continental, se indispõe ferozmente
contra as suas próprias circunstâncias, como se ele tivesse sido jogado
num mundo que nunca pediu. Por isso, por vezes, a sua quase que sanha
paranoide.
Já se disse que o senhor narra como se fosse um geógrafo
perdido num mundo esfumaçado. O senhor acredita que isso se aplica com
mais intensidade a esse novo livro?
Gosto, sim, de compor cenas imprecisas, difusas. É como se fosse uma
reação a um mundo exacerbado de assertivas definidoras e definitivas.
Esse meu personagem é cheio de melindres no contato com as coisas, tem
pouca iniciativa, bebe do outro diria que passivamente, com medo de que,
com um gesto, possa inaugurar uma dimensão emancipatória, dimensão
que... ele retarda... só sabe retardar.
Em alguns momentos, Solidão Continental faz pensar que se trata de um "falso" romance em que se esconde um livro de contos. Concorda?
Acho que não. Trata-se de um livro em capítulos, sendo que os três
primeiros revelam o cara em viagem: Chicago, Madison e Cidade do México.
Os outros pegam esse sujeito que se diz chamar João Bastos numa
emergência hospitalar, pegam o sujeito no seu habitat, Porto Alegre. A
partir da cidade brasileira começa a haver uma progressão mais incisiva,
mesmo que esfumaçada. Ele segue o garoto como um cão segue o dono, ele
se vê entre a vida e a morte, se fere, adquire uma cicatriz profunda na
cabeça. Consegue se evadir do hospital, mas acha que precisa voltar para
o pronto-socorro para não perder o próprio corpo, porque às vezes
acredita que o seu próprio corpo ficou sobre a maca e ele é apenas um
fantasma meio extasiado com o que o constitui. Quer dizer, há uma linha
relativamente clara que percorre o campo do romance quase inteiro,
embora com todas as tortuosidades. Mas a vida é assim, não é?
O senhor já disse que não se considera um autor biografista, mas quais são os limites entre o vivido e o fantasiado?
Esse homem que protagoniza os meus romances eu não o projetei desde o
início da minha atividade literária. Hoje sei que ele está aí e que não
é propriamente o meu eu biográfico, o cidadão João. Não, é diferente:
ele pode até ter vindo da minha natureza, mas é um segundo personagem
que não o da minha cidadania exercida no dia a dia social. Ele habita em
mim, tá certo, eu o abrigo com certo desvelo, ok, mas se eu fosse viver
a sua intensidade e coragem na vida real, eu hoje não passaria de uma
lápide.
A urgência, a asfixia, até o surreal contribuem aqui para sua
literatura do atordoamento. O senhor habitualmente começa a escrever
quando forçado por essas sensações ou acontece o contrário, a escrita é
que proporciona isso?
É a própria prática da escrita que faz construir a minha literatura,
as suas atmosferas, a caminhada meio errante da minha criatura, etc. A
aventura da escrita é que projeta na tela aquilo que ainda não sei
quando sento pra trabalhar. Sim, tenho o personagem - e eu que o coloque
em ação e reflexão como se em improvisos diários. Não, não sou tomado
por atmosferas raras quando sento para escrever. Ao contrário: miro a
tela em estado de vazio para que a presença do personagem possa se
estabelecer.
Concorda com o que afirma Jefferson Agostini Mello na introdução do livro, de que esse é um de seus relatos mais intrincados?
É o enredamento típico da vida. Ninguém consegue viver com a nitidez
de um romance naturalista. Não é um livro doutrinário da causalidade. No
meio da enorme confusão urbana de hoje, quantas vezes não nos indagamos
se já não estamos comprometidos neurologicamente para a cristalina
apreensão dos fatos?
Seu texto novamente é marcado pela coragem, seguindo na
contramão de algumas tentativas no sentido contrário, que buscam uma
certa moralização da literatura. O que pensa disso?
Se existe essa tentativa mais do que em outros tempos eu estou
distraído para percebê-la. Eu sigo tentando cumprir as minhas pulsões
mais atávicas em dizer o nome das coisas eróticas como elas se me
apresentam em portas de banheiros públicos e em outros lugares menos
nobres. Mas, claro, não faço um documentário sobre a pornografia social,
isso tudo vem ao lado das minhas leituras de Vieira, Faulkner, Clarice.
Definitivamente, não me considero um pornógrafo, um sensacionalista. Em
primeiro lugar, vem a linguagem. É com ela que trabalho
primordialmente, não para aliviar as tensões sexuais do leitor. A
mediação para o erótico, aqui, é a linguagem.
TRECHO
"Olhei irrefletidamente para uma espécie de recesso, um microespaço que eu jamais suporia que aquele quarto pudesse conter, algo normalmente escondido no azáfama da vista, uma coisa que não vinha propriamente de fora, mas de uma projeção de dentro, reconheço, algo como um refúgio"
"Olhei irrefletidamente para uma espécie de recesso, um microespaço que eu jamais suporia que aquele quarto pudesse conter, algo normalmente escondido no azáfama da vista, uma coisa que não vinha propriamente de fora, mas de uma projeção de dentro, reconheço, algo como um refúgio"

SOLIDÃO CONTINENTAL
Autor: João Gilberto Noll
Editora: Record
(128 páginas, R$ 27,90)
Autor: João Gilberto Noll
Editora: Record
(128 páginas, R$ 27,90)
---------------------------------
Fonte: http://www.estadao.com.br/noticias/arteelazer,joao-gilberto-noll-fala-de-imprecisoes-em-solidao-continental,927367,0.htm

Nenhum comentário:
Postar um comentário