Cientista brasileiro participante do megaconsórcio Encode explica a revolução que é resgatar o injustiçado 'DNA lixo', responsável na verdade por grande parte dos caprichos genéticos
Mônica Manir - O Estado de S.Paulo
Se temos 21 mil lâmpadas iluminando nosso jeito de ser, where the
hell estão os interruptores? Fora do lixo em que os botaram. Esse foi o
resultado sustentável do Encode, consórcio de 442 pesquisadores da
América do Norte, Ásia e Europa que nessa semana derrubou a ideia de que
98% do DNA não tinha função. Nosso genoma não seria composto de apenas
21 mil genes, 2% de seus 3 bilhões de "letras" químicas, mas também de
uma série de elementos que ligam e desligam esses genes. Coisa fina, de
grande complexidade, mas que animou o povo especialmente quanto ao
diagnóstico e tratamento de doenças.
O recifense Marcelo Nóbrega* estava entre esses pesquisadores que
contaram com R$ 375 milhões do governo americano para elaborar o "guia
do genoma humano". Há 17 anos nos Estados Unidos, ele chefia um
laboratório na Universidade de Chicago que estuda bases genéticas de
distúrbios causados exatamente por variações fora dos genes. "Não sou
especializado numa doença, mas num processo biológico", diferencia.
Médico formado na UFPE, ele fez Ph.D. em fisiologia e genética molecular
em Wisconsin e pós-doc em Berkeley, até criar raiz em Chicago, onde
aguarda a chegada do primeiro filho para daqui a dois meses.
Nesta entrevista, Marcelo conta o que a comunidade científica já
intuía sobre o genoma humano e o que foi a grande surpresa do projeto.
Também destaca o papel da epigenética, resposta rápida de adaptação ao
ambiente que poderia estar por trás de certos casos de obesidade. Esse
recifense de 40 anos ainda anuncia o financiamento de um novo Encode e o
barateamento provocado pelas novas tecnologias: "Hoje sequencio num
único dia mais DNAs que todo o projeto do genoma humano sequenciou em 30
anos". Isso, diz ele, num laboratório que nem é de outro mundo, mas num
que a evolução genômica lhe deu.
O resultado do consórcio foi um achado de exame ou desde o início do projeto já se pesquisava se o 'DNA lixo' tinha função?
O consórcio foi formado para identificar até que grau o genoma
codifica funções além daqueles 2% de código genético conhecido. Já se
sabia, há décadas, que os 98% restantes não correspondiam a genes. Mas
se perguntava: o que seriam esses 98%? Há estudos, desde a década de 70,
portanto muito antes do acesso ao genoma, que foram fundamentais ao
comparar o DNA de humanos com o de chimpanzés. Ainda que de forma
grosseira, via-se o nível de semelhança entre eles. Ambos eram
virtualmente idênticos. Se o DNA dessas duas espécies, de grau extremo
de similaridade, é tão diferente comportamental e morfologicamente
falando, isso supostamente significa que existem funções além dos genes
para justificar as diferenças. E nem precisa usar a analogia entre
chimpanzés e humanos. A gente tem cerca de 21 mil genes no nosso genoma e
dentro de cada célula esse material genético é idêntico. Mas cada
célula usa de 7 mil a 15 mil genes. Nenhuma vai usar mais que 15 mil e
nenhuma sobrevive com menos de 7 mil. A complexidade é: o que faz com
que uma célula cardíaca lance mão de cerca de 10 mil genes de célula
cardíaca e uma célula de osso use outros 10 mil genes, alguns dos quais
idênticos aos das células cardíacas e outros diferentes? A gente sabia
que nesses 98% havia sequências importantes, que regulam se um gene está
ativo ou não.
A natureza não é sábia,
a
natureza não é econômica,
a natureza não é eficiente.
Então qual foi a grande surpresa do Encode?
A surpresa é o grau de funcionalidade que se achou. Não se sabia se
nesses 98% iríamos aferir funções a 2% ou 5% deles. Esses estudos
aferiram funções a 80%. A ideia de que uma parte grande do genoma seria
lixo caiu por terra. Muitas dessas sequências só serão funcionais em um
tipo específico de célula, e em determinado momento, mas, se olhar o
organismo como um todo, quase o genoma inteiro terá função. Isso foi uma
surpresa tremenda, não se imaginava que se chegaria a esse nível, não.
Logo depois da apresentação dos resultados, muitos afirmaram que a natureza é sábia. Ela nunca desperdiça material?
Bobagem, isso não tem nenhum cabimento. A natureza não é sábia, a
natureza não é econômica, a natureza não é eficiente. Há certamente
pedaços de DNA não funcionais, 80% é um número quase certamente
inflacionado. Explicando melhor os resultados do Encode: em quanto do
genoma a gente consegue encontrar pelo menos uma evidência de que
determinada sequência tem função? A resposta é 80%. Não significa jamais
que descobriram a função desses 80% do genoma. A grande maioria dessas
sequências tem uma evidência fraca de que aquilo seja funcional. De
qualquer maneira, já ficou estabelecido na comunidade que a fração do
genoma com alguma funcionalidade é maior que 2%. Achar que a natureza
não deixaria um pedaço inútil do genoma ser mantido e transmitido
adiante não corresponde à verdade, inclusive porque uma fração
considerável do nosso genoma são resquícios de batalhas anteriores,
pedaços de DNA virais que se integraram ao genoma humano. Cada vez que
se pega uma infecção viral, o vírus junta ao genoma dele a nossa célula e
usa toda a maquinaria dela para se replicar. Isso permite que, em
alguns casos, a infecção viral ocorra em células germinativas e seja
transmitida às gerações seguintes. Grande parte dessas partículas virais
não tem função e outras continuam ativas. Como se ainda fossem vírus,
conseguem fazer cópias delas mesmas e se integrar repetidamente ao
genoma.
Cada vez que
se pega uma infecção viral,
o vírus junta ao genoma dele a nossa célula
e
usa toda a maquinaria dela para se replicar.
Isso permite que, em
alguns casos,
a infecção viral ocorra em células germinativas
e seja
transmitida às gerações seguintes.
Por que se diz que esses elementos regulatórios explicariam
que um gêmeo idêntico poderia desenvolver um tipo de câncer e o outro
não? Gêmeos idênticos não teriam também os mesmos elementos
regulatórios? A pergunta é bem pertinente e o conceito é
perfeito. Mas sabemos que uma série de variações fisiológicas, de
comportamento e até mesmo de aparência entre indivíduos é dada não por
diferenças genéticas entre eles, mas por um fenômeno chamado
epigenética. Epigenética é uma resposta rápida de adaptação a ambientes
modificados em que se consegue alterar funções biológicas sem modificar o
material genético propriamente dito. Isso é um fenômeno
importantíssimo. No início do século 20, por exemplo, houve uma seca na
Suécia, algo transitório, mas que gerou fome. Durou de um a dois anos.
Depois de algum tempo, os suecos notaram que mulheres que eram
adolescentes durante a seca e que depois vieram a se alimentar
normalmente davam à luz bebês com peso abaixo do normal. Essas crianças
cresceram e tiveram filhos. Mas seus filhos têm uma suscetibilidade
muito maior a doenças cardiovasculares e obesidade que suas mães, que
não passaram fome. Ou seja, enquanto aquela criança estava no útero e
ele estava repleto de nutrientes, houve uma reprogramação epigenética
naquela mãe para que ela aumentasse a economia de energia, para que as
calorias se transformassem em gordura, para que fossem mais
eficientemente guardadas. Aquela reprogramação foi transmitida para o
filho dela. E esse filho, que nunca teve restrição calórica, que pode
ter tido uma vida extremamente saudável, passou o resto da vida com
aumento de suscetibilidade a essas doenças que a gente assumia serem
basicamente determinadas por variações genéticas. Na nossa cabeça, só
diferenças no código genético justificariam isso. Agora a gente vê que
não é bem assim. Os gêmeos idênticos são o melhor exemplo para explicar
isso.
Isso acentua o papel dos fatores ambientais?Claro!
Imagina as repercussões sociais disso. Se a gente já acha que é um
problema uma geração inteira de jovens ir direto ao McDonald's ou, pior
ainda, de pessoas não terem com o que se alimentar, os efeitos
deletérios de ambas as situações são provavelmente muito mais profundos
do que a gente imagina. É de se supor que alguns indivíduos obesos
tenham na explicação da sua obesidade hábitos alimentares dos seus avós.
Tudo isso vem à tona com esse projeto do Encode. Posso agora pegar
gêmeos idênticos em que um tenha obesidade e outro não, ou que um tenha
diabetes e outro não e, sabendo não existir diferença genética entre
eles, procurar diferenças epigenéticas, o que até então era
absolutamente impossível porque a gente não tinha ideia de onde essas
modificações aconteciam no genoma. O Encode lançou um mapa disso daí.
As células cancerígenas se
multiplicam
rapidamente e por isso são ótimas
para usar em laboratório.
Fez-se uma analogia geográfica dizendo que, enquanto o
projeto Genoma Humano era uma vista espacial da Terra, o Encode seria
como o Google Maps, especificando onde estão as estradas, como está o
tráfico... Chega mesmo a essa precisão?É uma metáfora
apta, mas também exagerada, porque o Encode fez Google Maps de uma
cidade que ninguém visita. Você tem no seu organismo centenas de tipos
celulares: células musculares cardíacas, neurônios de vários tipos,
células ósseas. O que o Encode fez foi usar sete tipos delas. São
células meio frankstein, que não existem no organismo humano, a maioria
cancerígenas e comercialmente disponíveis. As células cancerígenas se
multiplicam rapidamente e por isso são ótimas para usar em laboratório.
Uma das utilizadas no projeto é a HeLa, que veio de uma mulher chamada
Henrietta Lacks. Henrietta era uma americana negra, jovem, que
constituía família quando foi acometida por um câncer de colo do útero. O
câncer a matou logo. Mas fortuitamente, no Johns Hopkins Hospital,
tiraram uma parte de suas células e descobriram que elas cresciam
loucamente. Eles as botavam numa incubadora e no dia seguinte a
incubadora estava lotada de células. Essa mulher morreu há mais de meio
século e se calcula que a quantidade de células que já cresceram a
partir das originais daria uma massa celular dez vezes mais pesada que o
Empire State Building. A grande imoralidade do assunto é que a coleta
foi feita sem a permissão dessa paciente. Ganharam bilhões de dólares em
cima disso e a família de Henrietta vive miserável até hoje.
Se usaram células frankstein, como transferir o resultado para células especializadas?De
fato, essas células não refletem mais a biologia de nenhum tipo celular
humano exatamente. O Encode lançou mapas detalhados de células em que
pouca gente está interessada. Aquelas de que realmente precisamos são
células primárias humanas, cujo mapa ainda não existe. Mas as
tecnologias que o Encode desenvolveu são extremamente úteis para que
possamos replicar nossa célula favorita no próprio laboratório, e o tipo
de informação que ele pegou já é reproduzível em muitos aspectos para
outras células.
Já se pensa numa segunda versão do Encode?Ele
acabou de ser financiado para uma nova etapa, que deve ser anunciada
nos próximos meses. Fizeram Google Maps de uma cidade que ninguém visita
e agora vão expandir isso para coisas mais relevantes. Trata-se de uma
escala maior, mais rápida e mais barata do que aquilo que foi feito nos
últimos quatro anos.
Por que fica mais barato?Porque as
tecnologias alcançaram um nível tal… No meu laboratório sequencio mais
DNAs num dia do que o projeto do genoma humano sequenciou em 30 anos. E
meu laboratório não é do outro mundo, é médio. É nesse nível que as
coisas evoluem. Um projeto que custou bilhões de dólares entre o início
dos 1980 e a primeira década de 2000 hoje sai por milhares de dólares.
Sequenciar um genoma atualmente é 1 milhão de vezes mais barato que há
12 anos. Não tem muita coisa no mundo que custe 1 milhão de vezes menos
nesse tempo. Muita gente não tem ideia de quão revolucionário isso tem
sido na genômica.
"A pesquisa que lança as bases
para
as descobertas com fins comerciais
tem que ser financiada pelo
governo.
Isso é bem estabelecido nos EUA..."
O dinheiro investido no Encode veio apenas do governo federal?Veio
100% do governo federal americano. O Encode é pesquisa básica, geração
de reagentes que vão ser usados pela comunidade biomédica do mundo
inteiro, fundamentais para o tipo de pesquisa que será feita por
iniciativa particular e por indústrias que têm por objetivo novas
terapias e novos diagnósticos de doenças. A pesquisa que lança as bases
para as descobertas com fins comerciais tem que ser financiada pelo
governo. Isso é bem estabelecido nos EUA, onde tem sido mantida uma
relação muito bem casada entre a iniciativa do governo e a privada.
Todos os laboratórios participantes são de genética necessariamente?Não.
Muitos dos laboratórios que participaram são de química, de ciências da
computação, de matemática, de teoria de jogos, de inteligência
artificial. As estratégias de análise desses resultados em larga escala
são extremamente complexas. Lançou-se mão de expertises extremamente
díspares. Ninguém pode realizar um negócio desses sozinho.
Quando sai esse resultado dando tanta importância aos
elementos regulatórios, dá alento pensar que descobriram um novo caminho
para o tratamento de doenças, mas agora não são mais apenas 2% para
estudar.
A gente fica otimista porque finalmente está entendendo o mecanismo
molecular de várias dessas doenças, o que tende a levar a novas
descobertas terapêuticas. Porém, cada vez que procuramos mais,
descobrimos mais. Conhecemos melhor essas doenças do que há poucos anos,
mas também temos visto que elas são muito mais complexas do que
havíamos antecipado. Por isso é irresponsável, ao lançar esses
resultados, falar em coisas num horizonte imediato. Nesse aspecto é
cruel. O sequenciamento do genoma humano nos deu um livro que não
sabíamos ler. Agora estamos lendo esse livro. É uma fase inicial.
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* PROFESSOR DO DEPARTAMENTO DE GENÉTICA HUMANA DA UNIVERSIDADE DE CHICAGO
Fonte: http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,o-dna-do-dna,927966,0.htm 09/09/2012
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