Entrevista especial com James Alison
A narrativa de “chantagem emocional” é predominante
quando pensamos no pecado original. Contudo,
a doutrina central da fé
diz que somos
perdoados antes mesmo de sermos criados,
afirma o teólogo
inglês.
Pensar na doutrina do pecado original “sem tomar parte da visão moralista e chantagista do Evangelho”. Assim o teólogo James Alison nos aconselha a refletirmos a respeito de um dos temas do Cristianismo. Para ele, é preciso compreender a doutrina do pecado original numa visão retrospectiva a partir da ressurreição. “Nesse sentido, a noção de uma visão retrospectiva é muito importante, pois ela nos exime de considerar tudo de maneira moralista, como se Jesus tivesse vindo para pagar uma dívida. Ao invés disso, Ele nos traz uma visão mais primigênia do Novo Testamento, que é a irrupção em nosso meio da plenitude da criação, o que São Paulo chama de nova criação”, disse na entrevista concedida por telefone à IHU On-Line.
Em seu ponto de vista, a doutrina do pecado original é “a instalação
da possibilidade de uma vivência autocrítica”. E completa: “A doutrina
do pecado original é secundária à presença de Jesus Cristo. Porque se
aquilo que Jesus Cristo nos traz é a possibilidade de viver como se a
morte não fosse, é precisamente só a partir dele que tem qualquer
sentido falar de um passado quando as pessoas viviam presas ao pecado
original”. Alison enfatiza que “o perdão antecede o
pecado”, e que “só ao aprendermos e recebermos o perdão que chegamos a
ser capazes de nos arrepender, e por isso de ascender à criação”.
James Alison é teólogo católico, sacerdote e
escritor. Com estudos em Oxford, é doutor pela Faculdade Jesuíta de
Filosofia e Teologia – FAJE, de Belo Horizonte. Atualmente é Fellow, da
Fundação Imitatio, instituição que apoia a divulgação da teoria
mimética. Há mais de 15 anos é um dos raros padres e teólogos católicos
assumidamente gays. Seus sete livros já foram traduzidos para o
espanhol, italiano, francês, holandês e russo. Em português podem ser
lidos Uma fé além do ressentimento: fragmentos católicos numa chave gay (São Paulo: É Realizações, 2010) e O pecado original à luz da ressurreição (São Paulo: É Realizações, 2011). Seu trabalho mais recente é A vítima que perdoa – uma introdução para a fe cristá para adultos em doze sessões (www.forgivingvictim.com). James Alison reside
em São Paulo, onde está iniciando uma pastoral católica gay e viaja
pelo mundo dando conferências, palestras e retiros. Textos seus podem
ser encontrados no site www.jamesalison.co.uk. Mais detalhes sobre a Fundação Imitatio encontram-se disponíveis no link endereço www.imitatio.org.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Em entrevista à IHU On-Line sobre Girard , você menciona que a doutrina do pecado original é a visão retrospectiva a partir da ressurreição. Poderia dar-nos mais detalhes sobre o que isso significa?
IHU On-Line - Em entrevista à IHU On-Line sobre Girard , você menciona que a doutrina do pecado original é a visão retrospectiva a partir da ressurreição. Poderia dar-nos mais detalhes sobre o que isso significa?
James Alison - As pessoas tendem a imaginar a visão
cristã como se fosse uma narração de criação seguida de queda, salvação
e, ao final desse processo, o que deveríamos fazer é viver uma vida
moral. Tudo acontece entre bastidores e deixa-nos com a necessidade de
bom comportamento. Isso não é esperançoso e não há nada de graça no
sentido teológico. Esta é simplesmente uma maneira de controlar as
pessoas e obriga-las a comportarem-se segundo regras que, seriam,
segundo essa visão, ditadas por Deus há muito tempo, e este próprio
pagou o preço pelas “travessuras” das pessoas. Agora que Ele pagou o
preço, como uma espécie de chantagem emocional, devemos nos comportar.
As pessoas tendem a pensar isso. Mas isso não foi originalmente a
compreensão do Evangelho.
É importante resgatar a doutrina do pecado original sem tomar parte
da visão moralista e chantagista do Evangelho. Isso, desde os
primórdios, percebe-se em São Paulo, o Apóstolo, uma
vez que ele considera o primeiro Adão somente à luz de Cristo. Ele
considera Adão cronologicamente primeiro somente como aquele que
prefigurava o Adão definitivo, que é Cristo. Para Paulo,
a criação mesma aconteceu em nosso meio e utiliza a palavra Adão apenas
para se referir àquilo que é universal, aquilo que Jesus estava
trazendo. Então, São Paulo não está preocupado com que
as pessoas façam estudos paleontológicos para saber quem era “o tal de
Adão” e o que foi que ele fez. Para São Paulo, o
assunto de quem era e o que ele fez é totalmente secundário, se é que é
de qualquer importância, porque no mundo Antigo não se pensava daquele
jeito.
A questão interessante para ele é aquilo que fez Jesus ao inaugurar a plenitude da criação e, evidentemente, mostra que aquilo que nós estávamos vivendo até lá era, de alguma maneira, uma vivência ainda fútil, não chegada à sua plenitude, e que isso diz respeito a toda a humanidade, desde que começou. Para se referir a toda humanidade desde que começou, utiliza a palavra Adão. O central na visão é entender que já chegaram os inícios da plenitude da criação, que é aquilo que traz Jesus. Então, a vivência fútil é olhar para trás, é como se dissessem “e pensar que nós achávamos isso normal... Agora vemos que aquilo era um estado de ser, uma condição muito menor daquilo para o que deveríamos aspirar”. Então, podemos começar a viver como se a morte não nos dominasse. A partir disso, podemos ousar a criar coisas sem medo da morte, porque ela não tem direito de dominar nossa vida. Isso é o que foi trazido por Jesus mostrando a abundância de vida de Deus, que não tem nada a ver com a morte. Para isso que fomos criados.
A questão interessante para ele é aquilo que fez Jesus ao inaugurar a plenitude da criação e, evidentemente, mostra que aquilo que nós estávamos vivendo até lá era, de alguma maneira, uma vivência ainda fútil, não chegada à sua plenitude, e que isso diz respeito a toda a humanidade, desde que começou. Para se referir a toda humanidade desde que começou, utiliza a palavra Adão. O central na visão é entender que já chegaram os inícios da plenitude da criação, que é aquilo que traz Jesus. Então, a vivência fútil é olhar para trás, é como se dissessem “e pensar que nós achávamos isso normal... Agora vemos que aquilo era um estado de ser, uma condição muito menor daquilo para o que deveríamos aspirar”. Então, podemos começar a viver como se a morte não nos dominasse. A partir disso, podemos ousar a criar coisas sem medo da morte, porque ela não tem direito de dominar nossa vida. Isso é o que foi trazido por Jesus mostrando a abundância de vida de Deus, que não tem nada a ver com a morte. Para isso que fomos criados.
Nesse sentido, a noção de uma visão retrospectiva é muito importante,
pois ela nos exime de considerar tudo de maneira moralista, como se
Jesus tivesse vindo para pagar uma dívida. Ao invés disso, Ele nos traz
uma visão mais primigênia do Novo Testamento, que é a irrupção em nosso
meio da plenitude da criação, o que São Paulo chama de nova criação.
IHU On-Line - Qual é o sentido e a validade da doutrina do pecado original em nossos dias?
IHU On-Line - Qual é o sentido e a validade da doutrina do pecado original em nossos dias?
James Alison - Esta é uma doutrina muito sutil. Há
duas maneiras de se esquivar daquilo que a doutrina nos mostra e sugere.
A primeira é considerar que somos seres, por natureza, violentos,
assassinos e que só chegamos a sermos humanos devido a nossa maior
capacidade de matar do que os outros bichos. Há maneiras de entender a
paleontologia humana que demonstra isso. Qual é diferença entre nós e
nossos seres mais próximos, como os símios? É que somos mais capazes de
matar. É lamentável dizê-lo, mas é verdade. Essas são questões que os
paleontólogos vão estudando na medida em que descobrem mais ossos e
evidências arqueológicas. A noção de que somos, à diferença de outros
animais, melhores “matadores”, não é totalmente desprezível. Essa ideia
serve para a pessoa que quer evidências de nossa natureza violenta.
O problema com o pecado é a diminuição
do nosso
ser. E quem nos ama quer
que sejamos mais, e que não fiquemos
fechados
em nós mesmos.
O segundo ponto de vista é que os seres humanos são basicamente bons e
que nos agrupamos por acordos razoáveis e, basicamente, somos amáveis, e
só por incidências fora de nós, de clima, invasão, etc, é que nos
tornamos violentos e perigosos. Assim, temos os pontos de vista do ser
humano violento por natureza, e o ser humano como essencialmente bom. O
problema é que nenhum dos pontos de vista parece corresponder à
realidade. É aqui onde a doutrina do pecado original é interessante,
pois é sutil, sugerindo que o ser humano não é intrinsecamente violento,
mesmo que se dê o caso de que desde nossos primórdios assim tenhamos
sido. Em princípio, somente, somos capazes de aprender a conviver de
maneira não violenta em que construímos nossas mútuas edificações.
Porém, em todos nossos casos, isso não é uma coisa que nos vem
facilmente. Começamos “pré-bagunçados”, mas isso não é a mesma coisa que
sermos intrinsecamente violentos. Se o fôssemos, só seríamos isso. Se
somos intrinsecamente bons, então a “culpa” é sempre dos outros. O
difícil, para nós, é começando como “pré bagunçados” aprendermos que
sermos bons passa sempre pela autocrítica, o que é muito difícil de se
fazer. Então, a doutrina do pecado original é, ainda, a instalação da
possibilidade de uma vivência autocrítica. Normalmente somos bastante
binários no pensamento, então sutilezas como essa são mais difíceis de
pensar.
IHU On-Line - Por que a partir do pecado original Adão e Eva, e portanto todas as pessoas posteriormente, romperam sua relação com Deus? Como compreender esse paradoxo se as pessoas se extinguiriam caso não tivesse pecado?
IHU On-Line - Por que a partir do pecado original Adão e Eva, e portanto todas as pessoas posteriormente, romperam sua relação com Deus? Como compreender esse paradoxo se as pessoas se extinguiriam caso não tivesse pecado?
James Alison – Você volta ao âmago da questão. Somos
intrinsecamente ou acidentalmente violentos? Retornemos ao início da
entrevista. Falamos, nesse caso, de uma visão unicamente retrospectiva, e
por definição não podemos ter nenhum acesso imediato àquilo que foi o
primeiro ato humano. Somos o produto desse ato. Assim, só podemos pensar
a partir de um ato de compreensão contemporânea que iremos descrever
aquilo que nos fez ser aquilo que somos. Não temos nenhuma capacidade de
nos colocarmos fora de nós mesmos. Como se houvesse uma câmara de
circuito fechado e os macacos, os pré-humanos, tivessem sido pegos “no
ato”. Mas isso é impossível, porque somos o fruto desse processo de
hominização, e só a partir de dentro da capacidade moderna de olhar para
trás é que podemos fazê-lo.
Quando se fala do ato primordial que teria sido uma separação de
Deus, isso é muito complicado. Aquela maneira de pensar imagina a
possibilidade de uma história linear na qual todas as pessoas eram
humanas e já era possível pecar e havia uma possibilidade de olhar “de
fora”. Mas não é o caso. Para nós, é difícil imaginar o que seria um
cenário original no qual como parte do processo de hominização nossos
antepassados alcançaram a humanidade. No momento em que alcançaram a
humanidade, o fizeram de forma “torta”, porque é disso que se trata: de
manter ao mesmo tempo a intrínseca bondade daquilo que nos faz seres
humanos, e a constante presença em nosso meio da violência como coisa
nossa.
Penso que entre as possíveis maneiras de manter juntas essas duas coisas, o pensamento de Girard nos
dá recursos para uma interpretação interessante quanto à questão do
desejo, pois quando falamos de seres humanos se trata da possibilidade
do desejo.
IHU On-Line - “Não somos seres fadados à morte, mas à vida”, você afirmou nessa entrevista sobre Girard. Nesse sentido, como a hipótese do desejo mimético de Girard nos ajuda a compreender e explicar esse dogma?
IHU On-Line - “Não somos seres fadados à morte, mas à vida”, você afirmou nessa entrevista sobre Girard. Nesse sentido, como a hipótese do desejo mimético de Girard nos ajuda a compreender e explicar esse dogma?
James Alison - Estamos falando daquilo que nos faz
seres humanos e diferentes dos nossos primos mais próximos entre os
outros símios e entre os outros pré-humanos, pois pelo visto havia
vários tipos de pré-humanos, que não eram os homo sapiens, e
que nunca chegaram a ser tão eficazes como nós na sobrevivência. Como
estamos falando de hominídeos diversos, que não somente o sapiens,
aquilo que parece ser interessante é o que produziu e permitiu que ao
longo de milênios a capacidade imitativa deste tipo de macaco crescesse
de forma a permitir que aquilo que fosse instinto nos outros chegasse a
ser mais do que instinto, e passasse a ser desejo, ou seja, quando
começa a haver uma vivência coletiva, uma inteligência coletiva que
agita os membros do grupo a partir de um centro que eles podem
identificar.
Trata-se do começo de uma cultura propriamente humana, e isso é um
momento que todo paleontólogo ou arqueólogo quer descrever num processo
de algum modo. Meu assunto, contudo, é o desenvolvimento do desejo, da
capacidade simbólica e da cultura da violência, porque é a partir do
momento em que a morte tem sentido que as pessoas começam a sepultar.
Só quero indicar que aquilo que nos oferece Girard é
um modelo para entender o relacionamento do desejo, a chegada da
cultura e da violência. É um modelo que entende que se trata não só de
um ato específico de um momento X, que foi um pouco aquilo que pensou Freud na
explicação que deu para a hominização. Contudo, é algo bem mais extenso
no tempo que chegou à capacidade dos seres humanos se unirem em
contraste com o outro tido como ruim. Trata-se do mecanismo vitimário,
do bode expiatório. Essa é a hipótese girardiana, que vejo como muito
rica porque nos permite acompanhar os estudos dos paleontólogos e
arqueólogos para entender melhor o que teria sido o processo pelo qual o
homo sapiens emergiu.
Você começa a viver a vida eterna a partir de agora. Esse é o
sentido do batismo.
IHU On-Line - Qual é a importância de Jesus Cristo e do batismo para a Igreja Católica como figuras que eliminam o pecado original?
James Alison - A doutrina do pecado original é secundária à presença de Jesus Cristo. Se não houvesse a presença de Jesus Cristo não haveria a presença da doutrina do pecado original. Porque se aquilo que Jesus Cristo nos traz é a possibilidade de viver como se a morte não fosse, é precisamente só a partir dele que tem qualquer sentido falar de um passado quando as pessoas viviam presas ao pecado original. Então, qual é o sentido do batismo? É a introdução desde já neste começo de vivência da vida eterna a partir de agora. E precisamente o rito consiste em certo passar de antemão por uma espécie de pré-morte. Até o Apóstolo Paulo se refere ao batismo como “aqueles que foram batizados na morte de Cristo”. A noção é antecipar a morte sendo batizado para poder viver dali para frente como se a morte não fosse. Você começa a viver a vida eterna a partir de agora. Esse é o sentido do batismo. Todo sentido da vida da igreja, da liturgia depende disso: da presença sacramental dos sinais da eternidade em nosso meio.
IHU On-Line - Em que aspectos essa doutrina não é o “complô cínico de um clero ávido de poder, nem o absurdo de um pensamento balbuciante”?
James Alison - Realmente há pessoas que usam o
pecado original como forma de justificar qualquer maldade. Por um lado,
dizer para as pessoas que elas não podem ser boas porque o pecado
original sempre irá atrapalha-las é algo errado. Se têm pessoas que o
fazem dessa forma, não se trata de doutrina cristã. A doutrina do pecado
original tem tudo a ver com a presença do perdão como já presente em
nosso meio. O perdão antecede o pecado. Tipicamente pensamos na
narrativa da chantagem emocional. Por exemplo: alguém se comporta mal e
por isso precisa ser perdoado. Para ser perdoado é preciso pedi-lo, e
para ser atendido é necessário estar muito arrependido. O mau uso do
pecado original é um pretexto para que alguém fique insistindo em
aterrorizar os outros pelos pecados que fez, sugerindo que se a pessoa
consegue demonstrar arrependimento suficiente pelos pecados que cometeu
será perdoada.
Esse é um modelo atroz. Qualquer pai ou mãe que valham a pena sabem
que nenhum filho humano deveria ser tratado com uma mentalidade assim.
Isso é pura chantagem. Conseguimos ser melhores que isso.
O interessante da doutrina é que ela sugere o contrário: que o perdão
chegou antes que conhecêssemos o tamanho do nosso problema, e que só a
partir do dom é que nós nos conhecemos perdoados, amados, recebidos tal e
qual somos que somos capazes de sermos desatados e de olhar para trás. O
perdão antecede a nossa criação, o que é contra intuitivo.
Curiosamente, a doutrina central da fé é que somos perdoados antes de
sermos criados, e que só ao aprendermos e recebermos o perdão que
chegamos a ser capazes de nos arrepender, e por isso de ascender à
criação. Porque Aquele que nos criou não quer nos humilhar, mas
abrir-nos para mais. O problema com o pecado é a diminuição do nosso
ser. E quem nos ama quer que sejamos mais, e que não fiquemos fechados
em nós mesmos. O perdão não provem daquele que está de fora de nós
olhando e falando com olhar orgulhoso. Ao contrário, provem dAquele que
nos olha com igualdade de coração e quer apaixonadamente que cheguemos a
ser bem mais.
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Fonte: http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/513332-entrevista-especial-com-james-alison 09/09/2012
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