Entrevista especial com Pedro Trigo

A teologia tem que ser profética, porque deve se
realizar não como exposição de doutrinas e de disciplinas, mas sim como
leitura dos sinais dos tempos, uma leitura que só pode ser feita a
partir da encarnação solidária a partir dos debaixo, afirma o teólogo
venezuelano.
“Não podemos ignorar como nos afeta o totalitarismo de mercado, hoje dominante, mas também não podemos nos restringir a maldizer o fetiche”, declara o teólogo Pedro Trigo, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Para ele, temos que partir da atuação vitoriosa do Espírito do Crucificado Ressuscitado, “porque só tem sentido falar e propor a partir dessa liberdade libertada que se manifesta em um modo alternativo de viver e se traduz na responsabilidade concreta pelos outros, estando lado a lado com eles e priorizando os que estão embaixo”. E acrescenta: “A assunção dos bens civilizatórios da última revolução tecnológica pode potencializar essa atitude”.
“Não podemos ignorar como nos afeta o totalitarismo de mercado, hoje dominante, mas também não podemos nos restringir a maldizer o fetiche”, declara o teólogo Pedro Trigo, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Para ele, temos que partir da atuação vitoriosa do Espírito do Crucificado Ressuscitado, “porque só tem sentido falar e propor a partir dessa liberdade libertada que se manifesta em um modo alternativo de viver e se traduz na responsabilidade concreta pelos outros, estando lado a lado com eles e priorizando os que estão embaixo”. E acrescenta: “A assunção dos bens civilizatórios da última revolução tecnológica pode potencializar essa atitude”.
Questionado sobre se a teologia vive hoje um processo de
“enclausuramento” ou uma tendência academicista, o teólogo explica que o
enraizamento da teologia nas universidades tem tido grandes vantagens,
sobretudo a exigência de rigor metodológico, mas tem tido dois graves
inconvenientes: “O mais óbvio, a tendência à formalização, aumentada
pela orientação das universidades à excelência acadêmica, entendida
neste caso como o cumprimento de padrões formais, já que os
qualificadores, burocratas secularizados em geral, não são capazes de
julgar conteúdos. Mas o mais grave é que os teólogos vão se
enclausurando na academia, e se perde a referência básica ao povo de
Deus e, principalmente, aos pobres com espírito, que são a principal
fonte da práxis e da consciência cristãs”.

Jesuíta de origem espanhola e naturalizado venezuelano, Pedro Trigo
(foto) é professor de Teologia na Faculdade de Teologia da Universidad
Católica Andrés Bello, em Caracas, e pesquisador do Centro Gumilla para
estudos sociopolíticos da Companhia de Jesus na Venezuela, onde foi
diretor por várias vezes.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como o senhor analisa a teologia latino-americana, tendo presente a complexidade da atual realidade do mundo?
Pedro Trigo – Acredito que a teologia não deve ser
fundamentalmente ideológica, no sentido de discussão de ideias, mas sim
concreta, isto é, deve se ater a problemas sólidos, sem se restringir à
sua particularidade, porém chegando ao nível da realidade. Não podemos
ignorar como nos afeta o totalitarismo de mercado, hoje dominante, mas
também não podemos nos restringir a maldizer o fetiche. Temos que partir
da atuação vitoriosa do Espírito do Crucificado Ressuscitado, porque só
tem sentido falar e propor a partir dessa liberdade libertada que se
manifesta em um modo alternativo de viver e se traduz na
responsabilidade concreta pelos outros, estando lado a lado com eles e
priorizando os que estão embaixo. A assunção dos bens civilizatórios da
última revolução tecnológica pode potencializar essa atitude.
IHU On-Line – O que significa fazer teologia latino-americana no atual contexto da Igreja?
IHU On-Line – O que significa fazer teologia latino-americana no atual contexto da Igreja?
Pedro Trigo – Concebo a teologia latino-americana
como uma função e missão da Igreja, mas entendendo a Igreja como povo de
Deus articulado, com diversas vocações, que se realiza ao nos levarmos
mutuamente na fé, no amor fraterno e na vida concreta a um nível
anterior ao da diversificação de funções, e que, desse modo, se converte
em sacramento da união da humanidade como família de povos, dinamismo
que o Espírito impulsiona em todos os seres humanos. Ampliar os
problemas da instituição eclesiástica é um modo de clericalismo. Como
dizia o catecismo que estudei quando criança, somos cristãos pela graça
de Deus. Animados ou não, aqueles que, como nós, se consideram cristãos
têm que seguir o mesmo caminho compartilhado e solidário.
IHU On-Line – A partir da realidade latino-americana, qual o sentido de se pensar e fazer uma teologia profética e evangélica?
Pedro Trigo – A teologia tem que ser profética,
porque deve se realizar não como exposição de doutrinas e de
disciplinas, mas sim como leitura dos sinais dos tempos, uma leitura que
só pode ser feita a partir da encarnação solidária a partir dos
debaixo. A encarnação no mundo em que nos cabe viver expressa o pathos
(a entrega apaixonada) e o ethos (a exigência) do Concílio. A
solidariedade a partir de dentro exclui a adaptação ao estabelecido,
porque configura uma situação de pecado e exige um constante
discernimento. Como a nossa época é diferente da de Medellín ,
é imprescindível realizar um discernimento equivalente ao que foi
realizado pela Igreja latino-americana neste local. Mas, assim como
naquela época, não basta a denúncia. Não temos autoridade cristã se
carecemos de propostas positivas, nas quais se possa caminhar com
plenitude humana, verdadeiras alternativas, principalmente no plano
antropológico concreto.

É custoso seguir a Jesus de Nazaré,
mesmo
que se faça com toda
a discrição e prudência.
IHU On-Line – A teologia vive hoje um processo de “enclausuramento” ou uma tendência academicista? Por quê?
Pedro Trigo – O enraizamento da teologia nas
universidades tem tido grandes vantagens, sobretudo a exigência de rigor
metodológico, mas tem tido dois graves inconvenientes: o mais óbvio, a
tendência à formalização, aumentada pela orientação das universidades à
excelência acadêmica, entendida neste caso como o cumprimento de padrões
formais, já que os qualificadores, burocratas secularizados em geral,
não são capazes de julgar conteúdos. Mas o mais grave é que os teólogos
vão se enclausurando na academia, e se perde a referência básica ao povo
de Deus e, principalmente, aos pobres com espírito, que são a principal
fonte da práxis e da consciência cristãs. Não estou dizendo que não
existe contato, mas talvez mais como trabalho de extensão ou “para
contentar a sua alma devota” do que como alimento fontal da experiência
cristã, como ato primeiro do qual a teologia é ato segundo. Por isso a
repercussão muito escassa que ela tem na marcha do nosso cristianismo.
IHU On-Line – Por que teologias fundamentalistas e doutrinárias estão em auge ou ganhando espaço particularmente no continente latino-americano?
IHU On-Line – Por que teologias fundamentalistas e doutrinárias estão em auge ou ganhando espaço particularmente no continente latino-americano?
Pedro Trigo – Porque boa parte da instituição
eclesiástica aposta nessas pastorais, que são, obviamente, mais baratas,
já que se enclaustram em uma parcela da realidade, como se o
cristianismo pudesse se confinar nela e não tivesse que ser exercido em
todos os níveis da vida histórica. Por essa mesma razão, muitos se
dispõem a aceitá-las. A proposta de se encarnar na realidade a partir de
baixo para nos salvar nela, ajudando a que ela se humanize a partir do
paradigma de Jesus de Nazaré, envolve toda a pessoa e todos os âmbitos
da realidade. Como se diz na Venezuela: “quem se mete a redentor sai
crucificado”. É custoso seguir a Jesus de Nazaré, mesmo
que se faça com toda a discrição e prudência. Em segundo lugar, também
seria preciso reconhecer que uma parte considerável da pastoral
iluminada, seja do iluminismo liberal ou do socialista, se centrou muito
na promoção ou na conscientização e organização popular, em detrimento
dos aspectos religiosos, e cultivou quase que exclusivamente o pensar e o
agir corretamente, deixando de lado todo o simbólico, desconhecendo que
o ser humano é um animal simbólico.
IHU On-Line – O senhor defende a ideia de que é preciso discernir entre a religião neolítica e o cristianismo. Pode explicitar essa ideia? Em que sentido nossa época seria a superação do modelo neolítico?
IHU On-Line – O senhor defende a ideia de que é preciso discernir entre a religião neolítica e o cristianismo. Pode explicitar essa ideia? Em que sentido nossa época seria a superação do modelo neolítico?
Pedro Trigo – A religião neolítica, também a dos
maias, astecas e incas na Ameríndia, se caracteriza por templos,
sacerdotes e sacrifícios, e é uma religião política, no sentido mais
amplo dessa palavra. Como é evidente, nos Evangelhos, Jesus desconhece o
templo e, consequentemente, o sacrifício em sua proposta do Reino, e o
seu messianismo não é político. Por isso o quarto evangelho pode colocar
na boca de Jesus que chegou a hora em que não se adorará a Deus em
nenhum templo. Por isso, Mateus coloca na boca de Jesus, por duas vezes,
para explicar o seu proceder, a expressão de Oseias:
“Eu quero misericórdia, e não sacrifícios”. Consequentemente, no Novo
Testamento, os sacerdotes são os pagãos ou os judeus; não há sacerdotes
nas comunidades, mas sim apóstolos, evangelistas, doutores, epíscopos,
presbíteros, diáconos... No entanto, no longo prazo, a pressão da
religião neolítica é tão forte que a Ceia do Senhor passa a fazer, às
vezes, do ato do culto que garante a presença protetora de Deus ao
império e, posteriormente, às nações europeias. A mudança atual de época
é precisamente o fim do neolítico. O cristianismo não tem nada a
perder, porque, no seu núcleo constituinte, ele é heterogêneo a esse
esquema. Nesse sentido, o fim da religião que se proclama é unicamente o
da religião neolítica. Seria catastrófico que, por falta de
discernimento, a instituição eclesiástica se identificasse com esse
revestimento e se afundasse com ele.

A alegria cristã é pascal.
IHU On-Line – O
senhor coloca como um dos principais desafios da atualidade, para o
teólogo latino-americano, o discernimento da terceira época. O que seria
essa “terceira época” e o que tem a ver com a teologia?
Pedro Trigo – A primeira época da nossa região é,
obviamente, a ameríndia; a segunda, a dos ibéricos, peninsulares e
americanos, que se tornaram com o tempo, por causa das migrações, em
ocidentais americanos. No primeiro período, os daqui e os de lá
compartilharam o poder. No segundo, os americanos se emanciparam dos
peninsulares. No terceiro, os ocidentais americanos admitiram no poder
os das demais etnias, mas com a condição de que deixassem as suas
culturas e passassem à ocidental: é o processo da modernização. Esse
processo se estancou quando os ocidentais no poder preferiram acabar com
a democracia ou esvaziá-la antes de permitir que mudasse a correlação
de forças. Agora, muitos de etnia não ocidental se esforçam para
adquirir os bens civilizatórios do Ocidente mundializado, mas não para
deixar as suas culturas, mas sim para mantê-las com excelência. O
discernimento mais elementar dos sinais dos tempos nos faz ver que,
nesse movimento dos nossos povos, está presente o impulso do Espírito do
Crucificado Ressuscitado. Portanto, resistir a ele é resistir a Deus.
O problema para o nosso cristianismo é que a instituição eclesiástica
é ocidental americana e, por isso, não vive na transcendência e vê como
uma ameaça a ela o que na realidade (no plano de Deus) é a sua
salvação. A plêiade de bispos em torno de Medellín e de Puebla se
aliou, sim, com os povos como pura vivência evangélica, e os povos
captaram isso com alegria e esperança. Hoje, isso não aparece tão claro
ou, dependendo das regiões, aparece o contrário. Por isso a dificuldade
de tirar a consequência cristã dessa época, que não é outra que a de
inculturar o cristianismo em cada uma das culturas populares, de modo
que desses cristãos excelentes saiam padres e bispos de cada cultura:
indígena, camponesa, afro-latino-americana e suburbana. Um indício de
que estamos nos negando a ouvir esses sinais dos tempos é a quantidade
de pessoas que estão passando para outras confissões cristãs.
IHU On-Line – A partir dos atuais desafios que concernem a teologia, que sinais de esperança afloram desde a realidade latino-americana?
IHU On-Line – A partir dos atuais desafios que concernem a teologia, que sinais de esperança afloram desde a realidade latino-americana?
Pedro Trigo – Essa é a pergunta mais importante, já
que ver só o mau e não ter olhos para ver onde o Espírito atua
vitoriosamente é não ver com olhos de fé. Onde vejo mais inequivocamente
o Espírito atuar vitoriosamente é nos que vivem quando não há elementos
para se viver, quando a vida não tem mais objetivo do que viver, porque
não se pode dar a vida por óbvia. Quando essas pessoas (as que eu
conheço são, acima de tudo, as dos bairros, das favelas, como vocês
dizem), que passam fome, doenças de pobres, que não têm trabalho estável
qualificado, que vivem desprotegidas e desprezadas, que não se deixam
morrer nem se degradam para satisfazer seus instintos mais elementares,
nem se convertem em feras que arrebatam à força até atropelar os que
estão na frente; quando essas pessoas, no meio de tudo isso, vivem e se
esforçam para viver humanamente e até dão da sua pobreza e celebram
festas, é que elas vivem obedecendo ao impulso do Espírito, Senhor e
doador da vida, como diz o Credo. Enquanto houver esses irmãos nossos,
haverá esperança. Mas eles não aparecem nos mass media. Só é possível
receber a sua influência aproximando-se deles. Poder ser amigos deles e
até formar comunidade com eles é o maior presente que Deus pode dar a
alguém. Também há esperança naqueles que se solidarizam até o ponto de
que a sua solidariedade os configura. Pode-se começar pelo voluntariado,
que pode ser apenas um estágio; mas que também pode abrir caminho na
vida de alguém até configurá-la. Essas pessoas têm alegria porque
descobriram um tesouro. É claro que tudo isso tem um preço. Mas já se
sabe: a alegria cristã é pascal.
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Fonte: http://www.ihu.unisinos.br/08/09/2012
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