sábado, 8 de setembro de 2012

Comentando sobre Safatle no Hora da Coruja

Paulo Ghiraldelli Jr*

 
Caso a mídia não fale o que eu quero então ela é “golpista”, mesmo sem armas e sem controle das eleições. Caso meu candidato erre ou seja pego como desonesto o culpado é quem o criticou ou acusou, mesmo que o próprio candidato confesse. Caso eu fique sabendo que o curso que eu faço na faculdade não vale nada eu fico emburrado e digo que estão querendo sujar a imagem de minha escola, e não me passa pela cabeça sair dela, mas antes tapar o sol com a peneira. Caso o meu adversário político acerte então eu o diminuo ou eu o desqualifico por outro lado e por outro feito. Caso o meu ídolo como professor ensine errado eu reconstruo o pensamento dele dizendo que “o que ele queria dizer” era outra coisa. Caso eu não consiga de modo algum fazer uma crítica séria a outro eu jogo na Internet fotos dele ligadas à pornografia. Caso eu seja obrigado a pensar, eu me recuso. Pensar dói.
É assim que boa parte dos brasileiros se mostra hoje, principalmente na Internet. É assim que boa parte dos brasileiros vem agindo faz tempo. A Internet apenas deu publicidade maior de todos em relação a todos. A Internet tem dado para nós filósofos a chance de ficarmos mais independentes da sociologia quando queremos saber sobre comportamentos. O comportamento do brasileiro atualmente, em boa escala, é exatamente este: o de fazer de tudo para não ser contrariado, o que o obrigaria a usar da reflexão. Pensar cansa, dói. Então lançamos mão desses esquemas fáceis que tornam nossos grupos, partidos, parentes, ídolos e candidatos intocáveis. É como se fazendo assim nós mesmos nunca fôssemos prejudicados. É como se protegendo nossas opções irracionais estivéssemos nos protegendo, o que é no mínimo uma estupidez.
São poucas as pessoas que avaliam os argumentos sem colocar antes deles seus próprios pressupostos irrefletidos, quando não puros preconceitos. A maior parte das pessoas se expõe de modo absurdo, prefere pegar uma via errada que certamente, lá na frente, lhes trará prejuízo, do que tentar ver se aquele que o critica não tem lá alguma razão aproveitável. Em outras palavras: mesmo entre os mais escolarizados a tônica da conduta não é aprender com a crítica, o que seria o comportamento mais inteligente, mas se refugiar no velho ninho.
Os últimos programas Hora da Coruja tem ampliado minha visão sobre esse comportamento. Tenho notado que alguns convidados não conseguem raciocinar com as questões a eles colocadas e, mesmo quando postos em cheque, preferem reiterar dogmaticamente suas verdades ou então lançar mão de juízos de autoridade do que repensar suas crenças.
Sobre o programa em que o convidado foi o Pondé, já escrevi. Ele leu o texto, mas parece que não se sentiu impulsionado a responder. Já o programa onde o convidado foi Wladimir Safatle, duas semanas depois daquele do Pondé, me deixou intrigado a esse respeito, o da possibilidade das pessoas refletirem e mudarem. Primeiro na questão do aborto e depois na questão sobre o que fazer para melhorar o ensino, ele passou a reiterar o que disse de início, como se a conversa não tivesse evoluído para uma situação na qual ele, visivelmente, foi posto na parede. Vejamos.
Quanto ao aborto, ele definiu “vida” a partir de conceitos políticos, principalmente a noção de autonomia. Isto é, ele fez o conceito de vida se tornar subsidiário do conceito de pessoa. O feto não tem autonomia e, assim, não preenche, para ele, as condições de ser uma pessoa com direitos constituídos, então, se deixamos de lado noções rarefeitas como “vida”, o feto pode ser atacado. Mas quando teve de se confrontar com a nossa objeção, que deu exemplos sobre outros seres sem autonomia, ele não soube sair do impasse. Ele imaginava que Fran e eu iríamos falar de loucos ou de crianças, mas não, falamos do escravo. O escravo não teria vida, uma vez que não tem autonomia, então poderia ser tratado da maneira do feto abortado. Diante desse exemplo, ficou sem resposta. E então começou a chamar a realidade do Primeiro Mundo como um aval para a sua vontade de ver o aborto legalizado. Mero juízo de autoridade. Ao final, acabou enveredando pela ideia do feto enquanto ainda não tendo cérebro constituído, como o que poderia ser abortado, e de novo foi jogado na parede quando lembramos a ele que “morte cerebral” é uma noção recente e que, portanto, considerar o cérebro como centro da vida é completamente contingente.
Safatle rodopiou mais um pouco, tentando então dizer que o feto era de responsabilidade só da mãe, pois só a mulher pode legislar sobre o que se passa da fronteira da sua pele para o interior. Disse que não podíamos legislar sobre o corpo e que isso era uma aberração. Aí lembramos a ele que o estado legisla sobre o que há dentro do corpo faz tempo, e com autorização social e esclarecida pela ciência. Ele achou que não. Tivemos então de lembrar a ele sobre transfusão de sangue de grupos religiosos que não permitem que isso ocorra ou mesmo as campanhas obrigatórias de vacinação. Chegamos a lembrar a ele que aquela posição libertária (estranhamente próxima da posição da direita, defendida no “direito de ser idiota” do Rosenfield no Jô Soares) dele o faria líder da Revolta da Vacina do início do século! E aí veio o silêncio. Mas, apesar de tudo isso, ele não reavaliou seu pensamento. Bem, ao menos lá, no programa, parece que saiu do modo como entrou.
Depois, na questão do ensino, ele insistiu na tese de que sem uma taxação dos ricos o Brasil não terá dinheiro para a educação. No fundo, sua tese é a da velha esquerda: só quando houver uma “correlação de forças” mais aguda, em que a esquerda possa, então, colocar na jogada para valer a tese de expropriar os ricos, é que iremos vislumbrar um horizonte real para se ter dinheiro para resolver o problema educacional. Lembramos a ele que se isso não está no horizonte, então a solução que ele coloca é, na prática, a de cruzar os braços. E mais: lembramos também que com o dinheiro que temos os problemas se resolveriam sim, caso esse dinheiro fosse bem gasto. Por exemplo: o Haddad enquanto ministro da Educação gastou mais em propaganda política do que em obras relativas à propaganda! Assim, deixou o ministério sem condições de arcar com as necessidades dos professores, que ele sabia que viriam. A greve de agora, na gestão Mercadante, nada é senão uma bomba relógio armada pela irresponsabilidade do Haddad (que agora, tendo saído candidato, põe na mesa o fato que explica o gasto com propaganda no MEC). Além do mais, o próprio Haddad, do partido do Safatle, injetou uma nota preta no ensino particular para o Prouni, que nada mais é que um sistema fraudulento e sem vergonha de beneficiar os empresários que não pagam impostos. Esse dinheiro, vertido para o ensino público, aí sim seria bem utilizado. Mas isso, para Safatle, parece não poder ser dito. Talvez por amores ao Haddad, mas talvez e mais provavelmente porque isso quebra com a ideia da esquerda atávica de que é necessária a revolução que irá ampliar os impostos dos ricos não para resolver o problema da sociedade e, sim, para resolver o problema da educação. Espera-se um tiro de canhão para pegar uma mosca!
Ora, mas também aí Safatle não mudou de opinião. Ficar sem saída e na parede não o fez refletir e ver que seus argumentos não davam conta do problema. E é sobre isso que eu falo: qual a razão pela qual várias pessoas, cujo ofício é pensar, é refletir, evitam exatamente o pensar e o refletir. Seus dogmas, seus vínculos partidários e seus esquemas mentais são mais importantes para elas! Elas parecem desconhecer a situação em que estão envoltas em paradoxos e contradições. É como se a lógica formal não valesse nada!
Enquanto as pessoas cujo ofício é pensar (e que recebem da sociedade para tal) se preocuparem antes com a inculcação ideológica da juventude que com o pensamento reflexivo, nós vamos ver na Internet isso que temos visto hoje: muita gente não querendo pensar. Pensar cansa, dói. E se cansa e dói até os profissionais do pensamento, imagine então os outros.
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* Filósofo, escritor e professor da UFRRJ
Fonte:  http://ghiraldelli.pro.br/2012/09/06/comentando-sobre-safatle-no-hora-da-coruja/

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