Paulo Ghiraldelli Jr*
Caso
a mídia não fale o que eu quero então ela é “golpista”, mesmo sem armas
e sem controle das eleições. Caso meu candidato erre ou seja pego como
desonesto o culpado é quem o criticou ou acusou, mesmo que o próprio
candidato confesse. Caso eu fique sabendo que o curso que eu faço na
faculdade não vale nada eu fico emburrado e digo que estão querendo
sujar a imagem de minha escola, e não me passa pela cabeça sair dela,
mas antes tapar o sol com a peneira. Caso o meu adversário político
acerte então eu o diminuo ou eu o desqualifico por outro lado e por
outro feito. Caso o meu ídolo como professor ensine errado eu reconstruo
o pensamento dele dizendo que “o que ele queria dizer” era outra coisa.
Caso eu não consiga de modo algum fazer uma crítica séria a outro eu
jogo na Internet fotos dele ligadas à pornografia. Caso eu seja obrigado
a pensar, eu me recuso. Pensar dói.
É assim que boa parte dos brasileiros se
mostra hoje, principalmente na Internet. É assim que boa parte dos
brasileiros vem agindo faz tempo. A Internet apenas deu publicidade
maior de todos em relação a todos. A Internet tem dado para nós
filósofos a chance de ficarmos mais independentes da sociologia quando
queremos saber sobre comportamentos. O comportamento do brasileiro
atualmente, em boa escala, é exatamente este: o de fazer de tudo para
não ser contrariado, o que o obrigaria a usar da reflexão. Pensar cansa,
dói. Então lançamos mão desses esquemas fáceis que tornam nossos
grupos, partidos, parentes, ídolos e candidatos intocáveis. É como se
fazendo assim nós mesmos nunca fôssemos prejudicados. É como se
protegendo nossas opções irracionais estivéssemos nos protegendo, o que é
no mínimo uma estupidez.
São poucas as pessoas que avaliam os
argumentos sem colocar antes deles seus próprios pressupostos
irrefletidos, quando não puros preconceitos. A maior parte das pessoas
se expõe de modo absurdo, prefere pegar uma via errada que certamente,
lá na frente, lhes trará prejuízo, do que tentar ver se aquele que o
critica não tem lá alguma razão aproveitável. Em outras palavras: mesmo
entre os mais escolarizados a tônica da conduta não é aprender com a
crítica, o que seria o comportamento mais inteligente, mas se refugiar
no velho ninho.
Os últimos programas Hora da Coruja tem
ampliado minha visão sobre esse comportamento. Tenho notado que alguns
convidados não conseguem raciocinar com as questões a eles colocadas e,
mesmo quando postos em cheque, preferem reiterar dogmaticamente suas
verdades ou então lançar mão de juízos de autoridade do que repensar
suas crenças.
Sobre o programa em que o convidado foi o
Pondé, já escrevi. Ele leu o texto, mas parece que não se sentiu
impulsionado a responder. Já o programa onde o convidado foi Wladimir
Safatle, duas semanas depois daquele do Pondé, me deixou intrigado a
esse respeito, o da possibilidade das pessoas refletirem e mudarem.
Primeiro na questão do aborto e depois na questão sobre o que fazer para
melhorar o ensino, ele passou a reiterar o que disse de início, como se
a conversa não tivesse evoluído para uma situação na qual ele,
visivelmente, foi posto na parede. Vejamos.
Quanto ao aborto, ele definiu “vida” a
partir de conceitos políticos, principalmente a noção de autonomia. Isto
é, ele fez o conceito de vida se tornar subsidiário do conceito de
pessoa. O feto não tem autonomia e, assim, não preenche, para ele, as
condições de ser uma pessoa com direitos constituídos, então, se
deixamos de lado noções rarefeitas como “vida”, o feto pode ser atacado.
Mas quando teve de se confrontar com a nossa objeção, que deu exemplos
sobre outros seres sem autonomia, ele não soube sair do impasse. Ele
imaginava que Fran e eu iríamos falar de loucos ou de crianças, mas não,
falamos do escravo. O escravo não teria vida, uma vez que não tem
autonomia, então poderia ser tratado da maneira do feto abortado. Diante
desse exemplo, ficou sem resposta. E então começou a chamar a realidade
do Primeiro Mundo como um aval para a sua vontade de ver o aborto
legalizado. Mero juízo de autoridade. Ao final, acabou enveredando pela
ideia do feto enquanto ainda não tendo cérebro constituído, como o que
poderia ser abortado, e de novo foi jogado na parede quando lembramos a
ele que “morte cerebral” é uma noção recente e que, portanto, considerar
o cérebro como centro da vida é completamente contingente.
Safatle rodopiou mais um pouco, tentando
então dizer que o feto era de responsabilidade só da mãe, pois só a
mulher pode legislar sobre o que se passa da fronteira da sua pele para o
interior. Disse que não podíamos legislar sobre o corpo e que isso era
uma aberração. Aí lembramos a ele que o estado legisla sobre o que há
dentro do corpo faz tempo, e com autorização social e esclarecida pela
ciência. Ele achou que não. Tivemos então de lembrar a ele sobre
transfusão de sangue de grupos religiosos que não permitem que isso
ocorra ou mesmo as campanhas obrigatórias de vacinação. Chegamos a
lembrar a ele que aquela posição libertária (estranhamente próxima da
posição da direita, defendida no “direito de ser idiota” do Rosenfield
no Jô Soares) dele o faria líder da Revolta da Vacina do início do
século! E aí veio o silêncio. Mas, apesar de tudo isso, ele não
reavaliou seu pensamento. Bem, ao menos lá, no programa, parece que saiu
do modo como entrou.
Depois, na questão do ensino, ele
insistiu na tese de que sem uma taxação dos ricos o Brasil não terá
dinheiro para a educação. No fundo, sua tese é a da velha esquerda: só
quando houver uma “correlação de forças” mais aguda, em que a esquerda
possa, então, colocar na jogada para valer a tese de expropriar os
ricos, é que iremos vislumbrar um horizonte real para se ter dinheiro
para resolver o problema educacional. Lembramos a ele que se isso não
está no horizonte, então a solução que ele coloca é, na prática, a de
cruzar os braços. E mais: lembramos também que com o dinheiro que temos
os problemas se resolveriam sim, caso esse dinheiro fosse bem gasto. Por
exemplo: o Haddad enquanto ministro da Educação gastou mais em
propaganda política do que em obras relativas à propaganda! Assim,
deixou o ministério sem condições de arcar com as necessidades dos
professores, que ele sabia que viriam. A greve de agora, na gestão
Mercadante, nada é senão uma bomba relógio armada pela
irresponsabilidade do Haddad (que agora, tendo saído candidato, põe na
mesa o fato que explica o gasto com propaganda no MEC). Além do mais, o
próprio Haddad, do partido do Safatle, injetou uma nota preta no ensino
particular para o Prouni, que nada mais é que um sistema fraudulento e
sem vergonha de beneficiar os empresários que não pagam impostos. Esse
dinheiro, vertido para o ensino público, aí sim seria bem utilizado. Mas
isso, para Safatle, parece não poder ser dito. Talvez por amores ao
Haddad, mas talvez e mais provavelmente porque isso quebra com a ideia
da esquerda atávica de que é necessária a revolução que irá ampliar os
impostos dos ricos não para resolver o problema da sociedade e, sim,
para resolver o problema da educação. Espera-se um tiro de canhão para
pegar uma mosca!
Ora, mas também aí Safatle não mudou de
opinião. Ficar sem saída e na parede não o fez refletir e ver que seus
argumentos não davam conta do problema. E é sobre isso que eu falo: qual
a razão pela qual várias pessoas, cujo ofício é pensar, é refletir,
evitam exatamente o pensar e o refletir. Seus dogmas, seus vínculos
partidários e seus esquemas mentais são mais importantes para elas! Elas
parecem desconhecer a situação em que estão envoltas em paradoxos e
contradições. É como se a lógica formal não valesse nada!
Enquanto as pessoas cujo ofício é pensar
(e que recebem da sociedade para tal) se preocuparem antes com a
inculcação ideológica da juventude que com o pensamento reflexivo, nós
vamos ver na Internet isso que temos visto hoje: muita gente não
querendo pensar. Pensar cansa, dói. E se cansa e dói até os
profissionais do pensamento, imagine então os outros.
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* Filósofo, escritor e professor da UFRRJ
Fonte: http://ghiraldelli.pro.br/2012/09/06/comentando-sobre-safatle-no-hora-da-coruja/

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