Entrevista
Como veículos não tripulados podem mudar nosso cotidiano
RESUMO
Em entrevista à Folha, a professora da Universidade Harvard,
Gabriella Blum defende que os "drones", veículos não tripulados, serão
utilizados pela sociedade civil dentro de pouco tempo. Muito usados em
atividades militares, as engenhocas serão utilizadas na forma de
brinquedos, aspiradores de pó e na vigilância policial.
O futuro é dos "drones", e o futuro está muito mais perto do que você
imagina. A palavra que define os veículos não tripulados, operados
remotamente no ar, na terra ou na água, foi roubada do inglês (significa
"zangão"). Hoje eles são produzidos em pelo menos 45 países, inclusive
no Brasil.
Antes exclusivos do arsenal militar, começam a migrar para o cotidiano
na forma de aspiradores de pó, brinquedos e sistemas de vigilância
policial. E, em um futuro próximo, talvez na forma de aranhas que
poderiam matar você no banheiro de sua própria casa.
A sorrateira aranha -a assassina perfeita, que não deixa pistas e oculta
o mandante- é uma imagem exagerada que a professora de leis
humanitárias Gabriella Blum, da Universidade Harvard, criou para
sublinhar que esse tipo de robô não está mais confinado às operações
contrainsurgentes conduzidas pelos americanos no Afeganistão e no
Paquistão.
Especialista em legislação de conflitos armados e operações de
contraterrorismo, a pesquisadora israelense alerta que a banalização dos
drones não só vai embaralhar as leis da guerra, mas também a vida em
sociedade, ao transformar qualquer indivíduo em mini-Exército potencial.
O cenário que Gabriella desenha no ensaio "Invisible Threats" (ameaças invisíveis, leia em bit.ly/invisiblethreats) tem as cores sombrias de "Blade Runner" (1982), com o perturbador agravante de soar mais iminente e verossímil.
Diferentemente do filme de Ridley Scott no qual Harrison Ford vive um
caçador de androides, o ensaio trata de fatos já em curso, que podem
alterar nosso modo de convivência, com a disrupção do contrato social e a
ascensão de uma sociedade de todos contra todos.
Adaptar regras e leis a essa realidade, diz Gabriella, será tarefa
custosa e sempre em atraso, já que a tecnologia avança mais do que nossa
capacidade de regular.
Gabriella concedeu à Folha, por telefone, a entrevista a seguir.
Folha - Estamos preparados para os drones em nosso dia a dia?
Gabriella Blum - Preparados ou não, é a realidade. Como
sociedade, não estamos. Ainda pensamos em drones como algo da esfera
militar, associamos a algo com o Paquistão ou o Iêmen, uma coisa de zona
de guerra, operada pelo governo.
Estamos longe de aceitar que será uma parte mais endêmica da vida. Mas a
polícia de Nova York já fala em drones para vigilância. Na internet, no
site diydrones.com, você pode comprar um drone ou aprender a fazer um.
Veremos gente usando como brinquedo, e talvez isso nos conscientize.
No nosso imaginário, a evolução da robótica nos levaria a um cenário
como o de "Blade Runner". Essa era a "ameaça". O que faltou ao debate?
Seja com a internet ou com o fogo, toda tecnologia tem uso para o bem e
para o mal. Toda vez que uma delas surge, surgem visões do fim do mundo.
Isso não é razão para temer a evolução tecnológica, já que os
benefícios tendem a ser maiores que os riscos, e essas visões raramente
se concretizam.
Com a robótica é assim. O que falta ao debate, sobretudo no caso dos
drones, é entendermos que isso não é mais questão do governo. Como a
internet e a bioengenharia, não é algo de que o governo seja dono ou
sobre o que exerça monopólio. A tecnologia existe para todos.
Por que nos falta essa consciência?
As pessoas não foram expostas a outros usos [além do noticiário de
guerra]. É preciso saber que drones não são algo que o governo fabrica,
mas que é desenvolvido por empresas privadas e comprado pelo governo; é
preciso saber que há drones à venda na internet; que as universidades
dos EUA e de outros 44 países estão trabalhando para desenvolvê-los com
propósitos benéficos -o que nos traz de volta a questão do duplo uso.
Veja a aplicação na vigilância. Eles podem ser usados para perseguir
terroristas e criminosos, ou para ONGs rastrearem refugiados. Só que o
público não nota como isso ficou comum e ficará mais ainda.
Seria possível regular um mercado como o de drones?
A regulamentação é complicada porque se dá em dois eixos. O primeiro é a
questão de política. Veja o caso da internet. Queremos liberdade de
informação, sem censura. Ao mesmo tempo, tememos as consequências da
liberdade total, ameaças à segurança e à proteção da propriedade
intelectual.
No caso dos drones, podemos não gostar que a polícia de Nova York nos
vigie como um "grande irmão", mas é bom que ONGs possam usá-los com
propósito humanitário. As regras teriam que equilibrar valores
concorrentes que prezamos como democracia.
O segundo eixo é a velocidade. A tecnologia sempre avança mais rápido do
que qualquer regulamentação, fazendo com que, no momento em que a
regulação esteja pronta, ela se torne obsoleta.
Além disso, sempre há brechas: se houver uma lei para drones vigilantes,
ainda poderemos comprar um de brinquedo e acoplar uma câmera. É algo
difícil de policiar.
Seu ensaio afirma que o conceito de soberania mudará. A banalização
dos drones dificultará a adaptação dos Estados aos atores não estatais?
É uma ameaça, e não acho que seja debatida ou pensada como deveria. O 11
de Setembro modelou o discurso nos EUA. Passamos a discutir paradigmas,
guerra vs. crime, território vs. extraterritório, doméstico vs.
internacional, cidadão vs. estrangeiro. O terrorismo transnacional
borrou essas categorias. Não só ele, mas o mundo cibernético, o
comércio, as pandemias.
A forma certa de pensar nos drones é como tecnologia de poder às massas,
que permite a grupos e indivíduos desafiar o Estado com meios que antes
eram monopólio de outros Estados. Isso dissemina ameaças e
vulnerabilidades. Todo indivíduo será uma ameaça potencial e
potencialmente vulnerável.
Seremos mini-Exércitos.
Sim. Pense no Estado. Se você olhar [Thomas] Hobbes [1588-1679], a ideia
é que há um contrato social pelo qual os indivíduos, para se
preservarem do estado de natureza, da anarquia, abdicam do direito de
usar poder e o transferem ao governo, que os protege de si mesmos e de
ameaças externas.
Os países têm hoje diferentes graus de sucesso nessa proteção. A
preocupação com esse nível de poder às massas é que o governo precisará
proteger as pessoas de muito mais fontes potenciais de ataque. É mais
fácil proteger um país de outros 200 do que proteger cada indivíduo dos
outros 7 bilhões.
Os drones vão permitir ferir ou matar sem ser identificado.
Sim, há contratendências. A tecnologia nos faz viver por mais tempo e
melhor, e isso contribui para uma redução da violência e da agressão.
Mas, se você distribui essas tecnologias pelo mundo ao mesmo tempo em
que há um declínio do poder do Estado, a preocupação com a
democratização da violência é real.
Esse é o debate sobre a posse de armas nos EUA. Ele só vai piorar?
Os grupos de defesa dizem que a resposta às armas não é regulamentação,
mas mais armas. Não creio que funcione. O caso das armas é um exemplo da
dificuldade de regular. A ideia de balanço de poder pode ser entendida
no contexto da Guerra Fria [1945-1991], com duas potências, simetria,
mediadores. Mas não se o equilíbrio buscado é entre milhões de pessoas.
O papel dos Exércitos vai mudar?
Acho que já está acontecendo. Há robôs sendo desenvolvidos para servir
na infantaria, fazer remoções médicas. Mas há perguntas sobre até que
medida uma máquina pode substituir um ser humano na tomada de decisões e
em que momento é preciso que um ser humano avalie uma ação destrutiva.
Veremos uma demanda crescente nas Forças Armadas por gente com
conhecimento em tecnologia. Mas muitas outras funções serão executadas
por máquinas. Uma ideia a ser evitada é a de que poderemos resolver
nossas guerras com máquinas. Para vencer uma guerra, é preciso causar
dor, e, para causar dor, é preciso matar gente, não destruir máquinas.
Isso vai trazer as bases domésticas para a linha de frente e embaçar
distinções entre civis e combatentes. Os conceitos terão de ser
revistos, sobre conflito, inimigo, alvos legítimos e mesmo violência em
geral.
Pode haver ascensão, da parte dos Estados, de regras de combate definidas no meio do jogo, como na chamada Guerra ao Terror?
Acho improvável um acordo internacional sobre uso militar dessas
máquinas. O que vejo são duas tendências opostas. Uma é a maior
cooperação entre nações, porque será preciso localizar indivíduos, e
fica turva a jurisprudência.
Vejo maior cooperação porque as fronteiras serão ainda menos relevantes,
e, ao mesmo tempo, mais ações unilaterais -quando não houver
cooperação, os países mais fortes agirão sozinhos.
Nas guerras, acho que veremos uma evolução a um policiamento mais
agressivo. Não deve haver mais um coletivo anônimo de uniforme que você
possa identificar. Será preciso investir em inteligência para saber quem
está por trás de um ataque e então ir atrás.
Isso já ocorre?
Um pouco no mundo cibernético, quando o governo tenta perseguir um grupo
como o Anonymous [de hackers] e pegar um membro para revelar os demais.
E há a ascensão de grupos justiceiros. Surge uma nova forma de
"justiceiros comunitários", cada vez mais cidadãos tentam fazer o papel
do governo [em segurança]. Isso é perigoso.
A sra. lista usos positivos dos drones. Por que descrever o pior cenário?
Isso é apocalíptico, mas não inimaginável. Abro o ensaio com a aranha
porque queria humanizar o cenário. Para passar a mensagem de que não é
uma ação do governo no Paquistão, que não vai afetá-la porque você não é
um terrorista na Somália, mas algo que será parte inerente das nossas
vidas.
Não que eu ache que todos entraremos no banheiro e encontraremos
aranhas-robôs assassinas. Mas em alguns anos estaremos cercados de
drones que farão coisas maravilhosas, mas que poderão fazer coisas
horríveis.
A discussão é o que isso vai mudar fora do campo de batalha e o que significa viver cercado por essas máquinas.
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Reportagem por LUCIANA COELHO
Fonte: Folha on line, 05/08/2012
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