Paulo Ghiraldelli Jr*
O
professor Luís Felipe Pondé acredita que antes reagimos para salvar
nosso cotidiano que nos mobilizamos para mudar as coisas por termos
ouvido o clamor pela justiça em algum lugar.[1]
Essa ideia é aparentemente verdadeira. Todos os dias nós escutamos
algum grupo pedir justiça em algum canto da Terra e nada fazemos, mesmo
quando podemos fazer alguma coisa. No entanto, mesmo que o nosso
dia-a-dia seja um tédio ficamos deveras revoltados, e vários entre nós
se comprometem com ações radicais, se esse cotidiano é ameaçado. O erro
de Pondé está em acreditar que justiça seja uma coisa e reclamar do
cotidiano fustigado ou desfeito é outra coisa. Não é.
Na maioria das vezes os grandes
discursos que teorizam e/ou clamam por justiça não nasceram senão do
cotidiano ameaçado, efetivamente ou como uma possibilidade. Ninguém vira
fera pelo cotidiano ameaçado excluindo a possibilidade de, junto da
ira, criar sofisticadas narrativas a respeito da história dos que se
levantaram por justiça. Uma boa parte dos que viram fera não deixa de
lado a oportunidade de chamar a filosofia para justificar o levante por
justiça bem como a própria noção de justiça. Pondé parece desconhecer
esse nexo e então ele acaba por acreditar que as grandes filosofias que
pediram justiça social ou pregaram algum igualitarismo eram falsas, até
mentirosas. Sem dúvida que isso é um erro.
O erro advém exatamente de Pondé não
levar a sério a base da filosofia ocidental, ou seja, Platão. Foi com
Platão que criamos filosoficamente o nosso primeiro grande tratado sobre
a justiça – A República. Ora, por qual razão Platão quis
colocar ali a descrição de uma cidade justa? A resposta é simples e
clara, admira-me de Pondé não tê-la levado em conta: salvar o cotidiano.
O nosso primeiro grande tratado de filosofia e, enfim, nosso primeiro
livro completo de filosofia no Ocidente tem como objeto a justiça e
esta, por sua vez, não é outra coisa senão o dispositivo pelo qual a
vida pode ser a mais ordinária possível – tão ordinária que identificada
antes com um sistema de castas que de classes, ou seja, a de uma
sociedade com o menor número de mudanças possíveis.
Platão não escreveu A República
como quem pinta um quadro e quer vê-lo exposto de modo a criar frenesi
nos frequentadores de galerias. Platão não escreveu uma poesia para ser
declamada, fazendo nobre e plebeus caírem em prantos. Platão não falou
da justiça como quem usa da retórica do modo que usamos o vinho, para o
deleite bêbado. Não há nenhum pedido de êxtase extraordinário que deve
ser alcançado pela leitura de A República. É um livro em que a
filosofia toda é construída, em todas as suas áreas futuras, de modo que
a cidade que garante o cotidiano monótono seja a mesma coisa que a
cidade justa. Justiça e monotonia do cotidiano se equivalem em Platão
mais do que a noção banal de reparação, desenvolvida por outros
filósofos. Nessa tradição de Platão estiveram Rousseau e Marx. Ambos
falaram de utopia e revolução, coisa que Platão não falou. Mas Rousseau e
Marx não falaram de revolução para se tornarem revolucionários ou para
viverem como revolucionários. Mais do que quaisquer outros, eles foram
amantes do cotidiano. No entanto, sabiam muito bem que eles próprios não
teriam um cotidiano saudável (e não tiveram) em uma situação em que não
se pudesse ter o que imaginavam como sendo justiça.
A cidade justa de Platão é a cidade em
que as pessoas não fazem aquilo para o qual não estão vocacionadas. Ela é
a cidade em que a divisão social do trabalho é garantida pela
administração do Rei filósofo que, diferente do Rei comum, não escorrega
para decisões que possam ser controversas entre as elites, fazendo-as
divergir de modo a, no limite, criar partidos em guerra e provocar a
própria guerra civil. A guerra é a injustiça. A guerra civil é a
injustiça à medida que é o fim do cotidiano. Rousseau e Marx pensaram
exatamente assim, ao menos quanto a este tópico específico: a sociedade é
boa quando ela não tem que tomar decisões importantes segundo um rumo
incerto, capaz de provocar divergências que levam os seus cidadãos a
seguirem os partidos das elites em um conflito que desestrutura a vida
cotidiana.
Caso Pondé pensasse um pouco nesses meus
termos, tenho certeza que ele mudaria de ideia. Pois não se sustenta
nem um pouco a tese de que cotidiano calmo e discurso justiceiro são
caminhos diferentes.
[1] Veja: Pondé. F. F. Contra um mundo melhor. São Paulo: Leya, 2010, pp. 146-7
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* Filósofo, escritor e professor da UFRRJ
Fonte: http://ghiraldelli.pro.br/2012/08/16/
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