Referência em tecnologia, inventor e empresário, Kurzweil toma 250 pílulas ao dia para ver o tempo em que a máquina poderá reproduzir e conservar a complexidade humana
É verdade. Ele toma pílulas como se fossem M&Ms.
Durante um almoço em São Paulo, entre uma garfada e outra, o cientista
Ray Kurzweil sacou do bolso um saco cheio de comprimidos e começou a
ingeri-los com a maior naturalidade, para o estranhamento de quem estava
à mesa com ele. O empenho em relação à própria saúde é motivado por uma
meta nobre: Kurzweil, de 64 anos, sonha em ser imortal. Ou, no mínimo,
chegar com vitalidade e clareza de raciocínio a 2029 - ano em que ele
acredita que a fusão entre máquinas e homens estará completa.
A teoria está detalhada no livro Singularity is Near (A
Singularidade Está Próxima), publicado em 2005 mas ainda sem tradução
para o português. Segundo Kurzweil, essa fusão permitirá eternizar o
conhecimento gerado ao longo da história, com máquinas que replicam
"toda a capacidade humana". Antes que se descarte Kurzweil como um
lunático que toma emprestadas ideias de ficção científica que vão de
Philip K. Dick (Blade Runner) a George Orwell (1984), é preciso levar em
conta que sua influência no mundo da tecnologia já se estende por 50
anos.
Ainda no ensino médio, em 1963, ele desenvolveu um programa de
computador que acabou sendo aproveitado pela IBM. Durante a faculdade,
criou um software que comparava as aspirações de estudantes com a oferta
de cursos das faculdades americanas - negócio vendido em 1968 por US$
100 mil. Mais tarde, em sua própria empresa, a Kurzweil Computer
Products, o cientista inventou o primeiro leitor óptico de caracteres. A
companhia foi adquirida pela Xerox anos depois. Em 1984, após conhecer
Stevie Wonder, Kurzweil desenvolveu o primeiro sintetizador digital de
instrumentos capaz de enganar os ouvidos dos músicos mais
experimentados.
Ele acredita que as grandes inovações são resultado da conexão
pessoal do inventor com um determinado problema. "A inovação vem do
indivíduo e de sucessivos fracassos. As melhores ideias surgem
justamente dessa paixão individual." Isso explica seu interesse pela
nutrição - e seu gosto pelos comprimidos. Após perder o pai ainda jovem
para uma doença cardíaca, Kurzweil passou a se dedicar para não ter o
mesmo fim. Estudou tanto que escreveu um livro a quatro mãos com o
médico Terry Grossman: A Medicina da Imortalidade, disponível no Brasil.
"A inovação vem do
indivíduo e
de sucessivos fracassos.
As melhores ideias surgem
justamente
dessa paixão individual."
Entre os pupilos atuais de Kurzweil está um garoto de 14 anos
que começou a pesquisar sobre câncer no pâncreas para desenvolver um
sistema de detecção precoce da mesma doença que custou a vida de um tio.
Mas não se inova apenas motivado por situações de vida e morte. O
cientista gosta de citar o caso da blogueira Tavi Gevinson, eleita pela
revista Fast Company uma das 100 pessoas mais criativas de 2010. Ela
começou um blog de moda aos 11 anos. Ainda adolescente, desenhou sua
própria linha para a rede Target, nos EUA, e apareceu em editorial da
Harper’s Bazaar. "O importante é ter algo a dizer. O assunto não
importa."
Kurzweil tem uma visão "humanística" da tecnologia e defende que
a evolução das máquinas poderá ajudar a solucionar a escassez de água e
comida nas regiões mais pobres do mundo. Ao mesmo tempo, concentra boa
parte de seus argumentos na competição entre homens e máquinas. "Um
computador já ganhou dos dois maiores vencedores da história do programa
Jeopardy! (programa de TV americano de perguntas e respostas)", diz
ele, reforçando sua causa a favor da inteligência artificial.
Ponto de fusão. A "singularidade" propagada por
Kurzweil, em que a máquina será uma espécie de continuação do homem, já
está em curso. "Não será algo que começará automaticamente em 2029. É
uma mudança que já está acontecendo", explica o cientista. Segundo ele, a
relação das pessoas com seus smartphones é um exemplo claro da
tendência. "As pessoas já sentem que esses aparelhos são uma extensão do
seu cérebro, ainda que não estejam dentro de sua cabeça", explica. "Na
verdade, as informações do smartphone não estão nem dentro do hardware;
elas residem na nuvem, com uma capacidade exponencial de armazenamento
em relação ao cérebro humano."
"Achei a visão dele muito cartesiana. Pareceu
que elimina a contribuição da emoção
para as decisões humanas."
(René de
Paula Júnior - executivo brasileiro)
Depois de ler a versão em inglês de Singularity is Near, René de
Paula Júnior tornou-se um dos poucos brasileiros a participar de um
curso presencial na Singularity University, fundada por Kurzweil e
outros cientistas em 2007. Ele lembra que o fundador da escola deu uma
palestra à distância, mas em grande estilo. Falando em um sistema de
videoconferência, apareceu em uma forma que lembra o sistema que
"ressuscitou" o rapper Tupac Shakur como holograma 3D no último festival
de música de Coachella, discursando sobre a inevitabilidade da fusão
homem-máquina. "Parecia um avatar", lembra.
O executivo brasileiro, que já passou por Microsoft, Sony, Yahoo
e hoje está na agência CuboCC, diz que o curso permitiu que os alunos
tivessem contato com cientistas que desenvolvem tecnologia de ponta para
a Nasa. "Fiquei imerso com autoridades em nanotecnologia e segurança da
informação", lembra. Em relação ao discurso de Kuzweil, no entanto,
ainda restou uma dúvida: "Achei a visão dele muito cartesiana. Pareceu
que elimina a contribuição da emoção para as decisões humanas."
Para ler e ouvir Kurzweil
Embora a obra definitiva de Ray Kurzweil não esteja disponível
no Brasil - com mil páginas, ‘Singularity is Near’ teria de custar mais
de R$ 100 para ser economicamente viável, segundo um editor -, dois
livros importantes do inventor/cientista/empresário/professor estão
disponíveis no Brasil: ‘A Medicina da Imortalidade’, sobre nutrição e
envelhecimento, e ‘A Era das Máquinas Espirituais’, espécie de gênese do
argumento do autor sobre a união de inteligência humana e artificial.
Ele participará esta semana do evento ‘Fronteiras da Gestão’, da HSM, em
São Paulo.
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Reportagem por Fernando Scheller, de O Estado de S. Paulo
Fonte: Estadão on line, 19/08/2012
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