segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Denver: um massacre útil ao poder

 Atilio A. Boron*

   
O massacre que ocorreu em um cinema no subúrbio de Denver desencadeou, igual a tantas outras atrocidades semelhantes, o previsível coro de lamentos que por sua vez se pergunta por que frequentemente aparecem nos Estados Unidos monstros capazes de perpetrar crimes como os do sombrio Coringa.

Na realidade, uma análise que deixe de lado a complacência habitual com as coisas do império não poderia deixar de notar uma causa de fundo: como a mais recente expressão da sociedade burguesa dos Estados Unidos é também um lugar onde a alienação dos indivíduos chega a níveis sem paralelos na escala universal.

Não deveria surpreender em nada que comportamentos como o do jovem James E. Holmes – quantas matanças indiscriminadas ocorreram nos últimos anos? – aflorem periodicamente para semear a dor na população estadunidense.

Uma sociedade alienada e alienante que gera milhões de viciados (sem que exista nenhum programa do governo para prevenção e combate ao vício); milhões de vigilantes dispostos a impor a lei e a ordem por sua conta, perseguindo as pessoas por sua cor ou por suas características físicas; e outros milhões que, como o tal Holmes, podem comprar em qualquer loja de armas um fuzil, pistolas, revólveres, granadas, bombas de gás e todos os apetrechos da parafernália militarista e, ainda, obter licenças para utilizar legalmente todo este arsenal mortífero.

A recorrência desse tipo de massacres fala de um problema estrutural, cuidadosamente tratado nas explicações convencionais que, invariavelmente, falam de um ser extraviado, de um louco, mas sem nunca se perguntar quais as causas estruturais que nessa sociedade produz loucos em série. Uma sociedade que se apresenta com características paradisíacas, como a terra da grande promessa, como o país em que qualquer um pode triunfar e ganhar dinheiro a rodo, poder e prestígio, com tudo que estes atributos carregam como benefícios colaterais e que, na realidade, são metas acessíveis, no melhor dos casos, para 5% da população.

O resto, submetido a uma implacável e constante explosão publicitária, mastiga sua impotência e sua frustração. De vez em quando, alguém pensa que a solução é sair matando gente indiscriminadamente; outros mais inofensivos decidem suicidar-se lentamente com as drogas.

Mas se a alienação generalizada da sociedade norte-americana é a raiz, outros fatores combinam para produzir comportamentos hediondos como o de Holmes. Em primeiro lugar o grande negócio da venda de armas, amparado sob o pretexto do direito garantido pela constituição, e que na realidade é o complemento necessário que legaliza, no plano da sociedade civil, o “complexo militar-industrial” que domina a vida econômica e política dos Estados Unidos há pouco mais de meio século. Aqueles que fabricam armas devem vender, seja ao governo dos Estados Unidos (que assim precisa fabricar guerra pelo mundo todo ou fabricar cenários propícios a ela), seja aos indivíduos ameaçados pelo espectro da insegurança onipresente.

Diversos analistas afirmam que só nas fronteiras entre o México e Estados Unidos existem umas 17.000 lojas onde se pode adquirir um fuzil AK47 com a mesma facilidade com que se compra um hambúrguer, o que além de ser uma aberração grotesca fala bem da consistência de uma política oficial que ampara tal absurdo.

Em segundo lugar, a indústria do entretenimento (Hollywood) instiga permanentemente a imaginação das dezenas de milhões de estadunidenses com uma inundação incontrolável de séries, vídeos e filmes onde as formas mais cruéis, atrozes e aberrantes de violências são expostas com perverso rigor de detalhes.

Sempre houve isso, mas agora sua proporção tem crescido exponencialmente e, em certos dias e horários, é praticamente impossível assistir na televisão outra coisa que não seja exaltação do sadismo em todas as suas formas, que só uma imaginação doentia pode conceber. A censura que se exerce – ora de modo sutil, ora de forma completamente descarada – para dificultar ou impedir que se conheçam documentários de cineastas críticos do sistema ou que falem bem de países como Cuba, Venezuela – Michael Moore e Oliver Stone, por exemplo – não existe na hora de preservar a saúde mental da população exposta ao vômito de atrocidades e crueldades produzido por Hollywood.

Deve ser por alguma razão... E essa "razão" é que tanto a venda descontrolada de armas de todos os tipos como a violência induzida de Hollywood são totalmente funcionais para o projeto de dominação da burguesia americana.

Noam Chomsky tem mostrado ao longo de décadas como se tem aperfeiçoado os mecanismos que lhe permite dominar com terror, sabendo que do medo, a paixão mais incontrolável dos homens, brota a submissão aos poderosos.

Uma burguesia que introduz o medo na população mostrando a todos que nada está a salvo e que para proteger suas pobres e indefesas vidas terão de renunciar a mais e mais direitos, dando ao governo a capacidade de vigiar todos os espaços públicos, monitorar seus movimentos, interferir em suas chamadas telefônicas, interceptar seus e-mails, controlar suas finanças, saber o que compra, em que gasta o seu dinheiro, quem lê, com quem conversa e como e quando o fazem.

Um inimigo externo – agora o "terrorismo internacional", antes o "comunismo" – apresentado como onipotente e de uma crueldade sem limites é complementado internamente pela ameaça encarnada nos milhares de assassinos que se misturam com o resto da população, como Holmes, cuja neutralização faz necessário dar à polícia, ao FBI, à CIA e ao Departamento de Segurança Interna todos os poderes necessários.

Era o que colocava, em 1651, Thomas Hobbes em seu Leviatã como uma metáfora heurística, impossível de encontrar na realidade, por seu extremismo: a transferência que os indivíduos fizeram de quase todos os seus direitos ao Soberano em troca de preservar a vida, acabou se tornando uma trágica realidade nos Estados Unidos de hoje.
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* Atilio Borón é doutor em Ciência Política pela Harvard University, professor titular de Filosofia da Política da Universidade de Buenos Aires e ex-secretário-executivo do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (CLACSO).
Tradução: Daniela Mouro, Correio da Cidadania.
Fonte:  http://www.correiocidadania.com.br/04/08/2012
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