Cassiano Terra Rodrigues*
A história da relação entre filosofia e cinema pode ser escrita de
muitas maneiras. Posso dizer que prefiro “estória”, ainda que digam os
dicionários essa palavra não exista. O que farei doravante não é mais
que apresentar superficialmente algumas linhas de aproximação.
A relação sempre foi tensa. Os filósofos nem sempre se deixaram levar
pelo cinema, ou ao cinema, pacificamente. Talvez pela natureza bastante
antirracional e imóvel que a plateia assume na sala de cinema, como se,
ao entrar nela, entrasse na caverna de Platão. O cinema, ao contrário,
sempre levou a filosofia às telas. Arrisco dizer que o cinema sempre
levou a filosofia além de si.
Projeções de simulacros, representações falsas do real, ou mesmo
cópia da cópia imperfeita do mundo sensível, feita de imagens e
pseudo-conceitos, seja lá o que for, o cinema não é a arte mais
apreciada pelos filósofos, que comumente preferem a linearidade e a
facilidade para a dedução do texto escrito ou as artes feitas
diretamente pela mão do homem. Não podemos deixar de notar que a
proximidade entre o cinema e o mito (ou alegoria) fundador da filosofia
faz pensar que à filosofia, em sua busca pelo conceito, cabe o papel de desmistificar
as imagens impuras do cinema. Ou então, que ao cinema cabe a função
meramente apaziguadora e, portanto, secundária, de aliviar a mente após o
sério e pesado exercício intelectual – assim era que Wittgenstein se
dizia fã dos filmes de Carmem Miranda ou de westerns.
Contemporâneo do nascimento da sétima arte, Bergson é o inventor de
uma ideia que Gilles Deleuze tornará bastante famosa: a
imagem-movimento, apresentada em seu livro Matéria e Memória, de 1896.
Mas é só no quarto capítulo de A Evolução Criadora, de 1907,
que a ligação com o cinema aparece. O capítulo se chama “O mecanismo
cinematográfico do pensamento e a ilusão mecanicista”, e nele Bergson
afirma categoricamente: “o mecanismo de nosso conhecimento vulgar é
cinematográfico”. Em outras palavras, o pensamento se move
cinematograficamente, imagem em movimento em ação. A maneira como nosso
aparato cognitivo reproduz o devir, a flexibilidade e a variedade da
vida, é a mesma maneira como o cinematógrafo reproduz o movimento a
partir de fotografias estáticas – criando a ilusão do movimento pela
sucessão muito rápida das fotografias individuais. Nosso aparelho
cognitivo, incapaz de registrar os detalhes e particularidades
inumeráveis do devir, compõe artificialmente uma imagem geral em
movimento, abstraída de várias outras imagens de estados particulares.
Nossa percepção, nossa inteligência e nossa linguagem, assim, dão-nos
ilusões, imitações imperfeitas e infiéis do devir:
“Em vez de nos prender ao devir interior das coisas, colocamo-nos
fora delas para recompor o seu devir artificialmente. Temos visões quase
instantâneas da realidade que passa e, como elas são características
dessa realidade, basta-nos alinhá-las ao longo de um devir abstrato,
uniforme, invisível, situado no fundo do aparelho do conhecimento, para
imitar o que há de característico nesse mesmo devir. Percepção,
intelecção, linguagem em geral procedem assim. Quer se trate de pensar o
devir ou de exprimi-lo, ou até de o perceber, o que fazemos é apenas
acionar uma espécie de cinematógrafo interior.” (p. 333).
Para Bergson, pensar cinematograficamente não é bom. Na verdade, a
nossa única maneira de pensar capta mal o movimento do devir. Justamente
por proceder cinematograficamente, troca o movimento real por um falso
movimento, uma ilusão de movimento. Temos de aceitar essa nossa
imperfeição: nosso pensamento cinematográfico falsifica o real.
O juízo negativo sobre o cinema é repisado até por alguns de seus
entusiastas. Levando o cinema a sério, Walter Benjamin o compreendia no
contexto da perda da aura das obras de arte. “Aura” é uma noção
benjaminiana para designar o conjunto de características que fazem de
uma obra de arte o que ela é: o fato de ter sido feita por um artista,
em dado momento histórico e social definido, dá a uma obra de arte sua
originalidade, sua unicidade e sua historicidade. Uma cópia, por isso,
não tem o mesmo valor. Já o cinema é produzido industrialmente, e não
por um único artista. A estética cinematográfica dependeria
completamente de suas condições industriais de produção e reprodução:
obras de arte (re)produzidas tecnicamente por máquinas, como quaisquer
outras mercadorias, fotografias e filmes não têm a aura de uma pintura,
uma escultura ou mesmo uma apresentação teatral. Por serem objetos de
consumo de massa, reprodutíveis ad infinitum, perderiam o
caráter de fenômeno histórico único e original das obras de arte
tradicionais. Assim é que o cinema, ainda mais que a fotografia,
traduziria perfeitamente a desmistificação e a reificação da realidade
social moderna, jogando nas telas as imagens vivas de um mundo em que
tudo é comercializável, substituível e superficial. É nessa chave que
devemos entender o elogio benjaminiano a Chaplin: denunciador da
alienação da classe trabalhadora, Chaplin mostraria como ninguém o lado
negativo do nosso mundo, o mesmo mundo em que nasce o cinema. Uma marca
negativa de nascença da qual a correta utilização política o livraria,
assim como só uma revolução poderia transformar o mundo para melhor.
Benjamin, escrevendo na década de 1930, preocupava-se com a ascensão
do nazi-fascismo na Europa e com a utilização do cinema como instrumento
de propaganda política. Apesar de crítico, Benjamin não evita o juízo
sobre o papel secundário do cinema relativamente à política – o cinema
seria um meio, certamente privilegiado, de produção e transmissão de
ideologia política, mas ainda assim um meio. Sua principal tese quanto à
natureza estética do cinema é a da tactilidade da imagem. Em outras
palavras, a imagem cinematográfica é táctil, isto é, toca a
percepção humana de uma maneira como nenhuma outra arte o faz. Pela
combinação de imagem e movimento, a construção cinematográfica do
espaço-tempo provoca um choque perceptivo no observador, a tal
ponto que o distrai completamente, absorvendo-o. A ilusão de realidade
assim atingida é incomparável. Outra aura parece surgir, uma nova
fascinação nasce da exposição aliada à reprodução em massa. Por isso
mesmo o cinema presta-se tão bem a usos políticos.
A conclusão de Benjamin é direta: se o fascismo utiliza o cinema para
estetizar a política e, com isso, produzir alienação em massa, por que é
que o comunismo não faz o mesmo? Ora, Benjamin não desaprova a
utilização instrumental do cinema, mas apenas a finalidade ideológica
com a qual ele é utilizado. Em lugar de usar filmes para espetacularizar
desfiles militares, ele defende a politização da estética. Ao
contrário do fascismo, o comunismo deveria se aproveitar da peculiar
estética cinematográfica para conscientizar, e não alienar as massas.
Nada do que vemos na tela é real; podemos mudar ou não o real, conforme a
ficção projetada nos persuadir a uma ou outra forma de conduta e
pensamento.
Levou algum tempo para os filósofos abandonarem essa maneira de ver o
cinema. Edgar Morin, por exemplo, chegou mesmo a trabalhar em cinema e
ajudou a definir um gênero próprio de documentário, o cinéma-vérité, cujo marco inicial é considerado ser Crônica de um Verão,
de 1961, co-realizado por Morin em parceria com Jean Rouch. Podemos
citar mesmo Guy Debord, ou então Terrence Malick, que também lecionou
filosofia no Massachusetts Institute of Technology. O
orientador de Malick foi Stanley Cavell. Ele e Gilles Deleuze, na
França, podem ser considerados pioneiros filósofos a desenvolverem uma
substancial reflexão filosófica própria e específica sobre o cinema, sem
inferiorizá-lo frente a formas mais tradicionais de arte e pensamento.
Tanto um como outro se perguntam: o que é feito do pensamento no cinema?
Qual a especificidade do pensamento cinematográfico? E, com essas
perguntas, apresentam uma tese muito forte: cinema é pensamento, cinema é
linguagem, sem nada dever a nenhum real exterior ou quaisquer outras
formas de pensamento e linguagem.
Não vou, aqui, desenvolver uma reflexão sobre as ideias de Cavell e
Deleuze sobre o cinema, inclusive porque me falta competência para tal.
Quero, antes, apresentar mui resumidamente as ideias de Jean Epstein
(1897-1953) e André Bazin (1918-1958). E isso pela simples razão de
mostrar que pensadores do cinema também filosofam e com muita
propriedade. Afinal, filosofar não é uma atividade peculiar a um
profissional chamado filósofo (e, segundo o meu juízo, a
profissionalização da filosofia levou a uma sua decadência atroz).
Para Jean Epstein, a máquina cinematográfica tem uma inteligência
própria, ela é um verdadeiro “filósofo-robô cinematográfico”: “O
cinematógrafo é um desses robôs intelectuais, ainda parciais, que, com a
ajuda de dois sentidos foto e eletro-mecânicos e de uma memória
registradora fotoquímica, elabora representações, quer dizer, um
pensamento, no qual reconhecemos os quadros primordiais da razão” (p.
48). Diferentemente de Walter Benjamin, que entendia a câmera como mero
aparelho técnico capaz de aumentar a percepção humana, de ver o que o
olho humano naturalmente não vê, Epstein chama atenção a que o
cinema coloca em questão o próprio conhecimento. Não se trata apenas de
servir de auxílio aos sentidos humanos; o cinema constrói percepções
inéditas, novas representações, faz-nos ver o invisível, dá-nos a
conhecer o que de outra maneira seria incognoscível. Mais: unindo o olho
inconsciente e automaticamente passivo da câmera ao olho consciente e
subjetivamente ativo do cineasta, o cinema dá corpo vivo à contradição.
Para Epstein, o cinema cria um mundo em que os tradicionais dualismos
filosóficos tornam-se obsoletos (sensível/inteligível,
pensamento/coisas, real/irreal, sonho/vigília etc.) e, assim, vai além
da filosofia (“Le cinéma et les au-delà de Descartes” é título de um de
seus artigos). Ligando espaços e tempos de maneira nova e como só ele
pode fazer, o cinema desbanca uma concepção linear da história e, assim,
faz nascer um novo pensamento visual, capaz de traduzir de maneira
inédita a complexidade do mundo. Não à toa Deleuze dirá que Epstein, ao
fazer a defesa do caráter diabólico do cinema (Le cinéma du diable, outro de seus escritos), consegue ver continuidade e mistura onde antes a filosofia só via dualismo e separação.
A filosofia do cinema dá um salto qualitativo com Jean Epstein. Com
André Bazin, ela afirma definitivamente sua autonomia. E, se com Epstein
temos que o cinema cria uma realidade própria, por outros meios
incognoscível, com Bazin voltamos ao questionamento das relações entre o
cinema e nossa realidade por meio do questionamento da realidade do cinema. Ao tentar responder sem rodeios o que é o cinema, Bazin inicia a mais filosófica das investigações cinematográficas: a ontologia do cinema.
O ponto de partida de Bazin é a fotografia. Em “Ontologia da imagem fotográfica”, de 1945, ele escreve:
“A originalidade da fotografia em relação à pintura reside, pois, na
sua objetividade essencial. Tanto é que o conjunto de lentes que
constitui o olho fotográfico em substituição ao olho humano denomina-se
precisamente ‘objetiva’. Pela primeira vez, entre o objeto inicial e a
sua representação nada se interpõe, a não ser um outro objeto. Pela
primeira vez, uma imagem do mundo exterior se forma, automaticamente,
sem a intervenção criadora do homem, segundo um rigoroso determinismo. A
personalidade do fotógrafo entra em jogo somente pela escolha, pela
orientação, pela pedagogia do fenômeno; por mais visível que seja na
obra acabada, já não figura nela como a do pintor. Todas as artes se
fundam sobre a presença do homem; unicamente na fotografia é que fruímos
da sua ausência. (...). Nesta perspectiva, o cinema vem a ser a
consecução no tempo da objetividade fotográfica. O filme não se contenta
mais em conservar para nós o objeto lacrado no instante (...). Pela
primeira vez, a imagem das coisas é também a imagem da duração delas,
como que uma múmia da mutação” (pp. 13-14).
Parafraseando a tese de Bergson, Bazin confere a ela valor positivo.
Para Bazin, o cinema revela o real e esse real revelado não é isento de
mística, não é absolutamente objetivo. O cinema não faz somente cópia do
real. O cinema não se deixa reduzir a registro documental do real,
ainda que seja útil a arquivos históricos. O cinema revela o real ao
participar de seu ser, de seu devir, repercutindo nele, ricocheteando
nele de certa maneira, tocando “a carne e o sangue da realidade”, de
maneira a nos impor uma tomada de consciência.
O modelo e o exemplo de Bazin é o cinema italiano do pós-guerra, especificamente o neo-realismo,
ou, como ele prefere, alguns filmes dos diretores neo-realistas, por
ele analisados magistralmente em “O realismo cinematográfico e a escola
italiana da Liberação”. Em 1959, em entrevista para a revista Cahiers du Cinéma,
Roberto Rossellini fez uma declaração que ficou famosa: “As coisas
estão aí, por que manipulá-las?” É justamente esse ponto que interessa a
Bazin. O cinema de Rossellini, De Santis, Visconti e De Sica implica
uma tomada de consciência do real que produz a “imagem-fato”. Numa carta
ao editor da revista Cinema Nuovo, publicada com o título
“Defesa de Rossellini”, Bazin afirma que a diferença entre o artista
realista tradicional (Émile Zola, por exemplo) e o neo-realista
(Rossellini, especificamente) está em que o primeiro analisa a realidade
e, de acordo com sua moral, reconstrói essa realidade por meio de uma síntese expressa em suas obras; o segundo, diferentemente, filtra
a realidade por meio de sua consciência. O que o diretor neo-realista
exprime em seus filmes, assim, é um recorte de real escolhido
conscientemente. Mas essa escolha não é moral, ou estética, é ontológica,
“no sentido de que a imagem da realidade que nos é restituída permanece
global, da mesma maneira, se quiserem uma metáfora, que uma fotografia
em preto-e-branco não é a imagem da realidade decomposta e recomposta
‘sem a cor’, mas uma verdadeira marca do real” (p. 352). Ora, o que
Bazin afinal afirma é que a imagem do cinema neo-realista é um signo do real, do tipo que foca nossa atenção fatos particulares e, com isso, metonimicamente significa o real (um signo indicial, se usarmos a terminologia de Peirce).
Eis o ponto: é justamente essa visada específica, que recorta dos
fatos o que interessa ao olhar do diretor, mas sem deformá-los, que
acarreta uma tomada de consciência. Chegamos a construir o sentido ao
vermos passar na tela um fragmento de real após o outro, junto com
outros – eis porque Bazin prefere o plano-sequência à montagem, a
concatenação das imagens-fatos ao corte que produz o conflito. Há, na
tela, um ganho, um a-mais de realidade. O filme ganha sentido
justamente porque não pretende dar sentido ao que já se basta a si
mesmo. E em cada caso, esse ganho é algo diferente: “a beleza plástica
das imagens, o sentimento social, a poesia, o cômico etc.” (p. 354).
Bazin desculpa-se por falar em metáforas, “não sou filósofo”, diz
ele. A importância filosófica de suas reflexões não pode, porém, ser
posta em dúvida. O cinema é ser em ato, sua realidade se faz durante e a
cada seu aparecimento – nenhuma aparência é desqualificada em nome de
uma essência superior e oculta. Mais uma vez, caem por terra os
dualismos tradicionais, borram-se as distinções entre obra e modelo e
mostram-se porosas e pouco resistentes as fronteiras entre real e
irreal. Eis uma costura Epstein-Bazin: “O cinema é a realidade 24
quadros por segundo”, dirá Godard.
Cineminha chinês
Que diriam Epstein e Bazin das telas de LCD, dos pixels, das
imagens eletrônicas? Sua capacidade de auto-organização, que emula a de
organismos biológicos vivos a partir de matrizes matemáticas, parece
confirmar o que os dois autores diziam sobre a realidade
cinematográfica. Parece que o cinema consegue mostrar algo que a filosofia muito tentou e pouco conseguiu demonstrar, ao menos desde que a filosofia é filosofia.
Referências
As duas obras de Bergson citadas podem ser baixadas, em francês, do sítio virtual http://classiques.uqac.ca/classiques/bergson_henri/bergson_henri.html, da Universidade do Québec em Chicoutimi.
Do mesmo sítio virtual, é possível baixar Le Cinéma du Diable, “Le monde fluide de l’écran” e L’intelligence d’une machine, de Jean Epstein: http://classiques.uqac.ca/classiques/epstein_jean/epstein_jean.html
André Bazin, em português, pode ser lido aqui: http://pt.scribd.com/doc/7095758/Bazin-Andre-O-Cinema-Ensaios
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*Cassiano Terra Rodrigues é professor de filosofia da PUC-SP.
Contato: cassianoterra(0)uol.com.br
Fonte: http://www.correiocidadania.com.br/06/08/2012
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