KENNETH SERBIN*
Assassinos em massa têm mais frustrações e desequilíbrio do que projetos políticos
Pouco mais de duas semanas depois do episódio no qual um estudante
universitário matou 12 pessoas e feriu outras 58 em um cinema do
Colorado repleto de jovens, e poucos dias antes de outro indivíduo se
declarar culpado pela tentativa de assassinato de uma deputada federal
americana, Gabrielle Giffords, do Arizona, um veterano do Exército dos
Estados Unidos, revoltado e ligado ao movimento neonazista que defende a
supremacia branca, matou sete pessoas que se preparavam para o culto
num templo sikh em Wisconsin.
Nos últimos 20 anos, os assassinos em massa nos EUA agiram mais de 20
vezes, matando dezenas de pessoas e apavorando para sempre as
comunidades. Desde os acontecimentos do 11 de Setembro, os EUA gastaram
centenas de bilhões de dólares na "guerra ao terror" contra seus autores
estrangeiros. Entretanto, aparentemente não há um fim pelo menos
próximo de uma onda que vem sendo cada vez mais definida como
"terrorismo interno".
O que explica essa negra praga social que ataca o país mais
democrático do mundo - que elegeu seu primeiro presidente negro e onde,
no entanto, existem comunidades e indivíduos que expressam um ódio
profundo? Os EUA têm uma longa história de violência e de preconceitos:
guerras contra os indígenas, a escravidão dos africanos, o tratamento
dos imigrantes como gente de segunda classe ou de não cidadãos, as
restrições em relação às mulheres, o envolvimento em guerras
expansionistas imperialistas. Essa nação fundada em grandes princípios
também colheu sucesso pela espada e pelas armas de fogo.
A conquista do Oeste Selvagem influenciou o ethos de valores
nacionais americanos, fortalecendo-o por um exacerbado individualismo e
coroando-o com a luta pelo sucesso, pela riqueza e pela celebridade. Não
chegou lá ainda? Não se preocupe - a maior sociedade de consumo do
mundo tem inúmeras atrações diversionistas para se entreter - ou para
esquecer de si mesma.
Esses valores tornaram-se ainda mais necessários como cimento social
quando os imigrantes afluíram a nosso país e começaram a ameaçar a
posição da elite protestante.
Como país de imigrantes por excelência, os EUA se enriqueceram com
todos os aspectos positivos - mas também as desvantagens - da
diversidade. Sikhs, muçulmanos, asiáticos, russos, brasileiros - aqui é
possível encontrar representantes de praticamente todo sistema de
crenças, culturas e de todos os cantos do planeta. Essa diversidade é
que torna os EUA um país fascinante, vibrante, jovem - uma nação em
constante renovação e reformulação.
Entretanto, juntamente com o princípio da máxima liberdade
individual, a diversidade também dá espaço para pessoas como o assassino
do Arizona, Jared Loughner, o suposto atirador do Colorado, James
Holmes, e o matador de Wisconsin, Wade Page. Como afirmou o editorial de
um jornal, esses são os "esquisitos" dos EUA.
Porém, particularmente no caso de Page, esse comportamento esquisito
tem profundas raízes históricas que foram odiadas e alimentadas pelo
próprio sistema americano.
Imagine-se o choque e a perplexidade de muitos americanos no final
dos anos 1970 quando um grupo neonazista declarou que desfilaria pelas
ruas de Skokie, Illinois, perto de Chicago, lugar densamente povoado por
judeus, inclusive muitos sobreviventes do Holocausto.
Lembrando o direito de livre expressão, conforme definido na 1ª
Emenda da Constituição dos EUA, a União Americana pelas Liberdades
Civis, ultraliberal, entre cujos membros há advogados judeus, defendeu
os neonazistas. A Suprema Corte emitiu uma sentença favorável aos
neonazistas, que, entretanto, acabaram cancelando o desfile.
De fato, a decisão da Suprema Corte abrandou a crise reduzindo o
interesse para os neonazistas, eliminando sua condição de vítimas da
negação de direitos justos e impedindo que eles usassem o caso como
maneira de fazer publicidade e angariar apoio para sua organização.
No entanto, a decisão claramente defendeu a noção americana de
tolerância para todos os credos religiosos e ideias, independentemente
de quão horríveis pudessem parecer para a maioria da população. Um dos
pilares da democracia americana tem sido precisamente o conceito de que a
maioria não pode pisar nos direitos das minorias.
Tolerância significava também que os neonazistas poderiam continuar
atuando como organização política e social. O governo não a aboliu. O
governo e as organizações dos direitos civis monitoram continuamente os
neonazistas e numerosos outros grupos que atuam nas margens da sociedade
pregando o ódio. Mas enquanto essas organizações ou seus membros não
cometem crimes concretos, as autoridades não podem intervir.
Portanto, a tolerância permite que esses grupos marginais existam.
São poucos os americanos que afirmariam que deveriam ser controlados ou
abolidos, porque fazendo isso estariam contrariando os direitos básicos,
aumentariam desnecessariamente o poder do governo e poderiam ameaçar as
liberdades e os direitos de outras organizações, mais tradicionais. A
tolerância a grupos nas margens faz parte do preço pago pela democracia.
Como na decisão da Suprema Corte sobre Skokie, essa estratégia, que
se mostra tão desconcertante quando os elementos da margem social agem
insuflados por seu ódio, parece ter reduzido o crescimento a longo prazo
de grupos como os neonazistas.
Dados coligidos pelo Southern Poverty Law Center, uma das
organizações que monitoram os grupos que agem movidos pelo ódio,
demonstra que as milícias de ultradireita e defensoras da supremacia dos
brancos cresceram consideravelmente desde a eleição do presidente
Barack Obama, em 2008. Entretanto, o movimento como um todo está cada
vez mais descentralizado e desorganizado. "Há muita frustração e
derrotismo no movimento nacionalista branco", disse um de seus líderes.
A maioria dos massacres ocorridos nas duas últimas décadas envolveu
indivíduos que agiam por conta própria. No caso de Wisconsin, Page se
suicidou, indicando que sua raiva tinha mais a ver com frustrações
pessoais ou desequilíbrio psicológico do que com um projeto político. Ao
que tudo indica, ele não deixou nenhum manifesto - nem mesmo uma nota.
Talvez o maior perigo para a democracia e a tolerância seja
representado por grupos maiores que pregam visões peculiares que atendem
a interesses pessoais. No dia 8, por exemplo, a National Public Radio
(emissora de rádio estatal) transmitiu um relato sobre o escritor e
orador evangélico David Barton, que reuniu ao seu redor um grande número
de seguidores falando da influência do cristianismo na fundação da
república e na redação da Constituição americana. Barton quer que os EUA
se tornem uma nação mais religiosa segundo sua versão particular do
cristianismo tradicional.
Historiadores profissionais refutaram as afirmações de Barton - por
exemplo, de que o escravagista Thomas Jefferson foi um precursor dos
movimentos pelos direitos civis. Entretanto, por causa de seus
seguidores, Barton recebeu grande apoio de políticos republicanos,
inclusive do senador da Flórida Marco Rubio, um possível companheiro de
chapa do candidato Mitt Romney nas eleições presidenciais deste ano.
As ideias de Barton talvez representem uma quimera sobre o que os EUA
deveriam ser - mas o poder de repetir uma mentira, e de aproveitar de
pessoas que não têm uma formação suficiente de perceber que se trata de
uma mentira, frequentemente é um excelente instrumento para atrair as
pessoas para determinada causa. Essa mesma falta de formação contribui
para o total equívoco de muitos americanos em relação a outras culturas -
como a convicção de que os sikhs, que observam a paz e a igualdade, são
terroristas islâmicos ou de que os brasileiros falam espanhol.
Individualmente, os assassinos em série parecem agir na maioria das
vezes não por causa de uma ideologia ou de uma crença religiosa, mas
porque buscam, em sua visão particular e perversa a atenção do público.
Eles também agiram porque podiam. Junto com os grupos da margem
social e as afirmações inexatas de oradores e de escritores, liberdade e
diversidade significam que os americanos devem conviver com um enorme
arsenal de armas, rifles de assalto e outros armamentos. Apesar dos
apelos da polícia para que haja um maior controle de armas, as
lideranças americanas demonstram uma total falta de vontade de agir.
Assim como o direito de livre expressão, o direito constitucional de
carregar armas faz parte do conjunto de valores americanos - um direito
reforçado pela Associação Nacional do Rifle, extremamente influente.
Entretanto, se as armas fossem proibidas, Loughner, Holmes e Page não poderiam realizar suas fantasias mortíferas.
Do mesmo modo, nessas situações, em que profissionais de saúde
poderiam detectar logo no início sinais de problemas psicológicos,
existe um delicado equilíbrio entre o direito do indivíduo de se ver
livre de vigilância e da intrusão e o direito da população de ser
protegida desses indivíduos.
Igualmente preocupante é o fato de que o que mantém unida a sociedade
americana - o valor do sucesso - não mais consegue manter o país unido.
Muitas pessoas se saturaram da cultura de consumo, e para elas a única
saída parece ser o recurso a emoções maiores ainda. Numa época de crise
econômica como a que estamos vivendo, o estresse financeiro pessoal pode
tornar-se outro gatilho.
Até as agências governamentais atualmente se referem às pessoas não
como "cidadãos", mas como "clientes". Os próprios americanos começam a
perder rapidamente a noção de cidadania, que está sendo substituída
pelos direitos do consumidor.
Na esteira dos ataques do 11 de Setembro, o presidente George W. Bush
não pediu à população que participasse mais da vida política, mas
exortou as pessoas a ir para Disney World na Flórida - "levem suas
famílias e desfrutem da vida que queremos que seja desfrutada".
O escritor Gore Vidal, ele próprio uma espécie de outsider que estava
convencido de que o governo de George W. Bush sabia de antemão dos
ataques do 11 de Setembro, falecido no dia 31, disse certa vez que os
Estados Unidos "não são uma civilização, mas um mercado selvagem, e nós
merecemos o lixo que temos".
Lixo pode ser entendido em termos de todos os bens de consumo mais
baratos e de pior qualidade - mas também em termos da qualidade das
nossas ideias e valores.
Sem cidadania, os valores do consumismo não podem sustentar uma nação.
Talvez, no fundo, esses assassinos em série procurassem apenas fugir desse vazio.
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TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA
*É DIRETOR DO DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA DA UNIVERSIDADE DE SAN DIEGO, CALIFÓRNIA - O Estado de S.Paulo
Fonte: Estadão on line, 16/08/2012
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