Paulo Brabo*
Estocado em Sociedade
É sabido que Platão nutria grande desprezo pela palavra escrita e
escrevia em forma de diálogo – discussões simuladas entre dois ou mais
personagens – na tentativa de corrigir pelo menos parcialmente aquela
que considerava ser a grande falha conceitual do livro, sua incapacidade
de dialogar com o leitor.
Um livro argumenta, mas não contra-argumenta; fala, mas não responde
as mais simples perguntas; discorre, mas não está preparado para vencer
as objeções que seu autor não tenha antecipado.
Apesar das tabulações de Platão, até recentemente a palavra escrita
era particularmente avessa ao diálogo. Você podia publicar livros e
artigos, e se alguém discordasse das suas idéias teria de escrever e
publicar livros e artigos ele mesmo; se quisesse apresentar sua resposta
ao contra-argumento do seu oponente você teria de publicar uma nova
leva de livros e artigos, e assim por diante. Havia diálogo, que fique
muito claro: livros e autores discordavam com paixão, mas era um
processo pouco ágil; por conta dos próprios custos e intervalos
envolvidos, uma rarefeita elite tinha acesso a essas facilidades.
Isso, desnecessário lembrar, foi antes da internet; hoje em dia
vivemos na outra margem de um rio mítico que Platão não sonhava existir.
Os custos de publicação
e o intervalo de resposta, que até recentemente se interpunham
eloquentemente na conversa, foram reduzidos a virtualmente zero. Na
internet qualquer um pode publicar de imediato o que escreveu, e
qualquer um pode de imediato responder, discordar, argumentar,
contribuir, reformular, corrigir, opinar, construir e desconstruir,
escrever e reescrever. É a era da comunicação instantânea, e suas
palavras de ordem são interatividade e colaboração.
Conceitualmente, a internet provou ter potencial para corrigir de
forma definitiva e eficaz aquela antiga deficiência da palavra escrita
que os diálogos de Platão tinham sido inventados para corrigir de modo
paliativo. Porque na internet, pasme-se, o diálogo é real. Graças à
magia de grupos de discussão, tuíteres, mensagens de email, comentários
em blogues, wikipédias, janelas de chat e redes de relacionamento, a
palavra escrita foi liberta de seus grilhões. O diálogo é permanente. A
internet é um livro aberto, e qualquer um pode escrever no miolo e
rabiscar nas margens. Qualquer um é livre para adicionar sem intervalo e
sem custo novas páginas que corrijam, expliquem, mencionem, satirizem
ou anulem as anteriores; qualquer um pode contribuir para deixar o
conteúdo mais claro, mais correto, mais atualizado, mais original, mais
pessoal ou menos pessoal, mais profundo ou mais simples, mais austero ou
mais engraçado.
Mais do que na Biblioteca de Babel de Borges, vivemos no Paraíso de
Platão, e tudo que existe é o diálogo. Trata-se de um milagre em muitos
sentidos, e de uma maldição em outros. Permita-me falar sobre a parte da
maldição.
O problema é que nós seres humanos somos animais estranhos, e o
diálogo não é uma arte que saibamos verdadeiramente dominar. Mesmo os
mais capazes dentre nós encontram dificuldade na tarefa, e com muito
mais frequência do que gostaríamos de admitir temos problemas para
entender o que estamos dizendo uns aos outros, ou ainda com que intenção
ou com que ênfase.
Para Platão, o lugar para se dialogar, por excelência, era entre
amigos reunidos ao redor de uma mesa – de preferência um banquete
lubrificado por muito vinho e música ao vivo. As vantagens do banquete
cordial são muitas e muito evidentes: amigos se conhecem e saberão
entender as provocações mútuas e as alusões a lembranças compartilhadas;
amigos conhecem as entonações, os ritmos, os temas, as pausas e as
mitologias pessoais uns dos outros. Por estarem juntos na mesma sala, um
olhar compassivo pode corrigir uma frase brusca, um meio sorriso pode
colorir uma ironia e uma sobrancelha erguida inverter uma idéia. A
comida compartilhada os pacificará, a bebida compartilhada os tornará
irmãos.
Mesmo diante de todas essas felicidades, haverá invariavelmente
discordância, por um lado, e por outro a comunicação não estará isenta
de ruído. Mesmo no banquete, onde tudo é favorável, a interação pode ser
falha e o diálogo pode ser interrompido a qualquer momento.
Se a comunicação é irredutivelmente tortuosa entre amigos que metem a
mão no mesmo prato, quanto mais ruído e quantos maiores riscos não
haverá no diálogo da internet, que transcorre entre perfeitos estranhos
de modo algum calibrados pelos confortos do vinho, da companhia, da
cordialidade, da história prévia e dos interesses comuns?
Existe verdadeiro diálogo na internet, mas é uma misericordiosa e
rara exceção; bem-aventurados são os que o encontram, santificado seja o
nome dos que o proporcionam. O que há, de modo geral, é
superficialidade, narcisismo (acredite, posso dizê-lo de primeira mão)
e, em especial, animosidade gratuita.
A superficialidade e o narcisismo sempre fizeram parte da história da
literatura e da palavra escrita; a verdadeira contribuição da internet
está em ter universalizado a agressividade arbitrária e o rancor
pré-estabelecido. Na internet não basta discordar, o que é considerado
insuficiente e de baixo calado; a verdadeira norma, se você quer ser
levado a sério, é pisotear, ridicularizar e agredir. A onipresente caixa
de comentários, que ameaça em blogues e fóruns de discussão e poderia
ter transformado todos em colaboradores, transforma todos em
antagonistas. Não basta contra-argumentar, é preciso destilar veneno.
Não basta apontar discordo inteiramente de você, é preciso deixar bem claro eu te desprezo. Não basta vencer, é preciso tripudiar. Não basta opinar, é preciso comparar a Hitler. Abolimos até mesmo os recursos de estilo que temperavam o sarcasmo de gente enfezada como Lutero; abolimos as 38 maneiras de se vencer uma argumentação.
O que resta, de modo geral, é a perversidade mais crua não diminuída
por complicações de lógica ou de estilo. Não importa que seu próprio
argumento seja inexistente; você não vai deixar de condenar seu oponente
como simplista. Não importa que você não tenha entendido; você não perderá a oportunidade de dizer odiei.
Tolkien lamentava profeticamente as arbitrariedades e nivelamentos da
democracia tecnológica, mas não tinha como antecipar a extensão desta
sombra de Mordor, a onipresença do diálogo em que todos falam em
perfeito isolamento consigo mesmos e sustentam ao mesmo tempo a ilusão
de que todos estão sendo ouvidos.
Uma verdade antiga é que mesmo entre amigos os argumentos não
convencem ninguém; creia-me portanto quando digo que na internet a
conversa não está avançando. Os argumentos não estão abrindo os olhos de
quem quer que seja, e a verdade não está sendo eficazmente defendida.
Não aqui.
Em meio a esse vozerio inescapável, tenho por verdadeiro conforto
encontrar volta e meia uma página da internet que tenha algo a dizer e
não seja maculada pela aparência do diálogo e pela tentação da caixa de
comentários. Considero-me feliz quando piso o silêncio de uma dessas
catedrais, e celebro com o autor, num banquete mínimo, a bem-aventurança
de poder ouvir uma única voz.
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*O nome é Paulo Roberto Purim (Brabo™ é apelido), sou ilustrador e moro no Monastério de São Brabo, perdido numa região remota das Índias Ocidentais.
Fonte: http://www.baciadasalmas.com/a-bacia-das-almas/
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