Paulo Ghiraldelli Jr*
Ninguém
mais é burguês ou proletário. Alguns até dizem que são comunistas, mas
são tão poucos que caberiam no banco traseiro de um Lada. Há os que
proclamam que são ateus, mas antes para afastar evangélicos
fundamentalistas ou de igrejas-caça níqueis e católicos da linha dura
que por querer negar Deus. Há os que se afirmam negros, mas nem sempre –
conforme o lugar é desnecessário, e há os lugares em que isso é tão
necessário que é bom não ir. Agora, há algo que se diz sempre e até é
gritado por aí. Parece necessário dizer que se é heterossexual ou
homossexual ou bissexual ou alguma lá outra coisa, mas que seja
“sexual”. Ou se é “sexual” ou não se é nada. Finalmente chegamos ao que
eu disse que chegaríamos: uma identidade calcada no corpo ou em alguma
coisa bem relacionada ao que está no imaginário popular como sendo do
corpo ou no corpo.
Já se disse certa vez que o maior
escândalo do mundo nos tempos contemporâneos é ser um “nada sexual”. A
mulher que não consegue engravidar e o homem que não consegue fazê-la
engravidar nunca foram louvados. Confundiam-se tais pessoas com frígidas
e impotentes. Essas coisas, hoje, estão mais separadas. Mas ninguém
quer para si a fama de frígida ou de impotente. Ser um não-sexual era
bem pior que ser homossexual. O segundo apanhava da sociedade, mas nem
sempre fisicamente, o primeiro apanhava do parceiro fisicamente, se
mulher, quando no caso do homem, a humilhação diária era tanta que
restava para ele a forca. A ditadura do “sexual” continua valendo – mais
hoje que nunca. Embora hoje possamos ver vários casais que, à primeira
vista, poderiam ser tomados como “casais gays” ou “invertidos”, mas que
são apenas pessoas que podem até se erotizar, mas sexualizar jamais.
Alguns diriam que há um preconceito
contra os que não se sexualizam. Outros diriam que não é pré-conceito,
mas que o conceito mesmo do que Platão chamou de “bípede sem penas” é o
de ser sexualizado. Portanto, os que não se sexualizam não sofreriam de
preconceito, eles próprios teriam ficado, realmente, aquém do conceito.
Talvez em resposta, eles poderão dizer: “estamos é além do conceito”.
Duvido que digam isso em casa.
O sujeito moderno é o “consciente dos
seus pensamentos e responsável pelos seus atos”
(Luc Ferry)
Tudo isso é polêmico e geram assuntos
para textos diversos. O que não é polêmico, o que acredito que é
possível de se notar por qualquer um, é que estamos vivendo em uma época
que nossa função como “sujeito” tem perdido força. A filosofia já
mostrou isso de várias formas, tralhando sobre essa atrofia do sujeito
moderno através de abordagens distintas, tanto as das correntes
continentais quanto as das vertentes analíticas. Do meu ponto de vista
aqui, o da filosofia social, o que se nota é que enquanto o projeto
moderno faz água e o projeto contemporâneo não consegue se por
positivamente, só negativamente ao moderno, a atrofia do sujeito se
mostra como um processo longo, expondo cada fase como o que cristaliza
uma característica do sujeito em um dado elemento. O sujeito ou, melhor
dizendo, seu conceito moderno (Descartes-Locke) ou moderno reformado
(Darwin-Marx-Freud), está nadando em mar alto e está tendo câimbras, mas
nega-se a afundar. Agarra-se em pedaços do barco estraçalhado que boia
no oceano. O corpo é um desses destroços. Mas agora, nem mais o corpo, e
sim a ideia de “sexual”, que tem a ver com o corpo, é claro.
O sujeito moderno é o “consciente dos
seus pensamentos e responsável pelos seus atos” (Luc Ferry). Essa é uma
definição sucinta e válida. Para complementá-la podemos dizer que o “eu
moderno” é delineado por duas características, trata-se de um fio de
pensamentos que se entendem como emanados de um só âmbito ou centro, uma
unidade, e que fixam uma identidade ou, então, várias identidades sem
que elas se ponham em conflito quanto o núcleo comum que poderiam ou
deveriam ter. Essa noção é filosófica, mas já consta dos nossos
dicionários comuns. Por ela, podemos notar que o sujeito moderno ainda
não morreu. Há algo dele vivo que é a ideia de que há um núcleo a ser
chamado de “eu”. Tudo que já foi núcleo identitário pode ter ido para o
brejo, e o corpo ou, mais corretamente, o “sexual”, sobrou e então nos
agarramos a ele como quem não quer ver desaparecer nosso último gancho
metafísico.
“Sexual” na atual conjuntura pode não
parecer metafísico. Quer coisa mais corporal, material, física e,
portanto, por definição, menos metafísica que isso? Mas, justamente aí,
nos domínios do físico, há uma metafísica. Sexual não indica nada de
empírico e físico. Talvez só à primeira vista. Mas, bem analisado, o que
é um “X-sexual”? Homo, hétero, bi, tri e poli sexual. Tudo-sexual.
Quem tem boa escolaridade não acha
interessante chamar alguém de “demônio”, a não ser em brincadeiras. A
palavra perdeu seu uso mais forte, aterrorizador, o de “senhor do mal”
para valer. Mas, como o X-sexual impera como um último reduto do
sujeito, o demônio adquiriu outros nomes: “pervertido”, “pedófilo”,
“tarado” e, enfim, um “demoninho” seria um “vouyer”. Ou se coloca alguma
coisa no âmbito do “sexual” ou não se pode dizer o que ela é como algo
vivo que pode ser “consciente dos seus pensamentos e responsável pelos
seus atos”. O eu é um eu-sexual (ou um eu não-sexual, o que dá na
mesma).
Quanto tempo esse resto de identidade
irá durar? Não sei. Mas o que sei é que enquanto ele durar também durará
a briga entre os que acham que tem de dizer que são sexuais e os que
acham que ao ouvir isso deverão ou aplaudir ou sacar, para qualquer
lado, para criticar ou não, a expressão “olha o preconceito!”.
-------------------
* Paulo Ghiraldelli Jr. é filósofo, escritor e professor da UFRRJ. Agora também com cartuns: http://gametas.blogspot.com.
Fonte: http://ghiraldelli.pro.br/2012/08/01/sou-sei-la-o-que-sexual/
Nenhum comentário:
Postar um comentário