quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Sou sei-lá-o-que sexual

Paulo Ghiraldelli Jr*

 
Ninguém mais é burguês ou proletário. Alguns até dizem que são comunistas, mas são tão poucos que caberiam no banco traseiro de um Lada. Há os que proclamam que são ateus, mas antes para afastar evangélicos fundamentalistas ou de igrejas-caça níqueis e católicos da linha dura que por querer negar Deus. Há os que se afirmam negros, mas nem sempre – conforme o lugar é desnecessário, e há os lugares em que isso é tão necessário que é bom não ir. Agora, há algo que se diz sempre e até é gritado por aí.  Parece necessário dizer que se é heterossexual ou homossexual ou bissexual ou alguma lá outra coisa, mas que seja “sexual”. Ou se é “sexual” ou não se é nada. Finalmente chegamos ao que eu disse que chegaríamos: uma identidade calcada no corpo ou em alguma coisa bem relacionada ao que está no imaginário popular como sendo do corpo ou no corpo.
Já se disse certa vez que o maior escândalo do mundo nos tempos contemporâneos é ser um “nada sexual”. A mulher que não consegue engravidar e o homem que não consegue fazê-la engravidar nunca foram louvados. Confundiam-se tais pessoas com frígidas e impotentes. Essas coisas, hoje, estão mais separadas. Mas ninguém quer para si a fama de frígida ou de impotente. Ser um não-sexual era bem pior que ser homossexual. O segundo apanhava da sociedade, mas nem sempre fisicamente, o primeiro apanhava do parceiro fisicamente, se mulher, quando no caso do homem, a humilhação diária era tanta que restava para ele a forca. A ditadura do “sexual” continua valendo – mais hoje que nunca. Embora hoje possamos ver vários casais que, à primeira vista, poderiam ser tomados como “casais gays” ou “invertidos”, mas que são apenas pessoas que podem até se erotizar, mas sexualizar jamais.
Alguns diriam que há um preconceito contra os que não se sexualizam. Outros diriam que não é pré-conceito, mas que o conceito mesmo do que Platão chamou de “bípede sem penas” é o de ser sexualizado. Portanto, os que não se sexualizam não sofreriam de preconceito, eles próprios teriam ficado, realmente, aquém do conceito. Talvez em resposta, eles poderão dizer: “estamos é além do conceito”. Duvido que digam isso em casa.

 O sujeito moderno é o “consciente dos seus pensamentos e responsável pelos seus atos” 
(Luc Ferry)

Tudo isso é polêmico e geram assuntos para textos diversos. O que não é polêmico, o que acredito que é possível de se notar por qualquer um, é que estamos vivendo em uma época que nossa função como “sujeito” tem perdido força. A filosofia já mostrou isso de várias formas, tralhando sobre essa atrofia do sujeito moderno através de abordagens distintas, tanto as das correntes continentais quanto as das vertentes analíticas. Do meu ponto de vista aqui, o da filosofia social, o que se nota é que enquanto o projeto moderno faz água e o projeto contemporâneo não consegue se por positivamente, só negativamente ao moderno, a atrofia do sujeito se mostra como um processo longo, expondo cada fase como o que cristaliza uma característica do sujeito em um dado elemento. O sujeito ou, melhor dizendo, seu conceito moderno (Descartes-Locke) ou moderno reformado (Darwin-Marx-Freud), está nadando em mar alto e está tendo câimbras, mas nega-se a afundar. Agarra-se em pedaços do barco estraçalhado que boia no oceano. O corpo é um desses destroços. Mas agora, nem mais o corpo, e sim a ideia de “sexual”, que tem a ver com o corpo, é claro.
O sujeito moderno é o “consciente dos seus pensamentos e responsável pelos seus atos” (Luc Ferry). Essa é uma definição sucinta e válida. Para complementá-la podemos dizer que o “eu moderno” é delineado por duas características, trata-se de um fio de pensamentos que se entendem como emanados de um só âmbito ou centro, uma unidade, e que fixam uma identidade ou, então, várias identidades sem que elas se ponham em conflito quanto o núcleo comum que poderiam ou deveriam ter. Essa noção é filosófica, mas já consta dos nossos dicionários comuns. Por ela, podemos notar que o sujeito moderno ainda não morreu. Há algo dele vivo que é a ideia de que há um núcleo a ser chamado de “eu”. Tudo que já foi núcleo identitário pode ter ido para o brejo, e o corpo ou, mais corretamente, o “sexual”, sobrou e então nos agarramos a ele como quem não quer ver desaparecer nosso último gancho metafísico.
“Sexual” na atual conjuntura pode não parecer metafísico. Quer coisa mais corporal, material, física e, portanto, por definição, menos metafísica que isso? Mas, justamente aí, nos domínios do físico, há uma metafísica. Sexual não indica nada de empírico e físico. Talvez só à primeira vista. Mas, bem analisado, o que é um “X-sexual”?  Homo, hétero, bi, tri e poli sexual. Tudo-sexual.
Quem tem boa escolaridade não acha interessante chamar alguém de “demônio”, a não ser em brincadeiras. A palavra perdeu seu uso mais forte, aterrorizador, o de “senhor do mal” para valer. Mas, como o X-sexual impera como um último reduto do sujeito, o demônio adquiriu outros nomes: “pervertido”, “pedófilo”, “tarado” e, enfim, um “demoninho” seria um “vouyer”. Ou se coloca alguma coisa no âmbito do “sexual” ou não se pode dizer o que ela é como algo vivo que pode ser “consciente dos seus pensamentos e responsável pelos seus atos”. O eu é um eu-sexual (ou um eu não-sexual, o que dá na mesma).
Quanto tempo esse resto de identidade irá durar? Não sei. Mas o que sei é que enquanto ele durar também durará a briga entre os que acham que tem de dizer que são sexuais e os que acham que ao ouvir isso deverão ou aplaudir ou sacar, para qualquer lado, para criticar ou não, a expressão “olha o preconceito!”.
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* Paulo Ghiraldelli Jr. é filósofo, escritor e professor da UFRRJ. Agora também com cartuns: http://gametas.blogspot.com.
Fonte:  http://ghiraldelli.pro.br/2012/08/01/sou-sei-la-o-que-sexual/

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