Lee Siegel*
Os assassinatos em massa cometidos por um homem
solitário com uma arma continuam nos Estados Unidos. Dias depois do
massacre naquele cinema em Aurora, Colorado, um veterano militar entrou
em um templo Sikh de uma cidadezinha de Wisconsin e assassinou outras
tantas pessoas. No começo da semana passada, um homem matou um policial e
outra pessoa em Austin, Texas. E, de novo, proliferam as tentativas de
traçar um perfil psicológico dos matadores.
Espero que isto não parece temerário, ou de mau gosto, mas achei que
poderia escrever uma espécie de perfil genérico do matador para dar mais
espaço e tempo para os entendidos escreverem sobre assuntos mais
importantes, como celebridades que usam calças de ioga ou o gênio da
Apple. Aí vai, portanto, a minha contribuição. O perfil a seguir de um
assassino em massa é composto de todos os detalhes hoje conhecidos sobre
assassinos em massa:
Seus vizinhos disseram que ele era bom, mas recluso, polido, mas
distante. Pessoas no trabalho o consideraram rancoroso e vingativo. Ele
era gregário. Era tímido. Tinha uma aptidão notável para a álgebra.
Ficou irritado e frustrado num banco, certa vez, enquanto preenchia um
certificado de depósito. Abandonou o ensino secundário. Tinha um
doutorado em física. Era analfabeto. Correspondia-se com Jurgen
Habermas.
Ele era um antissemita. Sua mãe era judia. Ele viveu em Israel. Usava
um keffieh e lia o Alcorão. Odiava a América. Tinha uma bandeira
americana pendurada em seu quarto. Era um democrata registrado. Cresceu
com a mãe, mas não se dava com o pai. Cresceu com o pai, mas não se dava
com a mãe. Seus pais, ambos cirurgiões cardíacos eminentes, nunca
repararam quanto tempo ele passava no porão.
Quando estava na escola elementar, escreveu um poema sobre uma borboleta:
Linda borboleta que esvoaça por meu quintal.
Quero tocar gentilmente tuas asas e ajudar-te a voar.
Quero beijar-te e provar o sol.
Quando estava no ensino médio, escreveu um poema sobre um esquilo:
Vem cá lixo cinzento
Pare de comer nossas flores.
Venha cá. Quero arrancar tuas patas
E enterrar-te vivo enquanto gritas.
Ele teve uma namorada que se chamava MaryLou para quem costumava
cantar canções que ele mesmo compunha, enquanto acariciava suavemente
seu rosto. Teve uma namorada que se chamava Annalee em cujas pernas
atirou bolas de boliche. Salvou um ratinho de estimação de um carro que
se aproximava. Enterrou um gatinho no quintal de cabeça para baixo e
passou um cortador de grama por cima.
Ele era molestado pela mãe e espancado pelo pai. Protegia a mãe dos
acessos de raiva do pai alcoólatra. Protegia o pai dos acessos de raiva
da mãe viciada em drogas. Vizinhos disseram que ele era ligado à mãe.
Vizinhos disseram que era ligado demais à mãe. Vizinhos disseram que
nunca o viram com a mãe. Ele era a joia preciosa de seu pai.
Ele estava sempre surrando meninos menores. Estava sempre sendo
surrado por meninos maiores. Uma vez surrou um menino maior que estava
surrando um menino menor. Era proficiente em artes marciais. Corria
soluçando para o mato quando os outros meninos gozavam dele. Tinha um
bichinho de estimação chamado Marlon. Abominava animais.
Ele amava futebol americano, odiava trilhas, era bom em natação,
chorava quando tentava lutar boxe, quase estrangulou outro garoto numa
disputa de luta livre, acidentalmente acertou o próprio pé com um arco e
flecha, venceu o campeonato estadual de esgrima, levantou mais de cem
quilos no supino, quebrou o pulso tentando abrir uma garrafa de vinho.
Ele era um liberal, era um conservador, era um comunista, era um
socialista, era um fascista, era um trotskista, era um stalinista, era
um keynesiano, era presidente de seu fã-clube Harry Potter local.
Quando a polícia revisitou seu quarto, encontrou exemplares de O
Apanhador no Campo de Centeio, A Nascente, Senhor dos Anéis, Myra
Breckinridge, A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, e Como
Perder 10 libras em 10 Minutos.
Ele seguiu Anne Hathaway. Kate Moss o seguiu. Era obcecado por
Michael Jackson e Dwight D. Eisenhower. Não tinha heróis. Seguia seu
professor de educação física do colegial por toda parte. Todos o
odiavam. Todos o amavam.
Vizinhos perguntaram: "Como ele pôde fazer isso?" Vizinhos disseram:
"Nós sabíamos que ele faria isso". Vizinhos disseram que ele era a
última pessoa no mundo que eles imaginariam fazendo isso. Vizinhos se
disseram surpresos por ele não o ter feito anos atrás.
Ele foi o produto de seu meio, de uma má-educação, de químicos em seu
cérebro, de genes ruins, de má sorte, de maus hábitos higiênicos.
Ele é todo mundo e ninguém. Vive em toda parte em parte nenhuma. É
impossível de caracterizar, descrever, diagnosticar ou prever.
A única constante em sua sanha assassina é a arma que ele usa. Uma
arma de fogo é fácil de achar, caracterizar, descrever ou prever.
Parafraseando Gertrude Stein: uma arma é uma arma é uma arma é uma
arma. Mas por que regulamentar um fato concreto quando se pode especular
sobre um mistério insosso?
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* Colunista do Estadão
Fonte: Estadão on line, 19/08/2012
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