Jornalista narra em "A Queda" a emocionante jornada ao lado do filho Tito, hoje com 11 anos
Diogo Mainardi passou boa parte da vida, a sua e a do filho, fazendo
contas. Dias, rotinas e trajetos foram medidos em passos a partir do
momento em que Tito, o primogênito, começou a se arriscar na complexa
arte de se locomover. Vítima de um erro médico grosseiro que levou a uma
paralisia cerebral, o menino, que completa 12 anos este mês, tem sérias
restrições motoras, que comprometem os movimentos das mãos e das pernas
e também a fala. Eu conto seus passos, um por um, narra o pai em A Queda - As Memórias de um Pai em 424 Passos, lançamento da editora Record.
Colunista político controverso, semeador de paixões e discórdias,
Mainardi interrompe seu autoimposto exílio literário com um livro
soberbo. Há dois anos, abdicou do posto de cronista mais lido - e
comentado, e criticado, e odiado, e exaltado - da revista Veja para
retornar à Itália natal de sua mulher, a historiadora Anna, 48 anos, e
do filho mais velho. Nico, o caçula de sete anos, nasceu no Rio de
Janeiro, onde a família morou por quase uma década, seguindo
recomendações médicas - o calor e a areia fofa da beira-mar eram a
combinação ideal para que Tito aprendesse a colocar um pé na frente do
outro. "Ele sempre cai. Ele sempre cai gargalhando", escreve.
Tito deu 16 passos seguidos em 2005. Batia seus próprios recordes a
intervalos de meses, sempre seguido pelo pai, atento a qualquer
movimento em falso: após os 16 passos, alcançou 27, e então 44, 71,
depois 118. Em 11 de janeiro de 2008, foram 359 passos. "Saber cair tem
muito mais valor do que saber caminhar", reflete o pai-escritor à página
66.
A Queda não é um álbum de recortes sentimentalistas. Nem
poderia ser. Mainardi, dono de um texto inquieto e insolente, por vezes
até ofensivo, pariu um diário enxuto, preciso - e, talvez por isso
mesmo, desconcertante. São 424 pequenos ou microcapítulos com lembranças
envoltas em referências literárias, artísticas e históricas. A
trajetória de Tito, sustenta o autor, é circular, desvendando e
reencontrando coincidências, nomes, datas. Todas as citações - a obra de
Rembrandt, o programa de extermínio de Adolf Hitler, a exuberância
arquitetônica da cidade italiana que a família elegeu como lar - têm um
propósito, tudo se relaciona ao personagem principal.
Antecipar aqui o desfecho de A Queda seria privar o leitor
da emoção do primeiro contato com um trecho encantado. Se não valesse
pelo conjunto, o título mais importante da carreira de Mainardi se
justificaria pelas páginas finais. Sem prejudicar o deleite da leitura,
pode-se resumir pouco mais do que o óbvio. Assim: Tito atingiu a marca
mais incrível de sua ainda curta caminhada - 424 passos. O número
inspirou um livro. E Mainardi parou de contar.
O paulistano, que faz 50 anos no próximo dia 22, conversou com um
grupo restrito de jornalistas brasileiros. A Queda é tão valioso e tão
íntimo, justifica ele, que teme desgastá-lo. De passagem pelo Rio,
Mainardi concedeu, por telefone, a entrevista a seguir.
Donna - Você classifica o amor pelo seu filho como "avassalador" e diz que A Queda é uma manifestação desse sentimento. Você escreveu o livro que gostaria de ter escrito?
Diogo Mainardi - É uma declaração de amor, uma
declaração do jeito que eu sei declarar. É a minha serenata para o meu
filho. Não sou uma pessoa particularmente sentimental. Para compreender
esse amor avassalador, quase inexplicável, novo para mim, tive de
recorrer aos meus instrumentos, que eram todos de natureza intelectual,
estética. Foi assim que eu consegui resumi-lo, explicá-lo para mim e
tirar dele o máximo que podia. O livro saiu exatamente da maneira que eu
poderia escrevê-lo. É um livro verdadeiro, uma história verdadeira. Não
poderia tê-lo feito de outra maneira porque é a minha história, ela
está toda ali. Não fui catar referências eruditas porque elas podiam
acrescentar alguma coisa ao texto. Catei o que havia à disposição, na
minha cabeça, na história familiar, no arquivo fotográfico. Fui
recolhendo o que havia em torno de mim. Nesse sentido, é o livro
possível, o livro que eu podia fazer. É o máximo do meu amor, na
expressão mais verdadeira desse amor.
Donna - Quem é o Tito?
Mainardi - Tenho dois filhos e não vejo nenhuma
diferença entre eles. Filho é filho. Tito é igual ao meu outro filho.
Eles se dão muitíssimo bem. Tito tem um amor absoluto pelo irmão. Ele,
como criança, é igual a todas as outras. Tive por ele algo que não é
igual ao que eu teria de outra maneira. Sei que todos os pais amam os
filhos, mas no meu caso esse processo foi muito rápido, surgiu de uma
hora para outra. Por isso mesmo foi avassalador. Com meu outro filho,
houve um período em que pude conhecê-lo, reconhecer nele as
características que me pertencem também. Você vê no seu filho o que é
parecido com você. São os velhos chavões da paternidade. No caso do
Tito, aprendi a ver também o que era diferente. Foi um aprendizado
sentimental muito violento. Comemorei, depois de três dias de vida, o
fato de que ele estava vivo. Ele era um morto até então. Foi o único
momento de verdadeira comoção que tive desde que ele nasceu. Na verdade,
foi o único momento de comoção da minha vida. Eu nunca tinha tido uma
comoção, de fato, e nunca tive outra depois disso. No livro, busquei o
equivalente intelectual para exprimir um sentimento. O (Marcel) Proust
tem essa frase maravilhosa que diz que para exprimir um sentimento tem
de buscar um equivalente intelectual, porque você não pode só ficar ali
tocando um violãozinho. Fica empobrecido. Tem que buscar uma linguagem
capaz de exprimir esse amor de maneira mais elaborada.
Donna - Você repete que não foi um choque ou uma dor profunda
ter um filho com paralisia cerebral, em nenhum momento. No Roda Viva
(Mainardi foi o convidado do programa do dia 20 de agosto), da TV
Cultura, alguns dos seus entrevistadores insistiram nesse ponto,
parecendo bastante surpresos com o fato de não ter havido desespero. As
pessoas geralmente deixam transparecer essa incredulidade em relação a
isso?
Mainardi - É sempre assim. As pessoas acham que é um
drama aquilo que não é um drama e não foi um drama. Parte do prazer de
escrever esse livro é que é um relato prazeroso, de gozo absoluto, de
prazer absoluto. Tive um pequeno encontro com os vendedores da Livraria
da Travessa. Quando eles disseram que o meu livro vendeu mais do que
Cinquenta Tons de Cinza, eu disse que tem mais gozo, mais prazer sensual
no meu livro do que no outro (risos). O livro é fruto desse prazer,
desse transbordamento de amor.
Donna - Há pais com muita dificuldade para ver e aceitar as
limitações de um filho com necessidades especiais, traçando metas
inatingíveis para a criança. Como você adapta suas expectativas?
Mainardi - Nunca tive expectativa em relação a
ninguém, nem a mim mesmo. Isso facilitou o período de aceitação, que foi
natural, imediato. Depois de alguns anos, em relação aos médicos,
passei a saber exatamente o que podia esperar, e não só pela barbeiragem
que causou o dano cerebral. Nós, hoje em dia, fazemos pequenas escolhas
funcionais para o nosso filho, como o fato de voltar a Veneza, por
exemplo, que garante a ele um tipo de autonomia que ele não poderia ter
no Rio de Janeiro, onde estávamos muito bem. Mas na Itália ele tem
independência, que para nós é prioritário hoje. Para ele, um menino de
11 anos, nada é mais importante do que passear sem mim, passear sozinho,
não ser protegido. Se dou um beijo, ele limpa a minha baba por 20
minutos. Tem nojo de mim, vergonha. Para mim, é ótimo que ele não se
sinta dependente a ponto de precisar esconder esse nojo. Ele se sente
perfeitamente à vontade em exprimir seus desejos. A grande ambição da
vida dele é morar sozinho, já aos 11 anos. E eu mudei para a Itália
também porque os filhos ficam até os 40 anos na casa dos pais (risos).
Quero mantê-los perto de mim o máximo possível. Mas o pivete quer se
separar cedo demais, o que é saudável, no
caso dele mais ainda. Obviamente, a independência dele não vai ser
totalmente conquistada, ele vai depender de nós.
Donna - Que nível de independência Tito tem hoje? Você relata
o período em que ele usava um comunicador, apertando botões com figuras
para expressar pensamentos e necessidades.
Mainardi - Hoje ele fala e usa um andador fora de
casa. Em casa, ele tem uma muleta com quatro rodas porque os espaços são
mais estreitos. Na rua, ele corre, atravessa a cidade todos os dias.
Seria capaz até de dar passos independentes dentro de casa se não
tivesse tanto medo. Quando tem medo, os músculos se contraem, e ele cai.
Mas hoje ele cai bem, e isso é um conforto.
Donna - A reação dos outros o incomoda? Existe preconceito?
Você observa que as pessoas se habituaram a Tito: o jornaleiro, o
barbeiro, o quitandeiro. Você acha que essa é a reação mais comum em
relação a pessoas com necessidades especiais, a maioria tem o choque
inicial e depois se habitua?
Mainardi - As pessoas se habituam, mas continuam
excessivamente complacentes em relação à criança, com um excesso de
comiseração, e isso é inevitável. A gente se acostumou. Você não pode
dizer a todos: "Olha, meu filho é inteligente, ele entende o que você
está dizendo". Alguns falam: "Puxa, ele sabe o meu nome!". Ele, por
sorte, acha a maior graça disso. Meu filho acha que é um privilégio ser
deficiente. Fura a fila no aeroporto e acha a maior graça. O irmão dele
diz: "Que bom ter um irmão deficiente". Essa é a frase padrão no
aeroporto. Nós aproveitamos as vantagens, é claro, porque precisamos,
temos duas mãos cada um. Passamos na frente. Mas ele gosta do banheiro
para deficientes, do elevador para deficientes, ele acha que faz parte
de um mundo melhor, privilegiado, em relação ao nosso. Acho muita graça
disso, minha mulher também. E o irmão tem uma ponta de inveja e de
orgulho também.
Donna - Foi difícil tomar a decisão de ter o segundo filho? Surgiu algum receio com a proximidade do parto?
Mainardi - Nenhum receio, zero. Nico foi parido em
um outro hospital, a única precaução foi essa. Eu não teria feito o
mesmo erro duas vezes, isso não. O parto dele foi cercado de cuidados
aqui no Rio de Janeiro. Nem isso, já que ele nasceu algumas horas antes
da programação, mas foi tudo tranquilo. A gente não tinha medo nenhum
com o Tito também. Foi uma barbeiragem grosseira, mas não havia nenhum
temor. Meu, zero. A minha mulher, como eu digo no livro, tinha medo do
hospital, mas não da gestação. Fizemos os exames de praxe e só.
Donna - Escrever um livro como este é se mostrar bastante e
também se oferecer a múltiplas interpretações. A revelação dos seus
pensamentos e sentimentos mais íntimos pode ser recebida com elogios,
críticas, julgamentos apressados. Você teve que se preparar
emocionalmente para essa ampla exposição?
Mainardi - Nada, nada. Esse livro faz parte do meu
universo intelectual. Tem uma exposição brutal do que sou, completa. É
óbvio que eu fico de cuecas, mas a visão, toda ela, é intelectual. Não
vou me comparar ao Montaigne, mas, quando contava as histórias dele, ele
tentava ir mais longe. O meu livro tenta ir um pouquinho mais longe.
Donna - O que o Tito achou de um livro sobre ele?
Mainardi - Ele acha muita graça. Acabei de receber
um comentário muito lisonjeiro da Lya Luft, sua conterrânea, e ela nota
que, em todas as fotos em que o Tito aparece, ele está sempre rindo. Ele
ri, acha graça, acha graça dele mesmo. Tem um sentido de
autodepreciação que o protege também contra o preconceito. Ele ajudou a
coletar as fotos, conhece todas as histórias, obviamente. Não tem um
interesse particular por ele mesmo, não é excessivamente vaidoso, mas
acha muita graça sobretudo do que aconteceu quando era recém-nascido e
nos primeiros anos. Quando não tem uma memória própria, ele tem
curiosidade de saber a minha memória. A partir do momento em que o livro
entra na memória mais recente, aí ele não tem muito interesse porque
tem a versão dele, que é melhor do que a minha, provavelmente (risos).
Donna - Algumas das passagens mais tocantes se referem aos
momentos em que você acompanha o Tito caminhando e vai contando os
passos, recomeçando do zero a cada vez que ele pisa em falso ou cai.
Depois da marca de 424 passos, registrada no subtítulo, você abandona
essa prática.
Mainardi - Esse livro não tem uma linha sequer
inventada. Parei de contar no final do livro e parei de contar na vida
real. Nossas expectativas são para amanhã de manhã, no máximo. Não tenho
a ideia fantasiosa de que vamos triunfar sobre a deficiência. Não é um
livro de superação. A nossa história não é uma história de superação. A
gente não superou coisa nenhuma. Meu filho tem uma paralisia cerebral
debilitante. Vivemos muito tranquilamente com isso, mas sem a ilusão de
que ela foi vencida. Detesto essas histórias de superação, não acredito
nelas. Sou realista, vejo as coisas como elas são.
Donna - Ainda que não faça projeções para muito adiante, o que você imagina para o futuro dele?
Mainardi - É melhor nem repetir porque é tudo bobagem alucinada de menino de 11 anos.
Donna - Ele quer ser astronauta?
Mainardi - Não, não (risos). Ele sabe que astronauta
não vai ser, não. Até os nove, 10 anos, ele queria ser vagabundo, não
fazer nada. E achava muita graça quando dizia isso. Na época, eu
trabalhava muito, mas talvez fosse o meu plano e ele tivesse incorporado
isso (Mainardi parou de trabalhar e diz que adora ser "vagabundo"). Não
tenho ideia. Hoje em dia, ele diz que quer ter uma temakeria com o
irmão, mas não é nada muito sério. A avó disse que ele tinha que ser
tabelião. Isso é muito italiano. É uma daquelas funções burocráticas que
sobrevivem na Itália. Aí ele diz: "Serei tabelião".
Donna - O idioma que vocês usam em casa é o português ou o italiano?
Mainardi - Italiano. Eles estão perdendo o
português. Quando estou sozinho com eles, falo português. Minha mulher é
veneziana. Eu a conheci em italiano, então a nossa língua afetiva
sempre foi o italiano. Logo que o Tito nasceu, nos transferimos para o
Rio e não imaginamos que pudéssemos voltar para Veneza. Então, não
queríamos que os nossos filhos perdessem o italiano. A gente falava
italiano em casa. Acabou que voltamos, e a língua familiar continuou a
mesma, é impossível mudar. Eles entendem tudo em português, falam um
pouquinho, se viram - o Tito melhor do que o Nico. O Nico saiu daqui
pequenininho, tem muita inibição de falar em português. O Tito se vira, e
o Nico, pessimamente.
Donna - Sua família ganhou uma indenização (mais de 3,1
milhões de euros, cerca de R$ 7,9 milhões) no processo contra o
hospital, o que representou um alívio grande em relação ao futuro do
menino - você comemorou, à época, a tranquilidade de, enfim, poder
morrer. Ainda assim, você teme o momento em que o Tito não tiver mais o
apoio e a segurança dos pais? Vocês pensam que o irmão menor pode acabar
assumindo essa grande responsabilidade?
Mainardi - Não. Se ele, por ventura, se dispuser a
fazer alguma coisa, a gente vai ficar muito feliz, mas não será uma
imposição. Como o irmão é rico, é bem possível que o canalha se aproxime
dele (risos). Um é milionário, o outro é duro, então é bem possível que
um seja obrigado a tutelar o outro. Mas o Nico não vai ter acesso ao
dinheiro do irmão, a gente vai deixar tudo certinho para que eles possam
usar o dinheiro mês a mês. Estou brincando, claro. Espero que eles
tenham uma boa relação. Não quero que o menor seja enfermeiro do maior,
mas se ele puder ajudar quando for necessário, e a gente nem sabe quanto
vai ser necessário... Aceitei com naturalidade toda a questão. Se surge
uma oportunidade, a gente colhe, se surge uma dificuldade, a gente
tenta resolver da melhor maneira. Quando não é possível resolver,
paciência. É assim que tem sido. Aos 11 anos, ainda é cedo. Onze anos
eram o suficiente para arrematar toda essa primeira fase da vida e fazer
um livro? Isso, sim. Já dava para tirar a soma sentimental e
intelectual da história. Não tenho mais o que dizer nessa área. Agora é
tocar.
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Reportagem Por Larissa Roso
Foto:
Camilla Maia / Agência O Globo
Fonte: ZH on line, 02/09/2012
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