RICARDO ANTUNES*
Na busca da felicidade como 'novo' leitmotiv do mundo gerencial, muitas vezes os de baixo acabam pagando a conta, avalia escritor
Numa primeira mirada, Felicidade S.A. parece mais um livro de
autoajuda a entulhar as prateleiras das livrarias dos aeroportos e,
assim, causar regozijo aéreo em quem lê só quando não tem mais nada que
fazer. Mas as aparências enganam...
Depois de passar anos na editoria de Época Negócios, entrevistando
gestores e consultores, lendo relatórios de pesquisas de diversos
países, perseguindo autores clássicos e contemporâneos, Alexandre
Teixeira, em seu métier jornalístico, realizou uma incursão nas ideias
que povoam o mundo dos que vivem de negócios - etimologicamente, os que
negam o ócio. Mergulhou no ideário gerencial dos que estão no topo. O
resultado é forte: se a onda é a do ideário da felicidade, a pragmática
que prolifera é a da corrosão.
Em suas entrevistas, o autor dialoga com os gestores e suas
concepções acerca das relações entre felicidade e dinheiro, liderança e
despotismo, sofrimento e ascensão, homem cordial e patriarcalismo, tempo
livre e tempo poluído fora do trabalho, meritocracia e qualidade de
vida, entre outros. Se, por vezes, o ex-editor de negócios aparenta
estar absorto pelo ideário dos gestores, o repórter pesquisador sempre
desconfia. Percebe que o movimento existente na superfície - a busca da
felicidade como o "novo" leitmotiv do mundo gerencial - está em
descompasso com a guerra das empresas globais em sua competitividade
destrutiva. Esse descompasso faz com que o paralelo acabe por entrar em
curto-circuito, e quando isso ocorre, são os "de baixo" que acabam
pagando a conta.
É por isso que o autor afirma que se trata de "um livro sobre a
felicidade no trabalho inspirado, em boa medida, pela ausência dela",
dadas as "reclamações generalizadas sobre as jornadas de trabalho
intermináveis" e a "ditadura do Blackberry", entre tantos outros
elementos. E não é fora de propósito lembrar que BlackBerry era um
grilhão usado durante a escravidão, nos Estados Unidos, que atava os pés
dos negros como forma de impedir sua fuga. Só que agora adentramos na
fase do grilhão digital.
Nas partes referentes às relações entre dinheiro, riqueza e
felicidade, o autor demonstra que o ideário da felicidade é
frequentemente obnubilado pelo frenesi do dinheiro e da riqueza. Chega a
ser constrangedor ouvir gestores lá de cima, no cume do controle,
afirmar que buscam mesmo é a felicidade. Seria interessante perguntar:
qual é a base de sustentação dessa "nova felicidade"? Como vivem os
proprietários/altos gestores/grandes acionistas entrevistados? Serão
comedidos no número de automóveis que possuem? São monges em relação ao
número de aposentos em suas mansões e na vastidão de suas propriedades
para viver o gozo e a fruição? São constritos na parafernália de
aparelhos informacionais-digitais (computadores, tablets, ipads,
iphones, celulares, televisores, etc.) que possuem, eles, seus filhos e
familiares? Ou será que a "felicidade" tão almejada no "espaço de
trabalho" dos gestores é aquela que se erige a partir da abundância do
consumo fetichizado e da superfluidade? Se assim for, seria também
interessante indagar como a felicidade nos escalões de cima se sustenta e
se fundamenta na "redução" das necessidades e carecimentos cotidianos
daqueles que vivem no chão das empresas.
O livro apresenta um amplo leque de indicações sugestivas,
especialmente à medida que vai descendo os degraus das hierarquias dos
assalariados nas empresas: o Japão do emprego vitalício, por exemplo, ao
ocidentalizar-se e praticar seu downsizing, não estaria vitimando
especialmente seus jovens, dado que as corporações querem cada vez mais
trabalhadores "diaristas"? A Google, ao oferecer condução para seus
"colaboradores", com Wi-Fi para que possam conectar-se e laborar antes
mesmo do horário de trabalho começar e ainda ofertar lavanderia para
seus "colaboradores", não estaria se apropriando do tempo de trabalho de
seus engenheiros e programadores? E a Atlasian, produtora australiana
de software, ao criar o FedEx Day, "um dia de trabalho a cada trimestre
no qual os funcionários ficam livres para trabalhar no que desejarem,
com o único compromisso de entregar algo à empresa no dia seguinte", não
estaria fazendo o mesmo? O resultado: em 18 realizações do dito-cujo,
"550 projetos foram apresentados e 47 projetos ou aprimoramentos foram
entregues a clientes da companhia". Não é preciso dizer que a ideia do
FedEx Day se espalhou pela "aldeia global", pois instilar "ócio
criativo" traz mesmo é aumento da massa de mais valia, através da
subordinação dos trabalhos imateriais à forma-mercadoria.
E foi seguindo essa trilha que o qualificado livro-reportagem de
Alexandre Teixeira, ao tratar da felicidade no trabalho, mesmo daqueles
que dispõem de certo "capital cultural", esbarrou frequentemente em sua
infelicidade. O que não dizer, então, dos que estão lá "em baixo", cuja
felicidade em ter emprego convive cotidianamente com o risco de
perdê-lo?
-------------------
* Sociólogo.
Fonte: Estadão on line, 18/09/2012
Imagem da Internet
Nenhum comentário:
Postar um comentário