Antonio Carlos Barbosa de Oliveira*
Estamos acostumados a utilizar diariamente nossos computadores e
telefones inteligentes para uma enorme diversidade de tarefas, tais como
escrever um texto, calcular uma planilha, pesquisar um fato na internet
ou simplesmente jogar um vídeo game. Fazemos isso sem nos darmos conta
de que uma única maquina consegue realizar um número ilimitado de
funções. Quando queremos utilizar nosso computador para uma nova tarefa,
vamos à loja de aplicativos do nosso fabricante favorito e escolhemos
um novo programa, que, depois de instalado em nosso computador
universal, passa a realizar a nova função. Essa ideia, aparentemente
simples e hoje em dia absolutamente clara para qualquer pessoa, foi
concebida em 1936 por um dos maiores gênios do século XX, o matemático
inglês Alan Turing, de quem se comemora neste ano os cem anos de
nascimento. Praticamente desconhecido do grande público, mesmo em seu
país, Turing merece reconhecimento amplo, ainda que tardio.
O matemático alemão David Hilbert definiu nos anos 1920 um programa
de pesquisa centrado em demonstrar a consistência, a completude e a
decidibilidade da matemática. Consistência, na matemática, significa que
os axiomas não geram contradições lógicas. Completude significa que
qualquer sentença matemática verdadeira pode ser demonstrada a partir
dos axiomas. Decidibilidade significa dispor de um processo puramente
mecânico que permita saber se uma sentença matemática é falsa ou
verdadeira. O programa de Hilbert, como seu projeto passou a ser
conhecido, sofreu um primeiro impacto negativo com o matemático
austríaco Kurt Gödel, que em 1931 demonstrou a impossibilidade de
qualquer sistema lógico formal de certa complexidade ser simultaneamente
completo e consistente. Utilizando a própria lógica matemática para
demonstrar suas limitações, Gödel constrói a sentença lógica "Esta
sentença não pode ser demonstrada". Se admitirmos que a sentença é
verdadeira, ela realmente não pode ser deduzida a partir dos axiomas e o
sistema lógico é incompleto. Se admitirmos que a sentença é falsa,
então ela pode ser deduzida a partir dos axiomas e o sistema é
inconsistente, pois permite a dedução de uma sentença falsa. Um sistema
lógico que permite a dedução de sentenças falsas permite também a
demonstração de qualquer coisa e é absolutamente inútil. Assim, os
matemáticos passaram a trabalhar sabendo que existem verdades
matemáticas que não podem ser deduzidas ou demonstradas; qualquer
sistema axiomático, sendo consistente, será sempre obrigatoriamente
incompleto.
A questão da decidibilidade permanece em aberto até que Alan Turing,
com 23 anos e recém-nomeado "fellow" na Universidade de Cambridge,
resolve atacar o problema. Em 1936, ele conclui o trabalho que dá o
golpe de misericórdia no programa de Hilbert, mostrando que é impossível
definir um procedimento mecânico que determine a verdade ou a falsidade
de toda e qualquer sentença matemática. Para chegar a essa importante
descoberta matemática, Turing inventa uma máquina computacional
universal, um dispositivo abstrato que posteriormente se realizaria
fisicamente nos computadores hoje utilizados.
A palavra "computador", ou "computer" em inglês, era utilizada para
descrever pessoas, em geral mulheres, que realizavam cálculos
manualmente. Existiam empresas cujo negócio era vender serviços de
cálculos matemáticos, utilizando o trabalho de "computers", treinadas
para executar manualmente uma sequência de procedimentos que resultaria
na solução numérica de um problema matemático.
Para formular adequadamente o "Entscheidungsproblem" (problema da
decidibilidade), Turing precisava formalizar a noção de um procedimento
puramente mecânico em um calculo matemático, e parte da observação de
como os seres humanos, as "computers" da época, faziam cálculos,
escrevendo símbolos com lápis e papel. Tentando caracterizar os
principais elementos do processo de cálculo, Turing define uma máquina
simples, composta por uma fita unidimensional e infinita em que símbolos
podem ser lidos ou escritos. Com essa máquina puramente abstrata, que
funciona com regras bastante simples, Turing consegue capturar a
essência do processo computacional e afirma que existe uma máquina
universal capaz de executar qualquer cálculo, a partir de instruções
gravadas na própria fita. Não é necessário criar máquinas especificas e
individuais para cada problema. Uma única máquina universal, com uma
sequência de símbolos em sua fita - hoje, diríamos com um programa ou
software -, pode realizar toda e qualquer computação. Especificando a
máquina universal, Turing prova que existem funções incomputáveis e que
não é possível, como imaginou Hilbert, criar um processo puramente
mecânico para determinar se sentenças matemáticas são verdadeiras ou
falsas. Turing consegue, simultaneamente, obter um maravilhoso resultado
matemático e cria a base teórica para a maior revolução tecnológica do
século.
Turing termina de escrever seu importante trabalho e viaja aos
Estados Unidos para fazer o doutorado em Princeton. Ao voltar à
Inglaterra, em 1938, resolve aplicar seu talento matemático para ajudar o
país a enfrentar a ameaça nazista.
A máquina de guerra alemã necessitava de um processo eficiente de
comunicação para implementar a estratégia de blitzkrieg com movimentação
rápida de tropas e recursos. Resolve, então, adotar um sistema de
comunicação por radiotelégrafo, baseado em mensagens cifradas por uma
máquina chamada Enigma. A máquina, portátil e alimentada por bateria,
consistia em um teclado e um painel de lâmpadas. Quando uma tecla era
pressionada, o sinal elétrico passava por uma série de três rotores e um
painel de cabos que trocava a letra pressionada por outra letra que
aparecia acesa no painel luminoso. Para cada letra, os rotores mudavam
de posição, fazendo com que a letra resultante fosse diferente.
Teoricamente, para decifrar uma mensagem, seria necessário tentar 10
bilhões de bilhões de combinações diferentes, para determinar a
configuração utilizada na criptografia da mensagem e conseguir
decifrá-la.
O serviço de inteligência inglês escolheu Bletchley Park, uma casa
senhorial construída por um negociante no século XIX, localizada entre
Oxford e Cambridge, para instalar um time de matemáticos, linguistas,
jogadores de xadrez e outros especialistas, em um ambiente sem nenhuma
disciplina militar. Nesse lugar quase acadêmico, muito parecido com os
atuais laboratórios de pesquisa multidisciplinares, as maiores
inteligências da Inglaterra conseguiram decifrar o código Enigma e
outros códigos alemães e japoneses.
Turing teve papel fundamental. No inicio da guerra, a Inglaterra
estava totalmente dependente dos comboios de navios para abastecer a
ilha. Esses navios eram extremamente vulneráveis aos submarinos alemães,
os "U-boats", que recebiam ordens e reportavam suas posições através do
radiotelégrafo cifrado pela Enigma.
Para quebrar o código, os ingleses se valeram de uma limitação da
máquina e de erros humanos cometidos pelos operadores alemães. Uma
característica da Enigma era que uma letra nunca era cifrada como ela
mesma, mas sempre como uma letra diferente. Os operadores alemães
utilizavam muitas vezes mensagens padronizadas, em que algumas palavras
sempre eram repetidas no inicio da mensagem. Alinhando as palavras que
provavelmente haviam sido utilizadas com as letras da mensagem cifrada e
sabendo que uma letra seria sempre cifrada em uma letra distinta, para
cada mensagem interceptada era possível obter um diagrama que reduzia
substancialmente o numero de combinações a serem exploradas. Mesmo
assim, a análise manual dessas combinações era inviável.
Turing projetou uma máquina eletromecânica, apelidada de "Bombe", que
permitia a análise de combinações em alta velocidade e viabilizava a
produção de mensagens decodificadas em escala industrial. Os líderes
militares aliados começaram a receber diariamente as mensagens alemãs e
as perdas de navios nos comboios caíram substancialmente.
No auge da guerra, mais de 10 mil pessoas trabalhavam na recepção,
decodificação e análise de mensagens cifradas. Historiadores modernos
acreditam que o trabalho em Bletchley Park reduziu a duração da guerra
em pelo menos dois anos. Terminada a guerra, Churchill ordena a
destruição de todas as máquinas "Bombe" e proíbe todos os civis e
militares em Bletchley Park de comentarem o que fizeram. O segredo foi
mantido durante mais de 20 anos. Turing recebeu a condecoração OBE
("Order of the British Empire"), mas ninguém pôde saber por quê. Seu
trabalho na quebra do código Enigma permaneceria desconhecido até os
anos 1970.
No final da guerra, os americanos anunciam o término da construção do
ENIAC, o primeiro computador eletrônico, utilizado para cálculos de
trajetórias balísticas. Essa máquina gigantesca precisava ser
reconfigurada, mudando-se cabos e chaves elétricas, para cada novo
problema a ser resolvido, processo que muitas vezes durava várias
semanas. Não era a máquina universal programável que Turing havia
imaginado.
Em 1945, o matemático John von Neumann escreve o projeto EDVAC, novo
computador baseado na ideia de um programa armazenado internamente na
memória. Von Neumann não cita o trabalho de Turing em seu relatório, mas
existem várias evidências de que ele conhecia a proposta da máquina
universal de Turing e a utilizou em seu projeto.
Os ingleses, temendo ficar atrasados em relação aos americanos no
desenvolvimento de computadores, iniciam vários novos projetos. Turing
passa a trabalhar no National Physical Laboratory (NPL) e escreve uma
proposta para construção do computador programável ACE ("automatic
computing engine"). Enquanto o relatório de von Neumann é preliminar e
deixa muitos pontos indefinidos, a proposta de Turing é completa e
detalhada. Mais de dez anos após inventar a máquina universal, Turing
tem a oportunidade de realizar fisicamente seu computador.
Além de ter a ideia da máquina universal e projetar um dos primeiros
computadores baseados nessa ideia, Turing também se dedica a indagações
filosóficas sobre a natureza da mente e inicia o debate sobre a
possibilidade de uma máquina ter inteligência. Seu trabalho mais
conhecido nessa área é "Computer machinery and intelligence", publicado
em 1950. Pela primeira vez o computador é visto não apenas como uma
máquina para calcular números, mas como um processador de símbolos,
capaz de apresentar comportamento que talvez possa ser considerado
inteligente.
O estilo do ensaio é claramente de provocação aos filósofos. Turing
propõe um jogo, envolvendo três participantes, para determinar se um
computador é inteligente. Um deles faz perguntas através de um teletipo
aos dois outros participantes, um dos quais é um computador programado
para imitar um ser humano. Se o computador conseguir se fazer passar por
um ser humano, ou seja, se o indagador não conseguir distinguir quem é
humano e quem é a máquina, pode-se dizer que se está frente a um
computador inteligente. O "Teste de Turing", como esse jogo passou a ser
conhecido, até hoje é relevante nas discussões dos filósofos sobre a
natureza da mente.
Nos ambientes mais tolerantes de Cambridge e Bletchley Park, a
homossexualidade de Turing, sempre assumida e aberta, nunca havia sido
um problema. Em Manchester, onde desenvolvia modelos matemáticos do
processo biológico de morfogênese, Turing é vitima de um pequeno furto
em sua casa. Vai à delegacia local denunciar o furto e menciona seu
relacionamento com um jovem. Imediatamente, deixa de ser a vítima de um
furto e passa a ser réu, pois a relação homossexual na Inglaterra era
considerada crime. Em 1952, é julgado e condenado por "gross indecency" e
perde o status de segurança que ainda tinha como consultor do serviço
secreto britânico. A pena imposta é a castração química, através da
ingestão de hormônios femininos que, entre outros efeitos, faz crescer
seios. Em 1954, sua governanta o encontra morto na cama; ao seu lado,
uma maçã mordida e um forte cheiro de cianureto no quarto. Turing não
deixa nenhuma nota e a policia conclui o inquérito como suicídio por
envenenamento.
Em geral, os matemáticos fazem suas grandes contribuições antes dos
30 anos. No caso de Turing, sua grande descoberta sobre números
computáveis foi feita antes dessa idade, mas sem dúvida, quando foi
condenado, ele ainda estava cheio de ideias e poderia ter produzido
muito, se não tivesse morrido. Também se pode imaginar que, caso tivesse
sido incriminado antes por sua homossexualidade, a Inglaterra teria
ficado sem sua criatividade e engenhosidade para decifrar os códigos
alemães e poderia ter perdido a guerra.
Quando ligo o computador e vejo uma maçã mordida na tela, não posso
deixar de pensar nesse gênio terrivelmente injustiçado. A Apple nega que
seu logotipo seja uma referência ao suicídio de Turing.
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Antonio Carlos Barbosa de Oliveira é engenheiro (USP) e "master of science" (MIT). E-mail: acbolive@mac.com
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