Celso Lafer*
O que quer dizer uma conduta republicana? Por que essa
referência, relacionada à afirmação de espírito público, é importante
para o debate nacional?
O termo República tem, entre seus significados, o sentido amplo de
comunidade política organizada. O título do livro de Hannah Arendt de
1972, Crises da República, aponta para esse sentido amplo de comunidade
política, mas ao mesmo tempo indica que a crise dos EUA, naquela
ocasião, tinha sua raiz na falta de ética republicana proveniente do uso
da mentira e da glorificação da violência.
Na perspectiva mais específica de formas de governo, República
contrapõe-se à Monarquia. Assinala a diferença entre o poder exercido em
função de direitos hereditários e o poder eleito, direta ou
indiretamente, pelo povo. Nesse sentido, República tem afinidades com
democracia e aponta para a igualdade.
A contraposição Monarquia/República remonta aos romanos, que depois
da exclusão dos reis substituíram o governo de um só pelo governo de um
corpo coletivo. Na elaboração do conceito de República teve grande peso a
reflexão de Cícero, que diferenciava a res publica - a coisa pública -
da privada, doméstica, familiar, estabelecendo, assim, a distinção entre
o privado, o particular a alguns, e o público, o comum a todos, que por
isso deve ser do conhecimento de todos. Daí a origem do princípio da
publicidade da administração pública, previsto na Constituição em seu
artigo 37.
Para Cícero, o público diz respeito ao bem do povo, que não é uma
multidão dispersa de seres humanos, mas sim, numa República, um grupo
numeroso de pessoas associadas pela adesão a um mesmo direito e voltadas
para o bem comum. A dedicação ao bem comum está na raiz do princípio da
moralidade da administração pública, igualmente previsto no mesmo
artigo da Constituição.
Faço essas remissões para apontar que a importância do espírito
público é inerente a uma postura republicana, o que quer dizer, em
primeiro lugar, que não cabe misturar o público e o privado e que é
inaceitável, numa República, o patrimonialismo do uso privado da coisa
pública. Esse é um dos pontos de partida do republicanismo.
Este, na teoria política contemporânea, não tem maior interesse no
contraponto Monarquia/República, que perdeu atualidade na agenda
política do século 21. Está voltado para as consequências da falta de
ética na política e na sociedade, da qual um sintoma é a generalizada
perda do senso de vergonha, que é sempre a expressão de um sentimento
moral. Um exemplo é a desfaçatez da conduta dos gestores dos bancos que
levaram à crise financeira mundial.
Para Montesquieu, o princípio que explica a dinâmica de uma
República, ou seja, o sentimento que a faz durar e prosperar, é a
virtude. É nesse contexto que se pode dizer que a motivação ética é de
natureza republicana. Isso passa, como diz Viroli, pela virtude civil do
desejo de viver com dignidade e pressupõe que ninguém poderá viver com
dignidade numa comunidade política corrompida.
Numa República, como diz Bobbio num diálogo com Viroli, o primeiro
dever do governante é o senso de Estado, vale dizer, o dever de buscar o
bem comum, e não o individual, ou de grupos; e o primeiro dever do
cidadão é respeitar os outros e se dar conta, sem egoísmo, de que não se
vive em isolamento, mas sim em meio aos outros.
É por essa razão que a República se vê comprometida quando prevalece,
no âmbito dos governantes, em detrimento do senso de Estado, o espírito
de facção voltado não para a utilidade comum, mas para assegurar
vantagens e privilégios para grupos, partidos e lideranças. O intenso e
aprofundado "aparelhamento do Estado" que vem caracterizando o PT no
poder é expressão de conduta não republicana.
O conceito de República aponta para o consensus juris do governo das
leis, e não dos homens, ou seja, para o valor do Estado de Direito.
Assim, não é por acaso que o papel de uma Constituição e do
constitucionalismo foi afirmado nos EUA, que, como a França, assinala a
emergência das Repúblicas modernas. O governo das leis obstaculiza o
efeito corruptor do abuso do poder das preferências pessoais dos
governantes por meio da função equalizadora das normas gerais, que
assegura, ao mesmo tempo, a previsibilidade das ações individuais e, por
tabela, o exercício da liberdade. Trata-se, assim, de um modo de
governar baseado no respeito às leis. É por essa razão que os princípios
da legalidade e da impessoalidade da administração estão consagrados no
artigo 37 da Constituição.
Naturalmente, para o bom governo não bastam as boas normas, como as
do artigo 37 da Constituição. É preciso que sejam cumpridas. É por esse
motivo que a impunidade é um fator de erosão do governo das leis e uma
modalidade da sua corrupção. Por isso cabe louvar a conduta republicana
com que o STF vem lidando com o mensalão.
Numa República as boas leis devem ser conjugadas com os bons costumes
de governantes e governados, que a elas dão vigência e eficácia. A
ausência de bons costumes leva à corrupção, palavra que vem do latim
corrumpere, que significa destruição e vai além dos delitos tipificados
no Código Penal. Políbio, tratando dos modos pelos quais um regime
político se vê destruído pelo movimento da corrupção, recorre a uma
metáfora esclarecedora. A corrupção, num regime político, exerce papel
semelhante ao da ferrugem em relação ao ferro ou ao dos cupins em
relação à madeira: é um agente de decomposição da substância das
instituições públicas.
O espírito público da postura republicana é o antídoto para esse
efeito deletério da corrupção. É o que permite afastar a mentira e a
simulação, inclusive a ideológica, que mina a confiança recíproca entre
governantes e governados, necessária para o bom funcionamento das
instituições democráticas e republicanas. É por isso que a afirmação de
uma ética republicana não é um "moralismo trivial". Está na ordem do dia
no Brasil e no mundo como condição de um bom governo.
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* PROFESSOR EMÉRITO DO INSTITUTO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS DA USP
Fonte: http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,etica--republicana-,931263,0.htm 16/09/2012
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