Sérgio Augusto*
'Inocência dos Muçulmanos', o polêmico filme-ofensa a Maomé, foi mero pretexto para ações em adiantado estado de gestação
Inocência dos Muçulmanos já entrou para a história do
cinema como o filme mais nefasto até hoje produzido. Nem Ramona, casual
"responsável" por uma série de incêndios em salas de exibição americanas
no século passado, nem o último Batman, que no Colorado deixou um saldo
do 12 mortos e 58 feridos, causaram tanto estrago quanto o filmeco
contra Maomé que essa semana tomou conta do noticiário internacional.
Por sua causa, já mataram um diplomata e três funcionários do
consulado dos Estados Unidos em Benghazi (Líbia), invadiu-se a embaixada
americana no Cairo e atos de vandalismo e extrema violência foram
cometidos no Egito, no Iêmen, no Sudão, no Líbano, na Nigéria, na
Tunísia e em Bangladesh, comprometendo o que ainda resta da Primavera
Árabe e da ascendência diplomática da Casa Branca no Oriente Médio. Além
de expor a um revertério a campanha reeleitoral de Obama, principal
fiador do fim do jihadismo. Há 33 anos uma invasão da embaixada
americana em Teerã, insuflada pelo aiatolá Khomeini, custou a reeleição
de Jimmy Carter.
Mais um vídeo do que propriamente um filme, de que se pretende
trailer, Inocência dos Muçulmanos nem precisou chegar à tela grande para
cumprir seus objetivos políticos. Bastou-lhe o circuito gratuito e
universal do YouTube. Mero pretexto para ações em adiantado estado de
gestação, sem a colaboração do fanatismo religioso e de um ressentimento
acumulado contra os americanos e Israel na região, o tosco agitprop
anti-islâmico, um pavio de ódio medindo apenas 14 minutos, não teria
provocado tantos distúrbios.
Jesus Cristo foi ridicularizado por Luis Buñuel e Salvador Dalí em
L'Âge d'Or, gozado pelos Monty Python e incomodamente humanizado por
Martin Scorsese, mas nenhuma dessas supostas blasfêmias cinematográficas
incitou os cristãos mais fervorosos a represálias violentas. No tempo
do cinema mudo, a figura de Cristo era sempre respeitosamente mostrada
de costas ou apenas vista de longe, seu rosto um mistério, um tabu, como
o de Maomé jamais deixou de ser. Mas nem se tratasse o profeta islâmico
de forma reverente Inocência dos Muçulmanos seria visto com indulgência
pelos iconofóbicos filhos de Alá.
Além de feições humanas, Maomé ganhou atributos infamantes.
Retrataram-no como um monstro messiânico, como um bastardo corroído pela
cobiça, mulherengo, pedófilo, sanguinário, e seus seguidores como um
bando de retardados a serviço de uma religião "inerentemente opressiva".
Se a intenção primordial era vender o peixe de que os seguidores do
Islã são intolerantes e agressivos, Sam Bacile, o autor oficial da
patranha, não errou o alvo.
Sam Bacile, desmascarou-se em menos de dois dias, é o pseudônimo de
um californiano de 55 anos chamado Nakoula Basseley Nakoula. Não é um
agente imobiliário israelense, estabelecido em Los Angeles, como se
acreditava que Bacile fosse, mas um cristão copta, visceralmente
anti-islâmico, julgado e preso por várias falcatruas financeiras. No set
de filmagem, apresentava-se como egípcio e falava árabe, conforme
testemunhos recolhidos por dois incansáveis repórteres da Associated
Press, Gillian Flaccus e Stephen Braun, responsáveis pelo desvendamento
da misteriosa encrenca.
Ainda oculto pelo nome falso, Nakoula conversara por telefone com a
reportagem do Wall Street Journal, que engoliu a cascata de que ele
estava foragido. Ninguém do ramo imobiliário e da indústria de cinema
ouvira falar em "Sam Bacile"; o serviço secreto de Israel, tampouco.
Suspeitou-se, por algumas horas, que por trás da enigmática figura
estivesse o pastor evangélico Terry Jones (aquele que há dois anos andou
queimando exemplares do Alcorão e, meses atrás, prometeu exibir o
trailer de Inocência dos Muçulmanos em seu templo, em Gainesville, na
Flórida) ou o islamofóbico histórico Morris Sadek, copta egípcio
radicado na Califórnia.
As pistas ainda estavam desencontradas quando surgiu uma nova
incógnita: Steve Klein, securitário de Hemer (Califórnia) e veterano da
Guerra do Vietnã conhecido no Estado por suas manifestações contra o
Islã e o aborto em escolas, agremiações e até pelo microfone amigo de
uma rádio cristã do Oriente Médio. Klein apresentou-se ao site da
revista The Atlantic como consultor de "Bacile" na produção do filme, e
confirmou: "Não é seu verdadeiro nome, nem ele é israelense". Revelou
ainda ter-lhe lembrado do que aconteceu com o holandês Theo van Gogh,
assassinado por um militante islâmico em 2004 por causa de um filme
sobre abusos do Islã.
Pelo número do telefone de "Sam Bacile", os dois citados repórteres
da AP chegaram a Nakoula, perto de Los Angeles, e descobriram que ele
não se limitara a dar apoio logístico à produção do filme. Nakoula havia
produzido e dirigido Inocência dos Muçulmanos, filmado nos arredores de
Los Angeles durante três meses no verão de 2011, com 59 atores e 45
técnicos, ao custo de US$ 5 milhões, que teriam sido doados por mais de
uma centena de judeus americanos.
A atriz Cindy Lee Garcia, identificada e localizada através de uma
agência de casting de Hollywood, confirmou parte da história. O filme,
intitulado Desert Warriors (Guerreiros do Deserto) durante as filmagens,
não tinha nenhuma conotação religiosa, segundo ela, que confessou ter
ficado chocada ao constatar, no YouTube, que haviam dublado suas falas
em inglês para o árabe e enfiado Maomé numa intriga cujo vilão não se
chamava Muhammad, mas "Master George", um celerado sequestrador de
crianças e estuprador de mulheres.
Filmes com mensagens anti-islâmicas não são uma raridade na América
pós-11 de Setembro. A Clarion Foundation, criada pelo rabino canadense
Raphael Shore, especializou-se nesse tipo de documentiras doutrinárias e
vai de vento em popa. Estreou em alto estilo com Obsession, paranoico
alerta sobre a guerra que os muçulmanos radicais deflagrariam contra o
Ocidente caso Obama se elegesse presidente, distribuído gratuitamente em
milhares de domicílios durante a campanha presidencial de 2008.
Anders Breivik, o recém-condenado terrorista de Oslo, menciona
Obsession uma dezenas de vezes em seu manifesto islamofóbico. Voltamos
às Cruzadas.
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* Colunista do Estadão
Fonte: http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,um-pavio-de--14-minutos,931319,0.htm
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