Boris Fausto*
Um eleitor com cabeça de consumidor alavanca Russomanno e sepulta antigos mitos da política
Moro sozinho e não pretendo sair daqui", já foi
anunciando o dono da agradável casa no bairro do Butantã, à saída da
Cidade Universitária, em São Paulo. Aos 81 anos, viúvo, filhos criados e
netos idem, o historiador Boris Fausto ordenha a cafeteira elétrica
enquanto decreta seu desejo de continuar vivendo sozinho na residência
projetada por Sérgio Ferro, lá nos anos 1960, quando das pranchetas de
jovens arquitetos saíam moradias de inspiração comunista e conforto
burguês. Pois no ano passado tombaram a casa do professor. Com ele
dentro e meio século de memórias por todos os cantos. O tombamento
inesperado, e nunca desejado, como é de costume, acabou por levar o
morador a voltar-se ainda mais para a administração da cidade onde
nasceu, em 1930. Até de Plano Diretor passou a entender. E assim, entre
experiências pessoais e vasto conhecimento acumulado, Boris Fausto
concedeu esta entrevista na quinta-feira, provocado a refletir sobre o
processo eleitoral que se descortina em torno de um dos mais cobiçados
postos da política nacional: a Prefeitura de São Paulo.
Entrevista delicada, até pela indefinição do quadro eleitoral, mas
repleta de comentários vindos de um observador que faz questão de pensar
com independência. Para Fausto, a dianteira nas pesquisas do candidato
Celso Russomanno (PRB), a dificuldade de alavancagem de Fernando Haddad
(PT), um afilhado de Lula, e a impressionante rejeição de José Serra
(PSDB) têm a ver com as novas feições do eleitorado paulistano, tantas
vezes rotulado de conservador. Aponta a emergência formidável de uma
classe C que vai se constituindo como sujeito político, para quem o
julgamento do mensalão, com seu palavrório empolado, não incomoda tanto
quanto o dia a dia numa metrópole emperrada, extenuante, cujos serviços
não funcionam. Assim, seria um cidadão consumidor, e não o cidadão
eleitor propriamente dito, quem hoje etiqueta Russomanno como uma
novidade na política. E lhe promete o voto.
Formado em direito no Largo de São Francisco e com todo um percurso
acadêmico em história na própria USP, Boris Fausto é autor de um
clássico das ciências sociais, A Revolução de 30, além de uma vasta obra
recentemente acrescida de Memórias de um Historiador de Domingo (ed.
Companhia das Letras). Na entrevista que se segue, o professor também se
detém em analisar o chamado "voto religioso", atrelado particularmente
às igrejas evangélicas, e em minimizar a importância do horário
gratuito, com seus programas enfadonhos, onde a disputa por um minuto a
mais de exposição "leva os candidatos a fazerem acordo com o diabo e a
Virgem Santíssima". Independentemente do que as urnas eletrônicas
poderão cravar em breve, Boris Fausto admite que o processo eleitoral em
curso já está dando importantes recados à classe política brasileira.
Prestar atenção será questão de sobrevivência.
A despeito da relevância da disputa que se trava, a campanha
para prefeito em São Paulo resvala num debate de segunda. Ou de quinta,
para muitos. Por quê?
Um pouco tem a ver com a política em âmbito municipal. Quando se vai
para o plano federal, a falação, o bate-boca, as pegadinhas, isso tudo
faz menos sentido. A disputa municipal convida a uma política mais
localizada, mas esse aspecto também não é explicação suficiente para o
que temos visto. O problema é mais complexo. Tem a ver com o fenômeno da
banalização da política e a introdução do marketing nas campanhas. O
marketing televisivo, principalmente esse, se transformou numa espécie
de mito. O candidato faz acordos com o diabo e a Virgem Santíssima por
um minuto no horário eleitoral gratuito. Mas, interessante notar, a
televisão não está tendo a importância que se atribui a ela. As pessoas
vêm demonstrando cansaço desses programas engessados, enfadonhos. Veja o
caso do Celso Russomanno, que está na dianteira folgada das pesquisas e
tem pouquíssimo tempo de exposição no horário gratuito. Você poderá
dizer 'ah, mas a fama dele vem do trabalho radiofônico que desenvolveu,
trabalho que o ajudou a montar a imagem de defensor dos consumidores'.
Sim, sem dúvida, mas o desempenho dele agora não está associado
diretamente à exposição na TV. Nos dias atuais a construção de uma
candidatura passa por outros meios. Fora isso, o eleitorado mudou muito.
Qual o sentido dos comícios hoje em dia? Especialmente numa metrópole
como São Paulo, com computadores por toda parte, a internet influencia
muito mais o processo, e nós precisaríamos medir melhor isso. Não se
aguenta mais aquele programa eleitoral em que temas importantes passam
ao largo e o candidato é apresentado apenas por suas virtudes,
endossadas por alguns populares caídos do céu. Ora, ninguém quer ver
isso. Ou pouca gente vê.
Por que, mesmo com a amplitude da internet, o lado paroquial da política se mantém?
Porque mesmo numa metrópole como São Paulo não se pode desconsiderar o
aspecto da regionalização. Além das subprefeituras, que têm uma
importância imensa do ponto de vista administrativo, ainda existem os
chamados "caciques de bairro". Você ainda encontra essa figura por aí.
Então é natural que se lide com reivindicações específicas, locais. Isso
pode definir em parte a política paroquial, para usar sua expressão.
Mas também o termo "paroquial" hoje nos remete à influência do voto
evangélico, algo que avança muito nesta cidade. Tenho observado o
crescimento e sei que se trata de uma experiência sociológica
interessante, porém não posso deixar de apontar a manipulação das
pessoas num nível muito grave ao ver os programas religiosos
eletrônicos. Esse fenômeno se converte em força política, certamente. E
numa força política plural, pois vão aparecendo diferentes denominações
religiosas. Ainda bem que não constituem uma força monolítica! O fato é
que o grau de negociação dessas igrejas com os candidatos é intenso e
acaba por comprometer o discurso. Quem, com esse tipo de apoio, vai
discutir direito ao aborto? Quem vai tratar de homossexualidade?
Ninguém, a não ser um candidato de um partido menor, sem nenhuma chance
de vitória. Os candidatos que estão no páreo são obrigados a adotar
posições ambíguas ou até mesmo contrárias às suas convicções para contar
com o apoio dessas igrejas. Isso gera uma distorção tremenda. Quando
Russomanno falou em abrir uma igreja em cada esquina, pensei: como seria
aborrecido...
São Paulo já teve administrações voltadas para obras, outras
voltadas para o social e agora surge um quadro mais difuso com a
emergência do chamado 'voto religioso'.
Estamos atravessando um período, que eu prefiro acreditar provisório,
de relativa regressão política. A procura desesperada por votos imprime
essa marca esquisita, como se o processo eleitoral fosse convertido
numa concorrência mercadológica entre pessoas. Ao longo desse processo,
figuras políticas perdem força. Havia por aqui duas correntes definidas:
uma direita oportunista, Adhemar, Maluf, Pitta - eu posso não gostar
deles, mas tinham uma definição - e tinha uma corrente mais social,
Covas, Erundina, lembrando, contudo, que Lula não ganhou em São Paulo.
Hoje a novidade vem da emergência da classe C, um contingente muito
grande que, ao que parece, em boa parte está se identificando com o
Russomanno. Essa classe representa uma nova figura social e infelizmente
não se procurou saber ao certo em que candidato ela iria votar.
Russomanno está sendo identificado não como o preferido pelo cidadão
eleitor, mas como o preferido por um cidadão consumidor. O fato de ter
tido processos, ter sido amigo do Maluf, isso não está contando neste
momento.
O que o senhor quer dizer com esse cidadão consumidor?Nessa
febre de consumo que se vê por aí, num país tão desigual e com educação
ainda tão precária, a figura do Russomanno compõe bem. Até porque
existe uma grande irritação na cidade com os serviços. As pessoas vivem
irritadas. Veja a rejeição à administração do Kassab, algo que está
pesando sobre os ombros do Serra. Ora, se alguém aparece como paladino
do consumidor, como defensor do usuário da cidade, alcança repercussão. O
que se espera do administrador municipal também parece ter mudado. São
Paulo conviveu durante muito tempo com prefeitos que buscavam encarnar a
imagem do tocador de obras. O Adhemar de Barros dizia que São Paulo
precisava de gerente. Pois ele conseguiu calar adversários justamente ao
se posicionar, e entrar para a história, como o construtor do Hospital
das Clínicas, muito embora quantos hospitais poderiam ter sido
construídos com o dinheiro que ele levantou para fazer o HC... Maluf
marqueteou o tempo todo obras que fez, muitas ainda polêmicas. Hoje a
cidade se diversificou e candidato que ficar falando em construir ponte,
viaduto, avenida, já não vai atrair tanto. Porque o eleitor não está
preocupado com a expansão e sim com o funcionamento da cidade. Até acho
bom que o discurso "tocador de obras" já não cole mais. O que incomoda
as pessoas é o transporte público deficiente, o trânsito infernal, o
atendimento ruim à saúde... Quem resolver esse tipo de problema não
precisará, a meu ver, ser de direita ou de esquerda. Aliás, as tinturas
políticas também estão se diluindo, esse é outro dado do nosso tempo. Os
brasileiros perceberam que voto direto não resolve tudo, como lhes foi
prometido lá trás, na redemocratização. Claro que o voto direto é bom,
mas não resolve tudo. Uma parte da descrença na política vem dessa
constatação inevitável.
Vamos pensar na vassourinha janista. Ou na reação das pessoas
diante dos rombos financeiros dos anos Maluf-Pitta. O tema da corrupção
ainda é decisivo em São Paulo? Já que você mencionou o
Jânio, talvez ele tenha sido o primeiro a perceber que o ataque à
corrupção não era um movimento reacionário, nem pequeno-burguês, mas que
havia campo para trabalhar politicamente a ideia. Então ele veio com as
vassourinhas contra corruptos, aqueles jingles todos, ousou uma
campanha interessante, ainda que altamente manipuladora. Deixou o
exemplo, tanto que a campanha do Collor à Presidência, com toda a ênfase
em caçar marajás, era uma reedição da ideia janista. Hoje é possível
ver que tanto o tema da boa gestão quanto o do combate aos corruptos
continuam significativos em São Paulo. E em outras capitais também. Mas
arrisco um palpite. Mesmo com o julgamento do mensalão em curso, não
creio que o tema da corrupção esteja despertando tanto interesse assim
em setores da opinião pública. Talvez não vá haver uma conexão direta
entre o resultado do julgamento e o resultado das urnas. Precisamente é o
que eu penso. Pergunto: ao definir classe média com critérios tão
rebaixados, como se tem feito no Brasil, como é que essa gente que está
dando duro para melhorar um pouco de vida vai se interessar pelo que é
dito naquelas longas sessões do Supremo? Eu acho o debate que se trava
lá interessantíssimo, mas eu sou eu, você é você, somos uma fração da
população.
Maluf posou com Lula em apoio a Haddad. Mas o malufismo
parece olhar noutra direção, ou seja, para Russomanno. O senhor diria
que o ex-presidente selou acordo com uma liderança oca, um Maluf sem
malufismo?Talvez. É interessante rever as razões do
Maluf ao posar naquela foto nos jardins de sua casa, ao lado dos
petistas. Primeiro, acho que o Maluf pensou que ainda seria capaz de
arrastar segmentos da população para o candidato que ele indicaria.
Depois, ele claramente quis saborear a vitória de ver o ex-inimigo
entrando na casa dele, praticamente para lhe beijar a mão. Ainda se saiu
com verve, e enorme cinismo, ao dizer que "direita não sou eu, é o
Lula". Isso tudo deve ter lhe dado um prazer imenso. De qualquer forma,
esse episódio foi esclarecedor sobre até que ponto pode ir um líder com
virtudes, mas com inúmeros defeitos, como é o caso do Lula.
De onde vem toda essa rejeição ao Serra?Serra
alcança um nível de rejeição que de fato torna problemática sua eleição
e faz da ida para o segundo turno uma incógnita. Pois bem, a rejeição
será pelo fato de ele ter deixado a Prefeitura antes do término do
mandato? Não me parece, porque depois ele concorreu em outras eleições
com alto desempenho. Rejeição por que ele não é simpático? Mas ele já
passou por outras eleições nas quais ninguém perguntou se ele era
simpático ou não, se era careca ou cabeludo. Há quem fale em fadiga de
material. Pode ser, isso de fato ocorre em política. É quando o
eleitorado vai buscar o novo. O que se vê agora é um número maior de
pessoas etiquetando Russomanno como novo, e ironicamente o mesmo não
acontece com Chalita nem Haddad, ao mesmo tempo em que um expressivo
número de pessoas etiqueta Serra como o velho. É isso, a política é
feita de agonia e gozo. Insisto que tudo tem a ver com a transformação
dessa nova classe social em sujeito político.
O tempo é mais de agonia do que de gozo?Deixe-me
ser um pouco mais otimista na minha fala. Aqui em São Paulo ainda vamos
passar por tropeços muito grandes no que diz respeito à forma de fazer
política na cidade, mas já estão lançados os dados estruturais de uma
metrópole altamente complexa, que vem elevando seu patamar de educação e
tem o desejo do novo. Isso, projetado num prazo mais longo, poderá ser
bom. São Paulo continuará sendo uma rampa para políticos que aspiram à
projeção nacional, o que é legítimo dada a importância da cidade, embora
o que se vê no Brasil hoje em dia é a busca por cargos elevados com
muita rapidez, no meu entender. Enfim, essa eleição haverá de nos
mostrar muitas coisas. Se o Haddad se der bem, ficará evidente que o
padrinho funcionou. Ou melhor, os padrinhos, pois, além de Lula, ele
terá sido catapultado por Dilma, que vem construindo prestígio próprio.
Se não se der bem, entra em xeque a figura do padrinho político. No
plano nacional, a emergência do Eduardo Campos lá em Pernambuco, bem
como o crescimento do PSB em vários pontos do país, aponta para a crise
já visível do PSDB e o baixo desempenho do PT em capitais. Hoje tende a
se firmar um partido, o PSB, que não se descola totalmente do projeto da
presidente, mas trata de montar o seu. Veja como as eleições municipais
estão sinalizando novos arranjos políticos. Quem me garante que esses
dois partidos que se digladiaram tanto, o PT e o PSDB, no fundo já não
entraram em crise? Falo de ambos, mesmo considerando o grande trunfo do
PT, que são as benesses do poder, e ele de fato está no poder. Não só
isso: o prestígio de Dilma cresce.
Analistas atribuem o quadro em São Paulo, se pudéssemos bater
uma fotografia dele agora, como a afirmação do traço conservador do seu
eleitorado. O senhor concorda?Não compro a tese do
conservadorismo até porque esse eleitorado mudou muito. Pense no pré-30,
no anos do Estado Novo e no período seguinte. Pois bem, aquele
eleitorado que era antigetulista se transforma a partir de 1945 sob o
efeito da industrialização, das transformações demográficas, dos
contingentes humanos que vêm de Minas, de várias partes do Nordeste...
Agora já estamos falando de um outro eleitorado. Há algumas
continuidades com o passado? Claro que há, mas o eleitorado vem mudando,
num país que também se move muito. Hoje grupos socialmente definidos
como elites sentem que perderam lugar. Veja a afluência de pessoas indo
ao centro da cidade só para ver obras dos mestres impressionistas.
Quando isso aconteceria no passado? São pessoas partindo avidamente para
o consumo cultural e isso é bom de ver. Olha, eu posso ser utópico, mas
deveríamos ter nesta cidade um plano voltado para o futuro. Um plano
que fosse um consenso firmado numa determinada época, feito para
atravessar algumas prefeituras, um projeto de longo prazo,
intergeracional mesmo. Não seria um compromisso de governo, mas de
Estado. Isso é o que precisaria ser feito, recuperando a grandeza do
interesse público. Mas interesses econômicos muito fortes, como os do
setor imobiliário, por exemplo, criariam dificuldades. O que vai
acontecer quando se discutir o próximo Plano Diretor da cidade? Não
sabemos. Que interesses vão prevalecer? Não sabemos. Apenas brincando,
acho que precisaríamos de uma rainha para dizer 'ninguém mexe mais nos
meus jardins'.
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* HISTORIADOR, PROFESSOR DE CIÊNCIA POLÍTICA DA FFLCH-USP E MEMBRO DA ACADEMIA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS
Fonte: http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,o-crivo-de-quem-usa-a-cidade-,931328,0.htm
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