Luiz Felipe Pondé*
O filho ali, no restaurante descolado,
tinha o mesmo estatuto que o iPad:
um trunfo numa era narcísica
tinha o mesmo estatuto que o iPad:
um trunfo numa era narcísica
Vivemos numa era narcísica. Mas o narcisismo pode assumir formas mais
sofisticadas do que ficar se olhando no espelho e escrevendo
imbecilidades no Facebook: "Olha eu vomitando!".
Mesmo ter filhos, hoje, pode ser uma das faces mais comuns do
narcisismo. Ter filho é narcisismo quando ele é parte de seu ferramental
de sucesso: trabalho, casa própria, sexo saudável, carro novo, ioga,
alimentação balanceada, filho.
Quando vir uma mãe tirando muitas fotos histéricas dela mesma com seu
filho, saiba que você está diante de um poço de narcisismo que afoga a
pobre criança num mar de projeções de si mesma. Segura o filho nas mãos
como troféu de sua própria suposta beleza e saúde.
Sim, ser mãe pode ser objeto de enorme crítica. Ou pai. Falar mal da
maternidade ou paternidade é para iniciantes e coisa de crítica festiva.
Mães são autoritárias, chantagistas, loucas, ausentes, presentes demais,
enfim, infernais às vezes. Mas hoje, numa época dominada pela covardia
chique, que teme dizer seu nome, covardia, covardia, covardia, podemos
fazer um discurso chique para negar a maternidade.
Com isso não quero dizer que toda mulher deva ser mãe. Longe de mim
achar isso. Acho que você pode não ser mãe e não ser ridícula por isso.
Suspeito apenas da negação da maternidade quando ela vem acompanhada de
uma "ira contra a mãe" ou quando vem acompanhada de alguma "teoria"
contra a maternidade. Sempre suspeito de teorias e não de práticas.
Trata-se de um caso semelhante ao ateísmo: todo ateísmo militante é
infantil e reativo. Toda crítica à maternidade é infantil e reativa. Um
ateu e uma mulher que não quer ser mãe devem ser blasé com relação a
Deus e a ter filhos. Se o lábio tremer ao falar de Deus e das mães, você
está diante de um ressentido.
O filósofo francês do século 17, Blaise Pascal, dizia que variamos as
formas de "divertissement" (divertimento, autoengano), mas a fuga sempre
fracassa. Sempre reencontro a causa da minha fuga, o medo do vazio. O
narcisista é uma criança em pânico diante desse vazio.
Vivemos a época mais covarde da história humana. A emancipação moderna
se revelou um retrocesso em termos de coragem: todo mundo tem medo, mas
nega e critica as formas de vínculos afetivos longos (maternidade,
paternidade, casamento, etc.) para não enfrentar seus fracassos
afetivos. Sou um miserável solitário, mas minto dizendo que escolhi
sê-lo.
Mas voltemos ao filho como troféu narcísico. Outro dia, num desses
domingos preguiçosos (o ócio nos aparenta aos deuses), fui almoçar,
minha mulher e eu, num desses lugares frequentados pela classe chique da
zona oeste paulistana. Uma região habitada por "bikes". Precisa dizer
qual é?
Interessante como gente pobre sempre andou de bicicleta, mas agora,
quando a bicicleta virou "bike", virou assunto da prefeitura. O
trânsito, sofrido, tem que abrir espaço para as "bikes". Em Copenhague,
capital da Dinamarca, uma das capitais mundiais das "bikes", podemos ver
o "ethos" dessa moçada que se acha salvadora do mundo: lá eles
atropelam gente e caminhões, movidos pela sua consciência de (falsa)
superioridade moral urbana. Aqui já começa o mesmo processo.
Mas dizia que estávamos num desses restaurante "descolados", mas
rotineiros, da classe chique da zona oeste paulistana. Perto, um casal
"desfilava" seu filho. Durante algum tempo, todo mundo era obrigado a
ouvir a beleza estridente da maternidade narcísica.
Trajes descolados, jeans rasgados e caros, camisetas tipo Hering, tênis
surrados. Cabelos assanhados no modo correto, iPhones, bebê brincando
com iPad, risadas altas.
A criança, coitada, era quem menos gritava. Os pais, já os pais, estes
faziam tudo para ele berrar, como numa demonstração de que, sim, "somos
pais descolados que amam seu filho e queremos que ele grite e brinque
para mostrar que não o reprimimos". O filho ali tinha o mesmo estatuto
que o iPad: um trunfo numa era narcísica. Assim como um carro coreano
branco enorme.
E fotos, muitas fotos, em todas as posições imagináveis em meio à pasta de domingo. Imagino que postaram no "Face".
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* Filósofo. Prof. Universitário. Escritor.
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