Entrevista da 2ª Tariq Ramadan
Para pensador, conservadores tentam se impor como guardiões da religião no pós-primavera árabe e pressionar os moderados
MARCELO NINIODE JERUSALÉM
Os protestos que varreram o mundo islâmico nos últimos dias foram
alimentados por grupos radicais que emergiram da clandestinidade depois
do terremoto político causado pelas revoltas da Primavera Árabe.
A análise é do suíço Tariq Ramadan, 50, um dos principais pensadores do
islã no Ocidente. Para ele, os protestos evidenciam a disputa pelo papel
primordial de guardiões da religião e colocam pressão sobre os
islamitas moderados que chegaram ao poder no Egito e na Tunísia.
"É uma contradição extremamente delicada: como se relacionar com o
Ocidente de forma crítica e manter a credibilidade religiosa diante de
sua população", diz ele.
Mas Ramadan não poupa críticas à política dos EUA para a região, à qual
atribui parte do sentimento antiamericano. Uma das maiores contradições,
afirma, é que os EUA mantenham como aliadas as "petromonarquias" do
golfo Pérsico, que são as principais fontes financeiras e ideológicas
dos salafistas.
Leia trechos da entrevista concedida à Folha por telefone, de Paris.
Folha - Por que um filme que poucos viram é capaz de incendiar o mundo islâmico?
Tariq Ramadan - Não é uma surpresa, se lembrarmos da controvérsia
das caricaturas [do profeta Maomé] na Dinamarca, em 2005. O problema é
que hoje nos países de maioria muçulmana há correntes que usam essa
controvérsia com o objetivo de se apresentar como a única e exclusiva
corrente islâmica.
Militantes salafistas (islamitas ultraconservadores) empurraram nesse
rumo no início dos protestos, no Egito. Depois eles se alastraram para
outros países, onde as pessoas nem viram o filme, mas tiveram reação
emocional ao desrespeito ao profeta.
Líderes e intelectuais islâmicos têm a responsabilidade de deixar claro
que violência não é aceitável e que o islã nos ensina a ser sábios em
nossas reações.
Quem são os salafistas? Há coordenação entre eles?
É uma questão importante, porque as revoltas no mundo árabe deflagraram
uma disputa entre islamitas na Líbia, na Tunísia e no Egito.
Os salafistas estão tentando competir pela credibilidade religiosa nas
sociedades. Há 15 anos, eles rejeitavam o jogo político, dizendo que a
democracia não é islâmica.
Mas algo mudou. Tendemos a esquecer, mas isso começou no Afeganistão,
quando o Taleban, que estava distante da política, foi usado contra a
Rússia pela Arábia Saudita, com o apoio dos EUA. Em oito meses,
tornaram-se uma força política.
No Egito, em seis meses vimos grupos que consideram a democracia anti-islâmica criando partidos e ganhando 24% do Parlamento.
Está claro que, embora não seja um só grupo, há conexões. A Rand
Corporation publicou um relatório há três meses dizendo que, um pouco
antes da eleição no Egito, organizações do Qatar e da Arábia Saudita
colocaram US$ 18 milhões (R$ 36 milhões) em grupos salafistas.
Na Tunísia, também houve apoio semelhante. Portanto, esses grupos estão
recebendo um empurrão. Supõe-se que todos sejam islamitas e trabalhem
juntos com a Irmandade Muçulmana, mas na verdade ocorre o oposto.
O objetivo é criar divisões na tradição islâmica sunita. O mundo islâmico vive uma competição por espaço.
Há um terceiro fator: nesta semana, participei de uma discussão com Paul
Wolfowitz [ex-subsecretário de Defesa dos EUA], que tentava explicar
que os EUA cometeram um erro ao deixar o Qatar se envolver nas medidas
de segurança da Líbia.
Eu respondi que é estranho os EUA dizerem que o Qatar é o aliado errado.
Os EUA são aliados das petromonarquias do golfo Pérsico, de onde os
salafistas recebem recursos financeiros e ideológicos. É um jogo
bastante complexo, que vai muito além de saber se você está com os
salafistas ou com o Ocidente. E varia de um país para outro.
Qual o interesse dos EUA em ter aliados que apoiam radicais antiamericanos?
É uma contradição não resolvida e muitas vezes usada pelos EUA. À
primeira vista, qualquer tipo de desestabilização nos países muçulmanos é
contra os interesses americanos. Mas também justifica sua presença na
região, o que significa controle.
Devemos ter uma compreensão mais profunda do que está acontecendo. A
instabilidade nesses países não joga só contra os interesses americanos,
mas também a favor.
Como os EUA devem lidar com as petromonarquias?
Nada justifica violência e assassinatos, é anti-islâmico. Mas o governo e
a sociedade americanas têm que entender que a percepção geral no
Oriente Médio é que os EUA só se importam com os seus próprios
interesses. Ontem estavam apoiando ditadores e hoje apoiam democracias,
mas só para garantir espaço.
A percepção é que os americanos não se importam com o derramamento de
sangue nem com a dignidade dos árabes. Adicione-se a isso o apoio
unilateral a Israel e a discriminação contra os palestinos. O que
esperamos do governo americano é coerência: se falam de democracia, que
apoiem todos os democratas, e não só quando lhes for conveniente.
Obama parecia ter ficado do lado certo da história quando apoiou as
revoltas árabes, ainda que com atraso. Isso não melhorou a imagem dos
EUA?
Há um grande desapontamento com Barack Obama na região. O que ele fez
diferente de George W. Bush? Nada. Há seis anos Bush disse que queria
democracia no mundo árabe. São só palavras. O que queremos é mais ação.
Mostre-me o que mudou para os palestinos com Obama na Casa Branca: nada. O que mudou para as pessoas que estão em Guantánamo?
Além desses motivos, o sr. concorda que há um sentimento anti-Ocidente enraizado na cultura islâmica?
É verdade, e esse talvez seja o principal motivo da hostilidade. O mundo
árabe e os países do sul cultivam um sentimento antiamericano que é
composto por grande dose de vitimização.
É claro que há uma tendência no mundo árabe de culpar o Ocidente por
tudo e ver os EUA como o demônio. Mas o fato é que a maioria tem
percepção negativa. Por isso os EUA têm que fazer um esforço maior para
explicar o Ocidente nos países islâmicos.
Governos islamitas moderados, como Egito e Tunísia, terão de escolher
entre os papéis de guardiões da democracia ou defensores do islã?
Sim. Estão diante de uma contradição delicada: como se relacionar com o
Ocidente de forma crítica e ao mesmo tempo aberta e manter a
credibilidade religiosa diante de sua população. É uma situação
traiçoeira e um dos desafios do processo democrático.
Os islamitas moderados têm força suficiente para manter esse equilíbrio?
Devem ter o cuidado de não cair na tentação populista de querer ser mais
islâmicos que os outros. É preciso propagar a mensagem de que a
referência islâmica é manter-se crítico sem ser violento. Não se pode
cair na armadilha da divisão entre facções.
No Egito e na Tunísia, a Irmandade Muçulmana diz ter como meta um
"Estado civil com referência islâmica". Essa definição não aumenta o
espaço para disputas?
Sim, isso precisa ser esclarecido. Essa referência é diferente para
moderados e reformistas. Pode ser que algo emerja da experiência
política, como na Turquia ou na Malásia. É possível ser democrático com
valores islâmicos, como na Turquia.
Mas alguns princípios são inegociáveis, como separação de Poderes,
igualdade entre os cidadãos e distinção entre o poder político e o
religioso. Ainda é cedo para saber se isso será alcançado.
A emergência de grupos radicais pode desviar a Primavera Árabe para o modelo de islã ultraconservador?
É preciso pôr as coisas em perspectiva e lembrar que milhões se
manifestaram de forma pacífica para pedir justiça e democracia, e agora
há uma minúscula minoria revoltada contra o que é percebido como insulto
ao islã.
Claro, qualquer coisa pode acontecer. Por exemplo, se Israel decidir
atacar o Irã, ninguém pode prever qual será a consequência. Mas eu ainda
acho que o movimento popular por democracia é mais profundo e amplo do
que reações emocionais causadas por um filme. Líderes e intelectuais
muçulmanos precisam levantar a voz contra a violência cometida em nome
da religião.
Raio-X Tariq Ramadan
CARGO
Professor de estudos islâmicos contemporâneos em Oxford (Reino Unido)
Professor de estudos islâmicos contemporâneos em Oxford (Reino Unido)
FORMAÇÃO
Mestre em filosofia, doutor em estudos árabes/islâmicos
Mestre em filosofia, doutor em estudos árabes/islâmicos
POLÊMICAS
Islamitas radicais o condenam por rejeitar a guerra religiosa. Em 2004, governo Bush lhe negou visto para os EUA por suspeita de ligações com terroristas
Islamitas radicais o condenam por rejeitar a guerra religiosa. Em 2004, governo Bush lhe negou visto para os EUA por suspeita de ligações com terroristas
LAÇOS FAMILIARES
É neto de Hassan al Banna (1906-1949), o fundador da Irmandade Muçulmana
É neto de Hassan al Banna (1906-1949), o fundador da Irmandade Muçulmana
LIVROS
"Islã: a Reforma Radical" (2009), entre outros
"Islã: a Reforma Radical" (2009), entre outros
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Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/17/09/2012
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