terça-feira, 18 de setembro de 2012

Mestres involuntários

DENISE FRAGA*
 
 
Se empilho pratos, ouço dona Elisa me dizer: 'Dois trabalhos, tirar a gordura de cima e a de baixo' 


Toda vez que dobro guardanapos me lembro de nosso simpático amigo Thierry. Fazíamos um jantar em casa e eu, apressada na cozinha, enfiei os guardanapos todos juntos, numa só dobra, no porta-guardanapos. 

Thierry balançou a cabeça, tirou os guardanapos, dobrou um a um em triângulos e voltou a colocá-los no lugar. Não tínhamos muita intimidade -e confesso que fiquei até um pouco envergonhada. Mas, depois desse dia, mesmo estando apressada, nunca mais consegui deixar os guardanapos sem dobrar. 

Faz um tempão que não vejo Thierry e ele mal pode imaginar que penso nele tantas vezes ao ano, dobrando guardanapos. 

O que faz certas coisas ficarem grudadas para sempre em nossa mente? Podemos ler livros e manuais e não aprender tanto quanto com o gesto de alguém que, no momento certo, fez função de mestre. 

Não descasco uma laranja sem pensar em meu tio Fausto, o taxista. No fim do almoço, minha tia rolou as laranjas sobre a mesa e eu pedi: "Descasca para mim?". Minha boa tia Sophia já pegava na faca quando ele interveio: "Descasques tu mesma e vais ver que a laranja ficará muito mais gostosa". 

São pérolas inesquecíveis ditas em horas precisas. São pequenos professores, displicentes e involuntários, que vivem sem saber o quanto são lembrados em nossos atos corriqueiros.
Se empilho pratos, lá vem dona Elisa empoleirar-se no meu ombro para falar ao meu ouvido: "Dois trabalhos, tirar gordura de cima e de baixo". 

Minha vida cotidiana é lotada desses pequenos personagens que cruzaram meu caminho me ensinando coisas sem saber. Coisas banais como essas, outras nem tanto. 

Já li filosofia, astrologia e outras letras que nos prometem resposta ao enigma viver, mas do que mais me lembro são das lições que vieram do ato, do convívio, do humano, dos personagens que conheci, reais ou não. 

Como se a vida fosse coisa que brota, que dá muda de si. Como se só fosse possível aprender a viver, vivendo. 

Toda vez que algo de ruim me acontece, lá vem Huassi. Huassi foi um índio que encontramos no norte da Argentina, quando gravávamos um programa viajando pela América do Sul. 

"Sabe qual a maior diferença da minha cultura para a sua, Denise? Vocês tentam eliminar o mal. Nós simplesmente aceitamos que ele precisa existir ao lado do bem para criar a dinâmica." 

Talvez Huassi nunca tenha lido Dostoiévski, mas sabia muito bem que "ser um homem entre os homens é o real sentido da vida". 
-------------------------------
* DENISE FRAGA é atriz e autora de "Travessuras de Mãe" (ed. Globo) e "Retrato Falado" (ed. Globo) 
Fonte: Folha on line, 18/09/2012
Imagem da Internet

Um comentário:

  1. Bom dia! Gostei muito de ler uma parte das suas postagens, seguirei tentando ler um pouco cada dia,,,,são das pequenas coisas que nascem os grandes aprendizados,,,sua tia tem toda razão sobre a laranja!!! Se quiser dar uma passada as vezes me sento a escrever aquilo que muitas vezes não há conversa que baste. Seja bem vindo!
    http://modosingulari.blogspot.com.br/

    ResponderExcluir