sábado, 1 de setembro de 2012

“Minhas ideias sobre dependência já começaram no Rio Grande”

Fernando Henrique Cardoso, ex-presidente da República

 

Aos 81 anos, FH recebeu Zero Hora na segundafeira na sede da Fundação Instituto Fernando Henrique Cardoso, em São Paulo, para uma entrevista exclusiva que se estendeu por cerca de 40 minutos

Zero Hora – Onde e quando o senhor nasceu e cresceu? Quem eram os seus pais? Como foi sua educação?

Fernando Henrique Cardoso – Eu nasci no Rio, em 1931, há 81 anos. Meu pai (Leônidas Cardoso) era militar, terminou como general e foi deputado federal por São Paulo pelo PTB. Minha mãe (Naíde Silva Cardoso) nasceu em Manaus, de família alagoana, fez formação secundária em curso de colégio de freiras. Minha educação se dividiu, porque o começo foi no Rio, a alfabetização. Depois, meu pai foi transferido para São Paulo e daí por diante (minha formação) foi aqui em São Paulo. Sempre foi em escola particular, até quando eu entrei para a Universidade de São Paulo. Já tinha 17 anos. Minha formação acadêmica foi na USP. Entrei no curso que se chamava Ciências Sociais. Era abrangente – Economia, Sociologia e Antropologia, e depois a gente optava, fazia a especialização. Tinha um pouco de matemática e de filosofia. Na época, os professores eram ainda muitos franceses, davam aula na língua deles. Era uma escola para pouca gente, portanto, uma formação boa, mas fechada. A universidade estava longe de ser o que é hoje, de atender uma massa de alunos, como é necessário. Depois fui para a França, me especializei, voltei para o Brasil e por aqui fiquei, fiz carreira na USP. Depois veio o golpe de 1964, fui para o Chile. Voltei mais tarde, ganhei a cátedra de Sociologia da USP, fui aposentado (por razões políticas, pelo AI-5) e passei a ter vida mais internacional do que aqui, por circunstâncias, até entrar para a política.

ZH – Seu avô e seu pai viveram muitos anos no Rio Grande do Sul. Que recordações desse período chegaram até o senhor?

FH – Eram muito intensas as recordações. Meu avô (Joaquim Ignacio Baptista Cardoso) viveu no Rio Grande, era republicano. O pai dele era chefe do Partido Conservador de Goiás, monárquico, e foi governador de Goiás duas vezes e senador. Meu avô entrou para a Escola Militar do Rio, com o irmão dele. Meu avô terminou como marechal, e meu tio-avô, como general. Ambos apoiaram a Revolução de 1922, mas, antes disso, quando houve a Revolta da Armada (1893), uma rebelião contra a República, meu avô foi para o Rio Grande e ficou lá de 1893 a 1895. Trabalhou sob as ordens de um general chamado Manuel do Nascimento Vargas, pai de Getúlio Vargas. Manuel Vargas não era general, era provisório (mobilizado em apoio às forças legalistas nas revoluções de 1893 e 1923). Meu avô dava sustentação estratégica, militar, nas campanhas do Sul. Ouvi de minha avó e de meu pai, que ficaram em Porto Alegre, histórias de que, à noite, botavam um armário na porta, porque tinham medo de os maragatos (federalistas, de oposição ao governo Julio de Castilhos) chegarem lá e os degolarem. Havia muita degola, e vice-versa (de ambas as facções na guerra civil de 1893-1895), era uma apreensão permanente. Meu pai estudou no Colégio Militar de Porto Alegre, depois morou em Jaguarão. Falava com sotaque agauchado, falava “tchê”, aquelas coisas espanholas, e tomava chimarrão. Nasceu no Paraná, creio que em 1888, então a formação dele foi no Sul e na fronteira. Eu tinha uma memória do Rio Grande muito viva, embora tenha sido criado no Rio e em São Paulo.

ZH – Como era o Rio Grande que o senhor encontrou em 1955?

FH – Era um Rio Grande muito agradável. Fiquei encantado com Porto Alegre e também com Pelotas, Rio Grande e o Interior, mas conheci mais essa zona a que me referi, passei várias temporadas lá fazendo pesquisa. Porto Alegre era uma cidade discreta, de província, mas culta. Tinha núcleos de cultura, bibliotecas muito interessantes, arquivos e universidade. Além disso, tinha muita gurizada na época, era muito agradável. Lembro de bairros como o Menino Deus. Nessa época, eu fazia pesquisa de campo, aplicávamos questionários nos colégios e entrevistávamos pessoas dos bairros sobre relações de negros e brancos. Fazíamos o sorteio dos bairros das cidades. Havia um clube chamado Marcílio Dias, de regatas, e outro chamado Floresta Aurora. Eu frequentava muito esses clubes para fazer pesquisa, tinha uma comunidade negra muito interessante aí, de pequena classe média. Depois, quando passei um tempo em Pelotas, mais de uma vez – tinha um amigo que se chamava Joaquim Osório, tinha uma estância por lá e me ajudava muito, não sei se está vivo –, descobri um jornalzinho de negros, da época ainda da escravidão, chamado Floresta Aurora. Aí entendi por que tinha um clube em Porto Alegre com esse nome, um nome esquisito: Floresta Aurora. O que significa isso, né? Em Rio Grande, que era uma cidade pequena na época, lembro de muita duna, muito vento e de comer tainha na brasa na praia. Eu gostava muito do Rio Grande. Não havia estradas como há hoje, era complicado ir de Porto Alegre a Pelotas ou a Rio Grande, com aquelas lagoas todas, e tinha a balsa, era complicado. Porto Alegre já era uma cidade que tinha muita marca portuguesa, açoriana. Eu havia estado fazendo pesquisa em Santa Catarina, onde os açorianos também são muito vigorosos. Aquilo foi muito interessante para contrastar com São Paulo e com o Rio, que eu conhecia. No Rio Grande, era o começo desses clubes de tradição gaúcha, que foram inventados, não havia antes, uma espécie de movimento para reviver a história cultural do Rio Grande. Tinha um jornalista que era amigo nosso, não lembro os nomes, tinha outro lá que era muito ligado a essas questões de folclore gaúcho. Isso, para nós, era muito surpreendente. São Paulo é uma cidade mais cosmopolita do que Porto Alegre, com gente de outros países, o Rio Grande tem muitos alemães e italianos, mas em Porto Alegre era muito mais açoriano e menos mesclado do que São Paulo. Esse contraste nos interessava muito. Eu gostava muito de ir para o Rio Grande, imensamente.

ZH – Da intelectualidade gaúcha, com quem o senhor conviveu? Quais são suas lembranças de Dante de Laytano, Guilhermino Cesar e Erico Verissimo?

FH – Falei com todos eles, mas o Dante de Laytano foi o que mais ajudou, tinha uma biblioteca grande. Guilhermino Cesar também. O Dante de Laytano dominava a intelectualidade gaúcha. Outro que me ajudou foi o Laudelino Medeiros. Pessoas mais jovens também, cujos nomes me escapam agora. Erico Verissimo, para nós, era um deus, era o auge do Erico Verissimo, daquelas editoras do Rio Grande do Sul, a Livraria do Globo, que a gente frequentava. Havia uma vida cultural boa no Rio Grande do Sul.

Zero Hora – O senhor escreveu em Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional: “A sociedade gaúcha acabou por configurar-se nos moldes de uma estrutura patrimonialista. Ao mesmo tempo, condições peculiares fizeram com que a autoridade, no período inicial da formação do Rio Grande, se revestisse de características tão marcantes de arbítrio e violência que não seria exagerado admitir que o sistema patrimonialista de poder sofreu uma distorção no sentido de um poder sultanístico”. Essa definição não poderia ser estendida ao conjunto do Brasil colonial?

FH – É a zona de fronteira. O Rio Grande era zona de fronteira. Você tinha a luta com os espanhóis, a posse da terra, que era indiscriminada, pela violência. Se você pega a região amazônica, em certos momentos, na fronteira, também, ou mesmo em Mato Grosso. Mais para cima não, porque havia, digamos, o império da lei, que, embora não fosse seguido à risca, existia. O Rio Grande se formou a partir da base militar, de luta contra os espanhóis. Os que vieram a ser estancieiros eram lutadores, ganhavam pedaços de terra porque tinham ganho a batalha, perdido a batalha. Isso levava a um elemento de bastante arbítrio. Claro que tinha bastante colonização açoriana. A espinha dorsal do Brasil colonial, do imperial nem se fala, foram as tropas militares e a Coroa. Ao mesmo tempo, houve a tentativa das cidades de se rebelar. Raymundo Faoro (jurista e ensaísta, autor de Os Donos do Poder) descreve isso magnificamente, ele põe todo o peso na Coroa. Outros dizem que não, não foi tanto assim. Mas, enfim, o Rio Grande certamente era isso: o poder imperial, português e depois brasileiro, lutando contra os que tinham ocupado as terras e tinham legitimidade porque lutaram antes contra os espanhóis. Até os farroupilhas você vê que é isso, que o Rio Grande do Sul sempre teve gente disposta à guerra, sempre foi uma coisa característica da zona de fronteira, onde você não sabe quem obedece a quem, é tudo muito longínquo de um lado e de outro. Eu estou (nesse trecho do livro) com uma linguagem muito pedante, aquele negócio muito jovem, tinha menos de 30 anos, (com o termo) “sultanístico”. Isso aí é Weber (Max Weber, sociólogo alemão) que está por trás, mas nunca chegou a ser assim, tem elementos disso. Certamente toda zona de fronteira tenha esses elementos, porque uma organização patrimonialista funciona como uma família estendida, você tem mistura do patrimônio público com o privado. Lá (no Rio Grande do período colonial) não tinha patrimônio nem autoridade pública, tinha autoridade privada. Qual é o limite do poder? A quem se obedece? Depende de quem tiver mais força. Criam-se situações dessa natureza.

ZH – Pesquisadores mais jovens questionam sua tese de que o trabalho escravo determinou a desagregação da sociedade escravista-mercantilista rio-grandense por ser menos produtivo do que o trabalho livre adotado nos saladeros platinos. Dizem que o fator determinante foi algo de que se fala muito hoje, a chamada Doença Holandesa – no caso, provocada pelo boom da economia cafeeira.

FH – Os mais jovens têm de descobrir os furos (no trabalho) dos mais velhos, e é possível que encontrem. Eu não estava interessado em saber se a desagregação se deu por isso. Como estava usando categorias marxistas, no caso gaúcho não podia usá-las porque o escravo é capital fixo, enquanto a folha de salários é capital variável. O capital fixo acaba custando mais do que o capital variável porque você tem de alimentar a “máquina” (no caso, o escravo) o tempo todo. A produção nas charqueadas era sazonal. No Uruguai e na Argentina, eles dispensavam a mão de obra (no período de entressafra), e em Pelotas não, porque o escravo estava lá, tinha sido comprado, mesmo que não estivesse sendo usado estava custando dinheiro. A desagregação não se deu por uma coisa nem por outra, e sim porque houve a pressão inglesa, que acabou com o tráfico de escravos, não tinha reprodução da mão de obra, que ficou muito cara em toda parte. É possível que, aí, se somasse o problema da Doença Holandesa, mas foi no Brasil inteiro, não só no Rio Grande. Você lembra que o grande problema da Revolução Farroupilha foi também de imposto, taxas de sal e não sei o quê. Essa desagregação é um processo que dura muito tempo, não é num dado momento. Começa em 1850 e dura até 1888 (ano da assinatura da Lei Áurea, que abole a escravidão). Aí a economia variou muito, foi boa, ruim. É possível que, num dado momento, essa Doença Holandesa tenha dificultado ainda mais a competição. Isso não nega o fato de que, comparando pelo menos do ponto de vista abstrato, de modelos, o capital variável em pagamento de salários, em certos momentos, quando a produção é manufatureira e sazonal, é menos custoso do que o capital fixo do escravo. Se o escravo começa a custar ainda mais caro porque para o tráfico, mais difícil ainda é competir.

ZH – Em 1998, o senhor disse em entrevista a Moisés Mendes, de Zero Hora, que Capitalismo e Escravidão é a menos lida de suas obras significativas. Isso dificultou a apreensão da dinâmica do seu pensamento?

FH – Sem dúvida. As pessoas pensam que minhas ideias sobre dependência nasceram no Chile. Não nasceram no Chile, já começaram no Rio Grande. O modo de encarar a relação entre a periferia e o centro já estava nascendo. As discussões já eram lá: é capitalismo (o sistema mercantilista-escravista gaúcho), sim, mercantil, sim, mas é diferente porque tem escravo. Você tem que analisar sempre fazendo referências a determinações gerais e particulares, formando um todo. Isso eu já faço nesse livro. O modo de analisar está lá. Esse é um livro de um jovem entusiasmado com fontes, com metodologia, mas se você quiser entender como é que eu passei a discutir depois os empresários aqui, depois a América Latina e a globalização, não houve rupturas. Frequentemente as pessoas dizem que eu mudei meu modo de ver. Mudei coisa nenhuma. Mudei foi o momento que estou analisando, o processo que está se dando num dado momento, mas o enfoque é o mesmo.

ZH – Quando o livro completou 15 anos, em 1977, o senhor escreveu uma nota introdutória na qual disse que não encontrara o que modificar no texto original. Continua pensando assim no cinquentenário da obra?

FH – Eu teria de ler o que se escreveu a respeito do Rio Grande do Sul, da escravidão. Não voltei ao tema. O que eu disse, acho que em 1977 também, é que a introdução era muito pedante, metodológica, poderiam ser mais simples as coisas. Com o tempo você escreve (de forma) mais simples. Aquele é o livro de um acadêmico em seu primeiro trabalho de maior fôlego. Eu tinha escrito outro já antes (Cor e Mobilidade Social em Florianópolis, de 1960, em coautoria com Octavio Ianni), mas (Capitalismo e Escravidão era) de maior fôlego e sempre querendo mostrar que você sabe muita coisa. Hoje eu não precisaria mostrar que sei muita coisa. Estou pouco ligando se os outros pensam que eu sei ou não sei. Eu teria de dizer o que eu acho. Provavelmente hoje eu escreveria de outro modo. Agora, os aspectos centrais eu acho que se manteriam.

“O conceito de raça é ideológico”

ZH – O senhor estudou mais o Rio Grande do que qualquer pesquisador de fora do Estado em sua geração. Na prática política, porém, o seu caminho e o do Rio Grande do Sul nem sempre coincidiram. O senhor perdeu no Rio Grande do Sul as duas eleições presidenciais que disputou. Como encara esse fato?

FH – Apesar dos resultados eleitorais a que você se refere, nunca conseguimos firmar o PSDB no Rio Grande do Sul.

ZH – Ainda assim, o senhor tinha e tem ainda hoje uma relação muito próxima com integrantes do PMDB e de outros partidos.

FH – Tenho, não fico muito limitado a um partido. Cada vez que vou ao Rio Grande do Sul recebo gente de todo tipo, tenho muitos amigos. Por outro lado, o Rio Grande do Sul sempre votou no candidato presidencial do lado que estou apoiando, com exceção do meu caso. Não é porque eu esteja apoiando, mas coincidimos. Tem sido difícil para o PT ganhar no Rio Grande do Sul para presidente, então eu não saberia dizer. O Rio Grande do Sul tem características muito especiais, o sentimento de partido lá tem significado real. É mais difícil mudar de partido no Rio Grande do que em outros Estados. Tem uma história, tem tradição, pica-paus e maragatos já mostram isso. Quando fizemos o PSDB, imaginávamos que o Britto (Antônio Britto, ex-governador pelo PMDB) e o Pedro Simon (senador, do PMDB) viriam para o PSDB. Fogaça (José Fogaça, ex-senador e ex-prefeito de Porto Alegre pelo PMDB) foi meu vice-líder (no Senado), gosto imensamente dele. Britto foi meu colega de ministério, eu queria que ele fosse candidato a presidente da República, fiz muita força para o Britto ser candidato à Presidência da República. Eu não seria, eu queria manter o Plano Real. Britto tinha chance, mas ele optou, não sei por que razão, por ser candidato ao governo do Rio Grande. Foi difícil tirar essa gente da sua tradição de partido. Talvez o PSDB nunca tenha encontrado uma linguagem adequada à política rio-grandense. Yeda (a ex-governadora Yeda Crusius, do PSDB) foi a primeira vez que o PSDB colocou alguém lá (no governo do Estado). Ela fez um esforço imenso, botou em ordem as finanças do Rio Grande do Sul, mas politicamente entrou em choque com meio mundo, não conseguiu firmar. Acho que foi mais isso, não é tanto dissonância de pensamento como de modo de atuar. Acho muito difícil você conseguir no Rio Grande do Sul sair dos esquemas que estão lá montados. Nessa última eleição, ganhou o PT, com o Tarso (o governador Tarso Genro), mas você tem na (eleição para a) prefeitura (de Porto Alegre) de novo uma situação que eu não posso saber no que vai dar. Mas o PSDB nem aparece, não conseguiu transmitir nada, salvo que, na hora de votação para presidente da República, a gente tem voto lá. Quando você divide em cara e coroa no segundo turno, a gente ganhou no Rio Grande. O modo antipeessedebista de dizer é o seguinte: os pobres votam no PT, e os outros, no PSDB. Não é verdade, os pobres do Sul e inclusive de São Paulo votam também no PSDB, e os ricos do Nordeste votam no PT. É muito mais em termos de percepção da dinâmica dos setores onde você tem mais mercado e mais desenvolvimento da sociedade com setores com mais governo e menos desenvolvimento da sociedade, aí é mais PT, inverteu. O PT, no começo, nasceu na sociedade, mas se deslocou para o Estado. Hoje, ele (o PT) é forte onde tem Estado forte, e nós (o PSDB) temos mais chance onde tem sociedade forte, e o Sul tem sociedade forte. Mas você vê, mesmo dizendo isso tem de se corrigir logo: tem sociedade forte, mas também uma tradição de Estado positivista, então isso fica sempre latente no Rio Grande do Sul. Já tivemos no passado, foi Assis Brasil (candidato de oposição ao governo do Estado em 1922) contra Borges de Medeiros (governador por vários mandatos entre 1898 e 1928).

ZH – O que o senhor pensa sobre o debate a respeito das chamadas cotas raciais nas universidades?

FH – Muito complicado. Sou favorável à existência de políticas compensatórias. Quem conhece a situação do Brasil sabe que os negros passaram a vida sofrendo muito, marginalizados, e há preconceito e tudo mais. Você tem de ter medidas compensatórias. Por outro lado, se você faz uma camisa de força nessas cotas, pode virar racismo, o que também não é conveniente. A situação é outra nos Estados Unidos. Lá, tem preconceito de sangue. Aqui é visual, cada um se considera branco, mulato ou negro – branco, por um lado, mas no meio tem uma graduação enorme, varia de acordo com sua autoidentidade, se os outros aceitem ou não. Ninguém vai saber se seu avô foi negro. Nos Estados Unidos, querem saber se seu avô foi negro. Aqui não, nós não usamos a raça como critério classificatório. Usamos quando é extremo, para fazer preconceito, mas não podemos transformar isso num critério de diferenciação. Então como fazer isso? Para você dar mais liberdade às escolas, tem de ter políticas compensatórias para os pobres. A maior parte da população negra já entra nisso. Em certos casos, acho que pode ser mesmo uma coisa mais direta para negro, quando é claramente negro. No Itamaraty, criei 20 bolsas para preparar negros para ingressar na carreira diplomática. Você prepara negros para que eles façam concurso, para evitar a ideia de que há gente de primeira e segunda classe, mesmo na universidade. Essa preocupação deve existir, mas você não pode imaginar que os que entraram pela cota vão ser piores do que os que não entraram pela cota, tem de evitar esse tipo de coisa. Aceito até que haja um certo grau discriminatório. Por exemplo, quem faz escola pública e vai competir com quem fez escola privada, que haja uma diferença de um ou dois graus de correção se fez a vida inteira dele numa escola pública. Para quem fez a vida inteira em escola pública, nota de 4,5 equivale a 5. Aceito isso, porque vi dados de que lá dentro, depois, os que entraram pelas cotas não têm desempenho pior. Tenho duas preocupações: não transformar a raça num critério negativo e não acabar com a ideia de que universidade é mérito. Tem de se esforçar e, ao mesmo tempo, dar condições para os mais de baixo subirem. Como é que você combina isso não é fácil, mas eu acho que deve dar um pouco de liberdade. A USP usa o critério de pobreza, a Unicamp, de cotas. Acho que não devia ter um molde só para evitar que você crie essa ideia de raça como critério fundamental para qualquer coisa. O conceito de raça é ideológico, não tem base. Como eu não aceito a diferenciação pela raça, acho que não pode existir diferença de pretos. Por isso, tem de ter compensação: para torná-las iguais. Não quero que isso vire um instrumento como o que os alemães fizeram com os judeus, o numerus clausus, só pode tantos por cento de brancos. Aí começa a complicar.

Carta chilena

Sem avisar o entrevistado, Zero Hora levou ao encontro com o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso na segunda-feira, em São Paulo, um documento histórico. Trata-se de uma carta escrita de próprio punho por FH ao amigo Laudelino Medeiros, então professor de sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Depois que o ex-presidente mencionou o nome de Laudelino entre aqueles que o apoiaram na pesquisa realizada no Rio Grande, o repórter alcançou-lhe cópia da correspondência, cedida por Luiz Inacio Franco de Medeiros, filho do professor, que faleceu em abril de 1999:

– O senhor se recorda desta carta?

O texto foi escrito no dia 13 de junho de 1964, em Santiago do Chile, numa folha de papel timbrado da Comissão Econômica para a América Latina (Cepal), órgão das Nações Unidas. O então jovem FH (cinco dias depois completaria 33 anos) estava exilado desde abril. Contra ele, havia uma ordem de prisão da ditadura militar recém-instaurada. FH agradece ao amigo pela solidariedade e revela que pretende retornar ao Brasil assim que as condições o permitirem.

FH leu a carta em silêncio, balançando a cabeça afirmativamente e sorrindo (foto), e pediu para guardar a cópia em seu arquivo:

– Laudelino me ajudou muito. Mais tarde, ele me examinou na minha tese de doutorado, aqui em São Paulo. Pelo que você vê aqui, eu estava no Chile, no exílio. Na época, para os jovens, ele era conservador. Eu nunca fui de muitos preconceitos, embora fosse ligado aos movimentos progressistas. Nunca classifiquei as pessoas, essa é boa, aquela é ruim.

Em texto escrito em setembro de 2000, FH recordou o amigo: “Ele, que era considerado moderado, e não ‘de esquerda’, não hesitou em manifestar-se (quando FH partiu para o exílio). E, é bom recordar, quando os tambores rufavam, muitas ‘belas alas’, que se diziam progressistas, bateram em retirada e fizeram de conta que nada estava ocorrendo...”.

“Precisam de informações sobre a situação do negro em Porto Alegre”

Em fevereiro de 1955, o professor de sociologia da Universidade de São Paulo (USP) Florestan Fernandes escreveu ao colega e amigo Laudelino de Medeiros, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, para pedir apoio a três assistentes – Fernando Henrique Cardoso, Renato Jardim Moreira e Octavio Ianni – que se dirigiam a Porto Alegre. A seguir, com a grafia original, a íntegra da correspondência, que faz parte do acervo de Laudelino, falecido em 1999:

“São Paulo, 3 de fevereiro de 1955.

Prezado amigo Laudelino Teixeira de Medeiros:

Espero que tenha passado bem, depois dos nossos encontros em São Paulo. Nossa convivência me foi muito agradavel e a ela devo a possibilidade de poder, agora, apelar para a colaboração do esclarecido amigo e colega.

Como é do seu conhecimento, nossa cadeira está empenhada, ha muito tempo, em pesquisas sobre a cultura afro-brasileira e sôbre as relações entre negros e brancos na sociedade brasileira. Tinhamos em mente realizar, nas férias dêste ano, quatro ‘surveys’ em comunidades urbanas do sul, com o proposito de completar o quadro de investigações já patrocinadas pela UNESCO. Contudo, faltaram-nos os recursos financeiros e, por nossa conta e risco (e com o auxilio de Cr.$5.000,00), resolvemos reduzir o projeto e realizar apenas um ‘survey’ na cidade de Porto Alegre.

Porto Alegre foi escolhida por duas razões. Primeiro, ela apresenta uma condição muito importante para a analise das relações entre negros e brancos no Brasil: é uma das grandes comunidades urbanas em que a porcentagem da população de côr é a mais baixa. Segundo, possui caracteres estruturais e dinâmicos de excepcional interesse para uma análise comparativa com São Paulo (grau de urbanização, indices de desenvolvimento industrial e comercial, ritmo de formação das classes sociais, etc.). Do ponto de vista financeiro, a escolha naturalmente encarecia o deslocamento dos pesquisadores. Mas, havia outras compensações, como a de contar com a colaboração do prezado amigo e de permitir a concentração do esforço dos pesquisadores em uma comunidade bem escolhida.

Os pesquisadores são seus conhecidos. São o Fernando Henrique Cardoso e o Renato Jardim Moreira, primeiro e segundo assistentes da cadeira, e Octavio Ianni, que nela colabora como assistente extra-numerário. Eles precisam muito de sua cooperação intelectual e... prática. Em primeiro lugar, precisam de informações sôbre a situação do negro em Porto Alegre e sôbre as condições de relações com o branco. Com base nessas informações é que irão redefinir as hipóteses que orientarão a coleta de dados e que pretendem estabelecer a estratégia de trabalho em campo. Em segundo lugar, como dispõem de poucos recursos financeiros, precisam de seus conselhos para a escolha de uma pensão, que ofereça bôas acomodações a baixo preço. Peço-lhe isso, porque não sei se a Universidade do Rio Grande do Sul dispõe de meios para proporcionar-lhes pelo menos alojamento gratuito. Tudo que puder fazer, em um sentido ou em outro, nos obrigará muito á sua generosidade.

Espero receber notícias suas, e envio-lhe um forte abraço,

Florestan Fernandes”
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Visões pelo Rio Grande
Fonte:  
http://www.clicrbs.com.br/zerohora/jsp/default2.jsp?uf=1&local=1&source=a3872092.xml&template=3898.dwt&edition=20320&section=1029

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