Segunda Guerra Mundial
Depoimento: João Gonzales
Meu nome completo é João Gonzales. Tenho 91 anos e fui
da 1ª Companhia de Petrechos Pesados do 1º Batalhão do 6º Regimento de
Infantaria. Fui designado e embarquei com o primeiro escalão da FEB.
Nossa unidade foi a primeira a participar da guerra. Eu percebi na
primeira noite que nós entramos em combate porque nós estávamos ali
naquele afã de se acomodar durante a noite, porque o frio ali é meio
forte, e aí já ouvimos uns tiros. Ficamos meio assustados... a gente não
estava habituado. Depois ouvimos umas rajadas de metralhadora.
Naturalmente isso era com intuito de nos assustar, porque não acertou
nenhum de nós.
Quando eu fui ferido a nossa linha telefônica com a terceira
companhia havia sido interrompida por tiros de artilharia. O comandante
da companhia me disse: "Como é que nós vamos fazer?" Isso eram onze
horas da noite. Mas como ele insistiu, eu falei pra ele: "Eu vou,
capitão, mesmo que vá sozinho". Aí ele falou: "Mas sozinho você não tem
condições". Aí consegui convencer três soldados, que se dispuseram a ir
comigo e fomos consertar a linha.
Entretanto chegou um ponto que caía muita bomba, bomba em cima da
outra, muita bomba. Eu comuniquei ao capitão: "É praticamente impossível
prosseguir". E ele disse: "Ô rapaz, você nunca demonstrou medo, agora
você está com medo?". Eu falei: "Medo eu não tenho, mas tô colocando em
risco a minha vida e a dos demais companheiros". "Vê o que você pode
fazer", ele respondeu.
E eu, para não retroceder, prossegui, né. Aí andei mais cem, 200
metros e caiu uma bomba na minha frente, como daqui até a porta da
cozinha e aí escureceu tudo e eu caí.
Quando cai a bomba, é aquela luminosidade, a gente fica cego, não
enxerga nada. Caí no chão, comecei a me debater. Estava sozinho, pois
meus colegas tinha recuado para salvar a pele. E eu fiquei ali com
hemorragia tremenda, sem poder me levantar, fazia um esforço, mas não
conseguia, não conseguia.
Eu tenho estilhaço ainda no pulmão até hoje, eu tirei dois, extraíram
dois, mas um permanece até hoje. Quando eu fui ferido eu achei que era
meu fim. Eu percebia três furos no capote e o sangue escorria
abundantemente uma hemorragia muito forte, então eu logo deduzi o
seguinte: a hemorragia que vai me acabar. E nessa hora, aqui pra nós, o
único que você se lembra é da sua mãe... uma hora difícil, viu, é
difícil, mas felizmente eu fui pro hospital, me socorreram, me safei
dessa.
A guerra é o pior que pode acontecer, não existe nada pior.
Quem devia fazer a guerra são os chefes, as duas cabeças, eles é que deviam se enfrentar e poupar o resto do mundo.
Um dos fatos que me marcou foi a morte do tenente chamado José Maria
Pinto Duarte. Estavam eu, o Atratino, o capitão Tavares,
primeiro-tenente e um soldado corneteiro. Começou a escurecer e nós
avançamos até um determinado ponto e ficamos. E nisso avistamos a casa a
uns cem metros, 200 metros a frente e o capitão Atratino me falou: vai
dar uma olhada na casa e vê se tem condição de a gente se acomodar lá.
Nos alojamos ali.
Tinha um monte de milho debulhado, eu esparramei o milho e deitei em cima.
Durante a madrugada, ouvi vozes. Não julgávamos que fossem os
alemães. Mas eram. Durante a noite, eles retomaram as posições que
tinham. Ficaram pertinho da gente. O nosso pessoal percebeu e recuou,
mas nós na casa não percebemos. A gente via os soldados alemães passando
com munição.
O capitão Atratino estava excitado demais. Ele apontou e atirou no
soldado. Lógico que matou o pobre infeliz, mas eles perceberam e aí
viraram a metralhadora para nossa casa. Aí começou aquele salve-se quem
puder. E o Atratino: corre, foge, foge.
Eu fui o primeiro a pular pela janela. Aí pulou o Atratino e, nisso,
pulou o José Maria Pinto Duarte, ele foi tão infeliz que o atingiram com
uma rajada.
Nós tentamos puxá-lo, mas naquele fogo intenso, naquele sufoco. O Atratino: corre, corre se esconde.
Eu deixei os dois e saí correndo. O Atratino tentava arrastá-lo, mas ele era um homem muito alto, pesado, era difícil.
Eu me lembro quando ele falou: "Cuide bem da minha filha", como uma
súplica, uma verdadeira súplica. Aquilo calou muito, me marcou. Eu nunca
esqueço disso.
Praticamente engatinhando, fui saindo até que cheguei na minha
companhia. Eram oito horas. O capitão Atratino, quando me viu, me
abraçou, quase que chorando viu. Falou: "Rapaz, eu pensei que você tinha
morrido também. Já não contava mais contigo". Eu falei: "E o Zé Maria?"
"Esse já foi", respondeu o capitão.
Olha, coisa boa a guerra não é. Não existe coisa pior. A guerra é uma
destruição de tudo. Caráter, vidas. Eu me lembro de uma senhora com uma
criança de nove anos que veio correndo pro meu lado pedindo comida. Nós
não podíamos. A alimentação era toda em lata.
Tinha a F9, que era um feijão grosso. Aquilo era intragável. Eu não
comia então ia juntando aquelas latas. Tinha sete, oito latas daquela.
Quando a mulher veio eu peguei, fui procurar as latas escondidas e dei
pra ela. Mas ela devorou aquilo de um modo espantoso, espantoso.
Ela abria a lata, botava assim e comia, sem mastigar sem nada e a
criança agarrada, clamando... ela nem lembrava da criança, quando ela
comeu três ou quatro latas que ela foi lembrar da criança, mas olha,
comia com uma avidez que assustava a gente. Como é que essa mulher
engole desse jeito.
Até hoje tenho pesadelos. Volta e meio tenho um sonho e relembro
fatos. Na hora me ocorre a lembrança de certas passagens lá. Ainda hoje.
Sessenta e tantos anos após o conflito. Que a pessoa fica marcada.
Eu me lembro de um soldado chamado Guilherme. Uma vez a gente estava
numa tarde de um tiroteio tremendo e a gente engatinhando para não ser
atingido, pois oferecia menos volume como alvo e, naquele dia, ele
levantou e saiu correndo e eles com aquela metralhadora. Falei: "Vai
morrer". Ninguém se atrevia a levantar e sair correndo. Eu peguei nas
pernas dele e o derrubei. Ele era franzino. Minha sorte era essa. Ele
estava transtornado completamente. Nunca me esqueço... um rapaz novo
ainda, era mais novo do que eu.
Atirei muitas vezes na guerra. Não posso dizer se matei ou não. Por
que ali, não é assim. Eu aqui. É a 200, 300 metros e como não é um só
que atira, a gente as vezes até via o cara tombar, mas não posso
precisar se foi o meu tiro que o atingiu ou não e não quero nem pensar
que fui eu.
No fim, me lembro de uns prisioneiros que nós pegamos lá. Um sargento
alemão chegou perto de mim... Quem tinha apanhado foi um tal de
Nascimento, um sargento, que os tinha aprisionados. E esse Nascimento
era um tanto agressivo. Eu disse: "Nascimento, pera aí, vamos devagar,
os moços já estão presos. Não têm como reagir mais. Vamos tratar eles
como seres humanos". Eu quis amenizar a situação. E não sei se o
sargento, esse alemão, ele entendeu o que eu quis dizer, que
imediatamente ele ajoelhou aos meus pés, como que pedindo perdão. Eu
tentei levantá-lo. Aí ele enfiou a mão numa blusa até pensei que ele ia
puxar uma arma e me preveni com minha pistola. O alemão fez sinal que
não. Pegou e tirou uma fotografia e me mostrou ele, a mulher e duas
crianças. Aquilo comove viu... pra entender que ele também tinha
filhos... a guerra é ruim pra todo mundo. A guerra é o pior que pode
acontecer.
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Reportagem por EDISON VEIGA E MARCELO GODOY
Fonte: Estadão on line, 02/09/2012
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