domingo, 2 de setembro de 2012

'O alemão fez sinal. Pegou uma foto e me mostrou. Eram ele, a mulher e duas crianças'

Segunda Guerra Mundial

João Gonzales - Evelson de Freitas/AE

Depoimento: João Gonzales

Meu nome completo é João Gonzales. Tenho 91 anos e fui da 1ª Companhia de Petrechos Pesados do 1º Batalhão do 6º Regimento de Infantaria. Fui designado e embarquei com o primeiro escalão da FEB. Nossa unidade foi a primeira a participar da guerra. Eu percebi na primeira noite que nós entramos em combate porque nós estávamos ali naquele afã de se acomodar durante a noite, porque o frio ali é meio forte, e aí já ouvimos uns tiros. Ficamos meio assustados... a gente não estava habituado. Depois ouvimos umas rajadas de metralhadora. Naturalmente isso era com intuito de nos assustar, porque não acertou nenhum de nós.
Quando eu fui ferido a nossa linha telefônica com a terceira companhia havia sido interrompida por tiros de artilharia. O comandante da companhia me disse: "Como é que nós vamos fazer?" Isso eram onze horas da noite. Mas como ele insistiu, eu falei pra ele: "Eu vou, capitão, mesmo que vá sozinho". Aí ele falou: "Mas sozinho você não tem condições". Aí consegui convencer três soldados, que se dispuseram a ir comigo e fomos consertar a linha.
Entretanto chegou um ponto que caía muita bomba, bomba em cima da outra, muita bomba. Eu comuniquei ao capitão: "É praticamente impossível prosseguir". E ele disse: "Ô rapaz, você nunca demonstrou medo, agora você está com medo?". Eu falei: "Medo eu não tenho, mas tô colocando em risco a minha vida e a dos demais companheiros". "Vê o que você pode fazer", ele respondeu.
E eu, para não retroceder, prossegui, né. Aí andei mais cem, 200 metros e caiu uma bomba na minha frente, como daqui até a porta da cozinha e aí escureceu tudo e eu caí.
Quando cai a bomba, é aquela luminosidade, a gente fica cego, não enxerga nada. Caí no chão, comecei a me debater. Estava sozinho, pois meus colegas tinha recuado para salvar a pele. E eu fiquei ali com hemorragia tremenda, sem poder me levantar, fazia um esforço, mas não conseguia, não conseguia.
Eu tenho estilhaço ainda no pulmão até hoje, eu tirei dois, extraíram dois, mas um permanece até hoje. Quando eu fui ferido eu achei que era meu fim. Eu percebia três furos no capote e o sangue escorria abundantemente uma hemorragia muito forte, então eu logo deduzi o seguinte: a hemorragia que vai me acabar. E nessa hora, aqui pra nós, o único que você se lembra é da sua mãe... uma hora difícil, viu, é difícil, mas felizmente eu fui pro hospital, me socorreram, me safei dessa.
A guerra é o pior que pode acontecer, não existe nada pior.
Quem devia fazer a guerra são os chefes, as duas cabeças, eles é que deviam se enfrentar e poupar o resto do mundo.
Um dos fatos que me marcou foi a morte do tenente chamado José Maria Pinto Duarte. Estavam eu, o Atratino, o capitão Tavares, primeiro-tenente e um soldado corneteiro. Começou a escurecer e nós avançamos até um determinado ponto e ficamos. E nisso avistamos a casa a uns cem metros, 200 metros a frente e o capitão Atratino me falou: vai dar uma olhada na casa e vê se tem condição de a gente se acomodar lá. Nos alojamos ali.
Tinha um monte de milho debulhado, eu esparramei o milho e deitei em cima.
Durante a madrugada, ouvi vozes. Não julgávamos que fossem os alemães. Mas eram. Durante a noite, eles retomaram as posições que tinham. Ficaram pertinho da gente. O nosso pessoal percebeu e recuou, mas nós na casa não percebemos. A gente via os soldados alemães passando com munição.
O capitão Atratino estava excitado demais. Ele apontou e atirou no soldado. Lógico que matou o pobre infeliz, mas eles perceberam e aí viraram a metralhadora para nossa casa. Aí começou aquele salve-se quem puder. E o Atratino: corre, foge, foge.
Eu fui o primeiro a pular pela janela. Aí pulou o Atratino e, nisso, pulou o José Maria Pinto Duarte, ele foi tão infeliz que o atingiram com uma rajada.
Nós tentamos puxá-lo, mas naquele fogo intenso, naquele sufoco. O Atratino: corre, corre se esconde.
Eu deixei os dois e saí correndo. O Atratino tentava arrastá-lo, mas ele era um homem muito alto, pesado, era difícil.
Eu me lembro quando ele falou: "Cuide bem da minha filha", como uma súplica, uma verdadeira súplica. Aquilo calou muito, me marcou. Eu nunca esqueço disso.
Praticamente engatinhando, fui saindo até que cheguei na minha companhia. Eram oito horas. O capitão Atratino, quando me viu, me abraçou, quase que chorando viu. Falou: "Rapaz, eu pensei que você tinha morrido também. Já não contava mais contigo". Eu falei: "E o Zé Maria?" "Esse já foi", respondeu o capitão.
Olha, coisa boa a guerra não é. Não existe coisa pior. A guerra é uma destruição de tudo. Caráter, vidas. Eu me lembro de uma senhora com uma criança de nove anos que veio correndo pro meu lado pedindo comida. Nós não podíamos. A alimentação era toda em lata.
Tinha a F9, que era um feijão grosso. Aquilo era intragável. Eu não comia então ia juntando aquelas latas. Tinha sete, oito latas daquela. Quando a mulher veio eu peguei, fui procurar as latas escondidas e dei pra ela. Mas ela devorou aquilo de um modo espantoso, espantoso.
Ela abria a lata, botava assim e comia, sem mastigar sem nada e a criança agarrada, clamando... ela nem lembrava da criança, quando ela comeu três ou quatro latas que ela foi lembrar da criança, mas olha, comia com uma avidez que assustava a gente. Como é que essa mulher engole desse jeito.
Até hoje tenho pesadelos. Volta e meio tenho um sonho e relembro fatos. Na hora me ocorre a lembrança de certas passagens lá. Ainda hoje. Sessenta e tantos anos após o conflito. Que a pessoa fica marcada.
Eu me lembro de um soldado chamado Guilherme. Uma vez a gente estava numa tarde de um tiroteio tremendo e a gente engatinhando para não ser atingido, pois oferecia menos volume como alvo e, naquele dia, ele levantou e saiu correndo e eles com aquela metralhadora. Falei: "Vai morrer". Ninguém se atrevia a levantar e sair correndo. Eu peguei nas pernas dele e o derrubei. Ele era franzino. Minha sorte era essa. Ele estava transtornado completamente. Nunca me esqueço... um rapaz novo ainda, era mais novo do que eu.
Atirei muitas vezes na guerra. Não posso dizer se matei ou não. Por que ali, não é assim. Eu aqui. É a 200, 300 metros e como não é um só que atira, a gente as vezes até via o cara tombar, mas não posso precisar se foi o meu tiro que o atingiu ou não e não quero nem pensar que fui eu.
No fim, me lembro de uns prisioneiros que nós pegamos lá. Um sargento alemão chegou perto de mim... Quem tinha apanhado foi um tal de Nascimento, um sargento, que os tinha aprisionados. E esse Nascimento era um tanto agressivo. Eu disse: "Nascimento, pera aí, vamos devagar, os moços já estão presos. Não têm como reagir mais. Vamos tratar eles como seres humanos". Eu quis amenizar a situação. E não sei se o sargento, esse alemão, ele entendeu o que eu quis dizer, que imediatamente ele ajoelhou aos meus pés, como que pedindo perdão. Eu tentei levantá-lo. Aí ele enfiou a mão numa blusa até pensei que ele ia puxar uma arma e me preveni com minha pistola. O alemão fez sinal que não. Pegou e tirou uma fotografia e me mostrou ele, a mulher e duas crianças. Aquilo comove viu... pra entender que ele também tinha filhos... a guerra é ruim pra todo mundo. A guerra é o pior que pode acontecer.
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Reportagem por EDISON VEIGA E MARCELO GODOY
Fonte: Estadão on line, 02/09/2012

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