José Ribamar Bessa Freire*
(Enviado
de Paris) - De onde vem aquele biquinho que os franceses fazem quando
pronunciam o som da letra "u"? Do latim não é, embora Cesar, ao
conquistar o mundo, por estar em todas, se achasse o "u" do burugudu.
Mas estava equivocado, pois os exércitos romanos jamais chegaram ao
Amazonas, que se encontrava fortemente protegido pelas gloto-muralhas de
Urucurituba. Não que fosse difícil conquistá-la militarmente. Não! Mas o
general seria derrotado na hora em que, depois de escrever "De bello Urucuritubensis", fosse ler a palavraUrucurituba com o biquinho francês. Ele entortaria caras e bocas até o "u" fazer bico.
Isso
se os romanos fizessem biquinho, mas o biquinho do "u",
definitivamente, não pertence ao latim e, por isso, Cesar não precisava
chamar urubu de meu louro. Talvez o biquinho seja herança do idioma
gaulês, uma língua céltica já extinta, que deixou marcas presentes ainda
hoje no francês moderno: nomes de plantas, toponímias, denominações de
armas de guerra, como lança, e de alguns instrumentos agrícolas, além de
traços fonéticos. O gaulês está para o francês assim como o tupi para o
português. Ainda se sabe muito pouco sobre a história dessas línguas,
cujas memórias foram, em grande parte, apagadas. Trata-se de um
patrimônio invisível.
Por
isso, achei que essa questão, tão intrigante, seria finalmente
esclarecida, agora, nos dias 15 e 16 de setembro. É que o tema central
da 29ª edição das Jornadas Europeias do Patrimônio, que se realizam nesta data, na França, será justamente o patrimônio escondido. No
entanto, me enganei, ninguém vai discutir nem o biquinho do "u", nem
qualquer substrato da língua francesa, mesmo considerando que não existe
nada mais camuflado do que o patrimônio linguístico.
Acontece que a definição que os organizadores das Jornadas estão dando para patrimônio escondido encobre
outras realidades, relacionadas aos tesouros patrimoniais ignorados
detrás das portas, no fundo dos corredores, debaixo da terra ou até
quando nossos olhos se voltam para o céu. Envolve o patrimônio
arqueológico e pré-histórico de objetos enterrados, o patrimônio militar
como as baionetas dos campos de batalha de Verdun ou as baterias da
Normandia, as catacumbas, a rede de esgotos e o patrimônio astronômico.
Patrimônio
escondido seria, então, tudo aquilo que fica longe dos olhos da nossa
prática cotidiana. Além dos já citados, são mencionados os campanários
das igrejas, os vitrais, os relógios, as galerias, inclusive as peças de
museus que ficam guardadas nas reservas técnicas e nunca são mostradas,
ou os livros antigos e as fotografias que normalmente ninguém vê.
Agora, durante as Jornadas, os arquivos e bibliotecas da França abrem
suas portas, para quem quiser ver o que não é exposto e nunca aparece.
A
avaliação da ministra da Cultura e da Comunicação da França, Aurélie
Filippetti, chama a atenção para o patrimônio no dia-a-dia, no
feijão-com-arroz:
- As
Jornadas Europeias do Patrimônio dão continuidade a essa bela missão
que, mais do que uma lição histórica, é uma lição de vida: aprender a
olhar, de outra forma, apaixonadamente, inteligentemente, o quadro da
nossa vida cotidiana.
As Jornadas,
criadas em 1984 no governo Mitterrand, são realizadas sempre na
terceira semana de setembro. Elas renovaram a vida cultural da França,
permitindo que esse país discuta questões centrais relacionadas ao
patrimônio. Na Jornada do
ano passado, em apenas dois dias, 12 milhões de visitantes percorreram
museus, bibliotecas, arquivos, centros culturais, exposições,
auditórios, debates, quase tudo com entrada gratuita.
Na
próxima semana, os franceses vão até mesmo discutir o patrimônio
imaterial: as formas de fazer as coisas, as técnicas, as práticas, as
experiências, as profissões. Mas lamentavelmente, a língua ficou de fora
como objeto desse olhar. A língua é um patrimônio tão escondido, mas
tão escondido, que não foi focada nem pelo próprio patrimônio escondido.
Não será ainda desta vez que o biquinho do "u" merecerá uma explicação.
Mas em outro evento na França, a língua será, pelo menos, lembrada. Logo após as Jornadasvai
se realizar um seminário internacional, em Avignon, no sul da França,
com pesquisadores franceses e brasileiros da Université d'Avignon e do
Programa de Pós-Graduação em Memória Social da UNIRIO - Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro, que estão vinculados ao Projeto
Saint Hilaire.
Desse
evento, sairá um livro bilíngue "Memória e Novos Patrimônios",
coordenado por Cécile Tardy (França) e Vera Dodebei (Brasil) que
contará, entre outros, com artigo sobre o uso da internet pelos índios
no Brasil. E aí sim, haverá um pequeno espaço para as línguas indígenas e
sua influência sobre o português.
O
interesse dos franceses pelas línguas indígenas, especialmente por
aquelas do tronco tupi, pode ser medido também através da documentação
de Jean Ferdinand Denis, que viveu quinze anos no Brasil, de 1816 a 1831
e deixou muitos registros escritos que se encontram na Biblioteca
Saint-Geneviève, em Paris. É essa papelada que agora estamos buscando.
Quem sabe, ela poderá nos ajudar a entender um outro "u", amazônico,
presente na expressão "cabuco da pupa da canua"?
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*José Ribamar Bessa Freire: Doutor
em Letras pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2003). É
professor da Pós-Graduação em Memória Social da Universidade Federal do
Estado do Rio de Janeiro (UNI-Rio), onde orienta pesquisas de mestrado e
doutorado, e professor da UERJ, onde coordena o Programa de Estudos dos
Povos Indígenas da Faculdade de Educação. Ministra cursos de formação
de professores indígenas em diferentes regiões do Brasil, assessorando a
produção de material didático. Assina coluna no Diário do Amazonas e mantém o blog Taqui Pra Ti. Colabora com esta nosssa Agência Assaz Atroz.
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