Antonio Ozaí da Silva*

 

O filme The Sunset Limited sustenta-se nas excelentes interpretações de Tommy Lee Jones, no papel de um professor ateu e suicida, e Samuel L. Jackson, que representa um evangélico, ex-presidiário, que salva White – talvez esta não seja a melhor expressão, pois ele não queria ser salvo. No apartamento do salvador, o professor e o crente travam intenso debate sobre Deus, a religião, o sentido da vida, da morte, etc. O filme concentra-se no debate, praticamente sem cenas externas. Com a força dos argumentos bíblicos, o salvador tenta resgatar a alma do ateu para o Senhor; ele receia que o professor, se não for convertido, volte a tentar o suicídio. Coloca-se para si a missão de convencê-lo a aceitar o Salvador. O ateísmo do professor parece inabalável. Aquele que se acredita iluminado, instrumento de Deus e executor de uma missão, conseguirá convencê-lo? Os argumentos inspirados na religião e no Livro Sagrado derrubarão as muralhas da razão cética? A argumentação racional abalará a fé do evangélico?
Quem assistiu, sabe as respostas. Não serei o estraga prazer, não contarei o desenlace. Sugiro que assista e tire suas próprias conclusões. Por outro lado, esta não é uma reflexão sobre o filme. O que me fez lembrar dele foi a cena na qual o salvador pergunta ao professor quantos livros leu na vida. Foram muitos!. Mas de que lhe serve tanta leitura se não leu a obra principal, a único que realmente vale a pena ler? O professor é questionado se leu a Bíblia e passam a debater sobre a importância da sua leitura.
Por que ler a Bíblia? Como proceder a sua leitura? As respostas não são únicas. Eu, por exemplo, a li na época em que estava engajado na Pastoral Operária e fazíamos uma interpretação bíblica inspirada na Teologia da Libertação. O Livro Sagrado era a nossa inspiração, fornecia argumentos que fortaleciam a nossa utopia de uma sociedade justa e igualitária e orientava a nossa práxis política. Não a líamos como se ler um livro qualquer, mas como a fonte da palavra revelada. Era uma atitude sincera, acreditávamos piamente nas palavras. Hoje, porém, parece-me que, como os demais, interpretávamos a Bíblia de acordo com o nosso pensamento social, a ideologia cristã amalgamada com inspirações de uma certa leitura da obra de Karl Marx e Engels. Instrumentalizávamos a Bíblia, da mesma forma como se instrumentalizam teorias profanas que orientam práticas políticas conservadoras ou revolucionárias.
A leitura que fazíamos da Bíblia era aquela compatível e justificadora da nossa prática política e objetivos ideológicos. Não há novidade nisto! Durante séculos, em nome da religião, em Nome de Deus, a Bíblia tem sido utilizada para justificar políticas conservadoras e reacionárias e manter o status quo. De fato, a obra fornece possibilidades interpretativas múltiplas – até mesmo o absurdo da interpretação literal e fundamentalista. Leituras absurdas não seriam problemas se não se traduzissem em atitudes humanas conservadoras, preconceituosas, intolerantes e fanáticas. Com o fanático, aquele que se acredita porta-voz da palavra sagrada, braço do Senhor e instrumento da Sua missão, não há diálogo possível.
A Bíblia é uma daquelas obras que oferecem argumentos para todos os gostos, a depender do olhar, objetivo e pensar do leitor. Certa vez, por exemplo, presenciei um debate intenso e ríspido, na medida em que o calor da discussão aumentava, entre um homem e uma mulher igualmente tementes a Deus. Ambos brandiam capítulos e versículos bíblicos para comprovar teses irreconciliáveis sobre a submissão da mulher ao homem versus a igualdade entre os sexos. A julgar pelos argumentos de autoridade, ambos tinham razão.
Este debate me fez recordar outras discussões, tão ou mais calorosas, nas quais os contendores sustentavam teses opostas fundamentadas em obras seculares de autores como Marx-Engels-Lenin-Trotsky. A maneira religiosa de ler transforma autores seculares em profetas e suas obras em livros sagrados. Também aqui, a verdade depende da interpretação. Os pequenos profetas que veem a si mesmos como portadores do legado investem-se na função de sacerdotes e portadores da verdade revelada. O sectarismo e a intolerância ideológica não é menos perigosa do que aquela inspirada no divino! Deus e Marx nos livrem deles!
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*Professor do Departamento de Ciências Sociais, Universidade Estadual de Maringá (UEM); editor da Revista Espaço Acadêmico, Acta Scientiarum. Human and Social Sciences e Revista Urutágua
Fonte:  http://antoniozai.wordpress.com/2012/09/01/sobre-a-leitura-da-biblia/