Obra canónica de Thomas More foi publicada em 1516. Não foi o
primeiro texto sobre um ideal utópico, mas inaugurou uma tradição de
obras publicadas à luz de uma génese comum: a proposta de projectos
alternativos para a sociedade. O PÚBLICO inicia uma série especial sobre
velhas e novas utopias.
“... é fácil confessar que muitíssimas coisas há na terra da Utopia
que gostaria de ver implantadas nas nossas cidades, em toda a verdade e
não apenas em expectativa”. Estas são as últimas palavras de Thomas More
na sua Utopia, ditas depois de Rafael Hitlodeu, o navegador
que alegadamente conheceu a ilha da Utopia, terminar o seu relato e
elogiar a estrutura da ilha. A ideia é clara: More simpatiza com alguns
dos princípios da sociedade utopiana, mas não a vê como um modelo a
implementar de forma exacta.
“A intenção de More é não apresentar
as ideias de Hitlodeu e a sociedade utopiana como modelares, esperando
que o leitor seja capaz de um exercício de reflexão crítica sobre os
aspectos positivos e negativos dessa sociedade”, diz Fátima Vieira,
professora da Faculdade de Letras da Universidade do Porto especializada
em estudos sobre a utopia.
No ano em que se assinalam 500 anos da sua publicação, a Utopia
continua a ser lida, discutida e analisada, e encontra-se em qualquer
biblioteca como clássico da literatura. E a sua mensagem, dizem os
especialistas com quem falámos, continua a fazer sentido hoje: existem
alternativas ao que está instituído.
“É um texto de grande
amplitude, de abertura, de descoberta de caminhos, que até àquela altura
não havia na cultura europeia”, diz Manuel Frias Martins, professor de
Cultura Renascentista da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
Uma sociedade em que nada é de ninguém – tudo é de todos. Em que o
bem-comum é mais precioso do que o bem individual. Em que a guerra é
abominada e a caça é tida como loucura. Em que o ouro e outros metais
ditos preciosos não têm valor. Em que um dia de trabalho tem seis horas,
uma noite de sono tem oito e o resto do tempo é ocupado por cada um
como entender. Assim é na ilha da Utopia, objecto central da obra
homónima de Thomas More publicada em 1516, antítese da sociedade
europeia do século XVI.
More nasceu em 1477 (ou 1478, segundo
alguns historiadores), em Londres. Foi advogado, chanceler de Henrique
VIII e fez parte da Câmara dos Comuns. Em 1515, baseado em A República de Platão, começa a planear a redacção da Utopia. Depois de uma visita a Londres do seu amigo Erasmo, autor de Elogio da Loucura,
More envia-lhe o texto terminado. Erasmo, alegadamente sem o autor
saber, entrega o texto ao impressor Thierry Martens de Lovaina, que o
publica.
Redigida em latim, a Utopia, escreveu José de
Pina Martins no estudo introdutório à edição da obra de More da Fundação
Calouste Gulbenkian (2006), é “um escrito fundamental do humanismo”. “O
ser humano encontra-se no centro do mundo e está nas suas mãos decidir o
seu destino”, explica Fátima Vieira. “Não poderia nunca ter sido
escrita na Idade Média, quando se acreditava que o destino havia sido já
decidido por Deus”. A obra é escrita num tempo novo, em que o homem
europeu encabeça os Descobrimentos, que revelam povos desconhecidos,
ideias e costumes diferentes, novas possibilidades. É de Portugal, um
dos países protagonistas dessas viagens intercontinentais, que vem a
personagem central da obra — o navegador Rafael Hitlodeu, que dá a
conhecer a ilha da Utopia. A obra, classifica Pina Martins, é um texto
“do humanismo renascentista”.
Mas a obra é, também, reflexo de um contexto de acentuadas
desigualdades sociais, em que direitos e liberdades estavam longe de ser
uma garantia. E assim, Utopia — que é “obviamente uma obra de
ficção, mas com um grande contributo para o pensamento filosófico”, diz
Fátima Vieira — desenvolve-se em dois livros: o primeiro traça um olhar
crítico sobre a época e o segundo dá a conhecer a ilha visitada por
Rafael Hitlodeu.
A modernidade da obra
A Utopia é uma obra marcada pela realidade, mas também pela ficção. O primeiro livro trata da realidade – More faz um retrato crítico da Inglaterra (e da Europa) do ponto de vista social, político, económico e religioso. “É um olhar de alguém que sofre com aquele que sofre, um olhar sobre aquele que tem de roubar porque tem fome. More critica as estruturas do Estado exactamente porque acabam por promover o roubo e, em vez de castigar, deviam de facto reorganizar a própria sociedade de maneira a evitar que houvesse pobres e fome”, elucida Manuel Frias Martins. Para o académico, More é, assim, “um dos grandes humanistas que anunciam a modernidade”.
A Utopia é uma obra marcada pela realidade, mas também pela ficção. O primeiro livro trata da realidade – More faz um retrato crítico da Inglaterra (e da Europa) do ponto de vista social, político, económico e religioso. “É um olhar de alguém que sofre com aquele que sofre, um olhar sobre aquele que tem de roubar porque tem fome. More critica as estruturas do Estado exactamente porque acabam por promover o roubo e, em vez de castigar, deviam de facto reorganizar a própria sociedade de maneira a evitar que houvesse pobres e fome”, elucida Manuel Frias Martins. Para o académico, More é, assim, “um dos grandes humanistas que anunciam a modernidade”.
O livro II é integralmente dedicado à ilha da
Utopia, à sua organização e aos seus princípios. É, segundo Fátima
Vieira, “perfeita ficção”, denunciada pelo próprio navegador que, tal
como a ilha, é imaginário. Outros indícios, como os nomes e a sua
etimologia, contribuem para essa mesma ideia: a ilha – Utopia,
neologismo criado por More que significa “não-lugar” –, a capital –
Amauroto, “cidade sem habitantes” –, o rio – Anidro, “rio sem água” –, e
o príncipe – Adamos, “chefe sem povo”.
“Todo este jogo é agravado
pelo facto de o próprio nome do viajante utópico, Rafael Hitlodeu,
conter também uma contradição: se, por um lado, Rafael nos lembra o
arcanjo Rafael, portador da ‘cura divina’, por outro lado a etimologia
grega de ‘Hitlodeu’ aponta para o facto de ele ser um ‘perito em
bagatelas’”, diz Fátima Vieira. Em Utopia, esclarece, há
constantes contradições. Mas como interpretá-las? “Todas estas
contradições remetem a ilha da Utopia para o plano das ideias, para o
plano meramente teórico, e era isso que More pretendia”, explica Fátima
Vieira, que preside a Utopian Studies Society/Europe, uma associação
interdisciplinar dedicada a estudos sobre o pensamento utópico e que
está a preparar várias iniciativas para assinalar os 500 anos da obra de
More.
É justamente no livro II que a inovação de More é visível –
e acentua-se quando nos apercebemos de que vários princípios da
sociedade utopiana, a que continuamos a ambicionar hoje, não são ainda
uma realidade em muitos pontos do globo.
A sociedade utopiana é
“uma democracia, visto que são os cidadãos que elegem os seus
representantes”, diz Paulo Tunhas, professor de filosofia da Faculdade
de Letras da Universidade do Porto. “Mas é uma democracia que tem
componentes totalitárias. É, indiscutivelmente, um sistema fechado”,
como evidenciam alguns princípios: “não se pode, por exemplo, sair de
uma zona do território para outra sem autorização”. Numa época de
monarquias, a ilha da Utopia tem um sistema político baseado na vontade
do povo. “É uma nova forma de fazer política, em que todos os cidadãos
podem participar”, explica Mónica Dias, professora do Instituto de
Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa. Para que isso
seja possível, More “apresenta o ideal educativo – o acesso de todos à
educação é uma das facetas mais importantes da ilha”.
A obra de
More tem, além disso, um importante papel na área do Direito. “Há uma
ideia de Estado de Direito marcada – as pessoas não são condenadas pela
arbitrariedade e pela vontade de um príncipe, há leis conhecidas e
respeitadas por todos”, nota Mónica Dias.
O autor inglês não
esquece, também, a religião e dedica-lhe um capítulo. Na ilha da Utopia
há liberdade religiosa (ainda que existam algumas crenças obrigatórias,
como a imortalidade da alma) – “isto é a aceitação da diferença, é a
modernidade”, advoga Frias Martins.
Mas para o professor da
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, a modernidade de Thomas
More relaciona-se principalmente com a ideia de “identificar a
propriedade privada como o cerne das desigualdades sociais”, diz. É por
isso que o autor cria na sua Utopia uma sociedade em que a propriedade privada não existe. “O iluminismo do século XIX vai beber à Utopia
muitos dos seus ideais e sobretudo o modo como vai ler os males
sociais. Vai propor correcções dos males sociais em termos de
reorganização política da sociedade.”
Como Fátima Vieira observa, durante muito tempo pensou-se que
More propôs a abolição da propriedade privada, “e por isso foi muitas
vezes descrito como um protocomunista”, mas a académica defende que não
se pode olhar para Rafael Hitlodeu como um porta-voz de More. “Essa
ideia da ausência de propriedade privada de que Rafael Hitlodeu fala ao
descrever a ilha da Utopia, não é necessariamente uma proposta defendida
por Thomas More”, diz. “A ideia de olhar para o livro e associar-se ao
pensamento comunista é típica do século XIX e do século XX, mas é errada
porque se está a confundir a ideia de utopia – a ideia de pensar uma
alternativa – com as idealizações dessa utopia.”
Mónica Dias
defende que não é possível ver um paralelismo directo entre o princípio
de abolição da propriedade privada expresso em Utopia e o
princípio teorizado no socialismo que surge apenas no século XIX, num
contexto filosófico, económico e social muito diferente. “Os socialistas
não vão, aliás, buscar essa ideia a More, vão sim a Platão, em A República, e a outros filósofos”, advoga.
A
docente do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica
Portuguesa rejeita comparações entre o socialismo científico enunciado
por Karl Marx e Friedrich Engels no século XIX e o texto de Thomas More.
“O socialismo científico do século XIX, de Karl Marx e Friedrich
Engels, aponta para uma sociedade perfeita num fim da História – onde a
utopia já não seria necessária — e por isso apela a algo mais drástico,
uma revolução – uma alteração total do sistema social —, que não é o que
More queria”, afirma Mónica Dias.
“Podemos dizer é que, da mesma maneira que Thomas More olhou para a sua sociedade, viu que havia desigualdades e escreveu Utopia
apresentando uma forte crítica social e mostrando que havia um caminho
alternativo, os reformistas sociais do século XIX olharam para a sua
sociedade e propuseram reformas sociais”. Foi o caso de Robert Owen,
reformista britânico considerado um dos rostos do socialismo utópico e
que, entre outras medidas, propôs melhorias para as condições de
trabalho. “Thomas More nunca foi um revolucionário [como Marx e Engels],
foi um reformista. Não escreveu um manifesto [como Marx e Engels], mas
uma obra literária.”
More destina ainda um capítulo à guerra,
considerada pelos utopianos como “bestial”. Homens e mulheres estão
preparados para combater, caso seja necessário, mas na ilha da Utopia a
guerra é sempre encarada como uma medida de último recurso. “Esta ideia
de paz, por oposição à guerra, é uma ideia que começa no final da Idade
Média e avança no Renascimento. O Humanismo é-lhe muito sensível. O
século XVI é o século das guerras religiosas, e portanto a questão da
paz acaba por ser um elemento central de quem se interessa por pensar o
seu tempo. A questão da guerra é, de facto, a questão da paz, ou seja, a
valorização da paz e a crença de que a guerra é um desiderato
anti-humano, anti-social e anti-bem comum”, explica o professor de
Cultura Renascentista da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
As
convicções religiosas de More viriam a ser, aliás, o motivo da sua
morte. Em 1531, o rei inglês Henrique VIII, que queria casar com Ana
Bolena, proclama-se Chefe Supremo da Igreja, depois de o Papa Clemente
VII lhe negar o divórcio de Catarina de Aragão. More, que não reconhece
Henrique VIII como chefe da Igreja e se opõe ao divórcio, é condenado à
morte por traição. É decapitado em 1535 e a sua cabeça exposta na Torre
de Londres.
As utopias para além da Utopia
Apesar de não ser o primeiro texto sobre um ideal utópico, Utopia — uma palavra criada por More — viria a inaugurar uma tradição de obras que foram, depois, publicadas à luz de uma génese comum: a proposta de projectos alternativos para a sociedade. Para se proteger, Thomas More escreveu de maneira a que fosse sempre “Rafael Hitlodeu a fazer a apologia dessa ordem alternativa” e não o autor propriamente dito, diz Fátima Vieira, que explica que “o género literário utópico, em virtude desta estratégia narrativa, permite a crítica e a passagem de uma mensagem subversiva, tendo por isso conhecido grande pujança, ao longo destes cinco séculos, em tempos de opressão”.
Apesar de não ser o primeiro texto sobre um ideal utópico, Utopia — uma palavra criada por More — viria a inaugurar uma tradição de obras que foram, depois, publicadas à luz de uma génese comum: a proposta de projectos alternativos para a sociedade. Para se proteger, Thomas More escreveu de maneira a que fosse sempre “Rafael Hitlodeu a fazer a apologia dessa ordem alternativa” e não o autor propriamente dito, diz Fátima Vieira, que explica que “o género literário utópico, em virtude desta estratégia narrativa, permite a crítica e a passagem de uma mensagem subversiva, tendo por isso conhecido grande pujança, ao longo destes cinco séculos, em tempos de opressão”.
À obra de Thomas More seguiram-se outras utopias renascentistas e, já no século XVII, em 1624, Nova Atlântida, do
britânico Francis Bacon aparece como a primeira utopia científica, em
que “a base do progresso da sociedade é assegurada por avanços
científicos”, afirma a professora da Faculdade de Letras da Universidade
do Porto. Hoje, Nova Atlântida é “considerada fundadora de um género
literário muito próximo do utópico: a ficção científica”.
No século XVIII, a presidente do ramo europeu da Utopian Studies Society destaca As Viagens de Gulliver
do irlandês Jonathan Swift, publicada em 1726. “São paradigmáticas de
uma atitude cínica em relação à ideia de possibilidade de
aperfeiçoamento do ser humano e dos modos de organização em sociedade – é
um bom exemplo de uma utopia satírica”. Mas nesse século houve também
“um movimento mais positivo, informado pela visão iluminista do ser
humano, e que se estende pelo século XIX. No século XVIII encontramos um
conjunto de utopias que, na lógica do pensamento iluminista, nos falam
de um futuro de felicidade. São, nessa medida, ‘eucronias’. Memoirs of Planetes (1795), de Thomas Northmore, é um bom exemplo de uma utopia que vê o futuro como forçosamente melhor do que o presente”.
As
utopias do século XIX apostam na educação — “confiava-se que a
sociedade melhor surgiria como reflexo de um indivíduo melhor”,
esclarece Fátima Vieira. É neste século que, no contexto da Revolução
Industrial e da “agudização do conflito de classe”, surgem as utopias
marxistas. Entre elas, a professora destaca Notícias de Lugar Nenhum (1890),
do britânico William Morris, em que “a revolução, abolindo todas as
formas de propriedade privada, liberta o indivíduo para uma forma de
vida mais solidária”, elucida.
A partir da ideia de utopia surgiram variantes, como a
distopia. O século XX ficou precisamente marcado por distopias, entre as
quais se destacam várias obras dos britânicos H. G. Wells, Aldous
Huxley e George Orwell e do russo Yevgeny Zamyatin. Nas décadas de 60 e
70 houve, porém, “um revivalismo utópico de feição feminista e
ecologista”, nota Fátima Vieira. Foi nessa conjuntura que surgiram obras
como Ecotopia (1975) de Ernest Callenbach ou Woman on the Edge of Time (1976) de Marge Piercy.
A
especialista em estudos sobre utopia esclarece, no entanto, que as
distopias não são necessariamente pessimistas, uma vez que não são
antónimas das utopias. “A percepção que temos da distopia mudará se a
entendermos como um aviso – a ideia de que aquele é um caminho que não
devemos seguir – que ainda vamos a tempo de ouvir.”
Fátima Vieira nota que, nos últimos anos, várias obras têm apontado “para uma redefinição da utopia literária”, entre as quais Utopia III (2006) do português José de Pina Martins, Inglaterra, uma Fábula (1999) do argentino Leopoldo Brizuela ou A Ilha da Mão Esquerda
(1995) do francês Alexandre Jardin. “Estas obras são meta-utópicas,
isto é, são exercícios de reflexão sobre o pensamento utópico, e buscam
revalidar a utopia como estratégia para a construção do futuro. Cada uma
das obras revisita uma obra utópica e actualiza-a para os nossos dias. O
que sai valorizado dessas obras é a utopia enquanto estratégia,
considerada válida hoje, como ontem, para a imaginação de formas de
organização alternativa da sociedade.”
O lugar das utopias
Hoje, importa perceber qual é o lugar e o sentido de Utopia e das utopias em geral. Manuel Frias Martins acredita que as utopias existem “para serem perseguidas” e que devem ser concretizadas “em alguns dos seus ideais”, mas alerta para os seus perigos: “Costumo dizer que se alguma vez uma utopia se realizar, realiza-se sempre como tragédia. Porque a utopia não é realizável, por isso é que é uma utopia. Implementar uma utopia como objectivo final significa eliminar diferenças dentro da própria utopia e eliminar diferenças só se faz através da repressão da diferença. Que, neste contexto, é exactamente o contrário da utopia. Se isso acontecer, estamos perante tragédias que envolvem a morte de milhões de pessoas”.
Hoje, importa perceber qual é o lugar e o sentido de Utopia e das utopias em geral. Manuel Frias Martins acredita que as utopias existem “para serem perseguidas” e que devem ser concretizadas “em alguns dos seus ideais”, mas alerta para os seus perigos: “Costumo dizer que se alguma vez uma utopia se realizar, realiza-se sempre como tragédia. Porque a utopia não é realizável, por isso é que é uma utopia. Implementar uma utopia como objectivo final significa eliminar diferenças dentro da própria utopia e eliminar diferenças só se faz através da repressão da diferença. Que, neste contexto, é exactamente o contrário da utopia. Se isso acontecer, estamos perante tragédias que envolvem a morte de milhões de pessoas”.
Paulo Tunhas
acredita que “a associação entre utopias e sistemas totalitários desfez o
impulso utópico” e defende que a palavra “utopia” é, hoje, “utilizada
num sentido muito vago”. “Hoje em dia reivindica-se a utopia, o direito à
utopia, como se a utopia fosse uma coisa fácil, digamos assim”,
acrescenta.
Fátima Vieira considera que já passou o tempo “dos
grandes planos para a transformação do mundo, como os que foram
oferecidos no século XIX”. Ainda assim, “o desejo de mudança continua”,
diz. A especialista em estudos sobre a utopia destaca as leituras do
sociólogo francês Michel Maffesoli, que defende que existem hoje utopias
intersticiais: “As utopias não existem como grandes planos, mas existem
como pequenos planos, em micro-utopias que vão sendo realizadas. Quase
não se dá por elas, mas vão efectivamente contribuindo para alterar o
mundo.” Fala ainda do filósofo francês Gilles Lipovetsky que acredita,
por sua vez, que nos nossos dias são comuns as “utopias individuais,
decorrentes da consciência de que a transformação colectiva poderá
decorrer da acção de indivíduos comuns, formando redes”.
Quanto ao
sentido da utopia, a especialista não tem dúvidas: “a utopia é hoje
vista como uma estratégia de pensamento prospectivo e holístico. Na
verdade, o raciocínio utópico parte do entendimento de que as sociedades
funcionam como sistemas e que, por isso, cada vez que for alterado um
dos aspectos desse sistema (por exemplo, o económico), todos os outros
aspectos serão afectados.” Fátima Vieira remete para um vídeo publicado no YouTube,
no qual o escritor uruguaio Eduardo Galeano descreve “a forma exemplar
como o realizador de cinema argentino Fernando Birri terá explicado para
que serve a utopia: a utopia é algo que colocamos no nosso horizonte,
damos dez passos e ela afasta-se dez passos, damos mais dez passos e ela
afasta-se outros dez. Mas é para isso mesmo que ela serve - para nos
fazer caminhar”. Editado por Isabel Salema
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