Juremir Machado da Silva*
Faz um ano que radicais islâmicos atacaram a redação do jornal satírico francês Charlie Hebdo
e mataram seus principais cartunistas, Cabu, Wolinski, Charb, Tignous e
Honoré. O massacre produziu um efeito indesejado para os adeptos dos
criminosos: a tiragem do veículo deu um salto vertiginoso. Antes do
atentado, Charlie Hebdo vegetava entre dez mil e 60 mil
exemplares semanais. Era o que os franceses chamam de publicação
confidencial. Tinha a sua tribo. Em extinção. Velhinhos faziam humor
para a geração maio de 68 e escutavam rock and roll com sotaque francês
até oito horas da noite. Depois, tomavam seu remedinhos e iam dormir
para acordar bem e cedo.
Nesta semana, para lembrar a tragédia de 7 de janeiro de 2015, Charlie Hebdo saiu
com um milhão de exemplares. A provocação não cedeu diante do terror. O
espírito ácido e iluminista de Voltaire saltou da cama. Livros de
Voltaire e o clássico de Ernest Hemingway, Paris é uma festa, voltaram a ser lidos. A coragem, sempre presente, e a criatividade deram as caras. Charlie renasceu, rejuvenesceu e virou tendência entre jovens que só conheciam games e Netflix. A capa da edição atual de Charlie Hebdo traz um deus barbudo, armado com uma kalashnikov, e um título atrevido: “O assassino continua solto”.
Ao longo dos últimos 12 meses, especialistas de todos os tipos
tentaram compreender e explicar o ocorrido. Não foram muito longe. Culpa
de quem? Sim, há culpados. Do obscurantismo religioso de muçulmanos
radicais ou do desrespeito com os valores sagrados alheios, sob a forma
de humor, de europeus esquerdistas tentando chamar a atenção para vender
um produto quase falido? Há sempre adeptos da teoria do estupro como
resultado da minissaia. Seria suficiente não usá-la para tudo entrar em
ordem. O corpo feminino continua fazendo certos machos perderem o
controle. Neste caso, bastaria não provocar para evitar agressões. A
vítima torna-se refém do agressor e passa a ser culpada pelo mal que lhe
ocorre. Charlie Hebdo zomba da intolerância. Seria, por seu turno, intolerante?
O respeito à crença do outro, em sociedades abertas e democráticas, é
fundamental. A liberdade de expressão também. Conciliar esses dois
princípios é o desafio do mundo contemporâneo. Dificilmente se consegue
fazer piada com a tolerância. É a intolerância que se presta ao riso. A
moderação, por ser virtuosa, não desperta a fagulha da sátira. O
escritor Michel Houellebecq, no seu romance Submissão, que estava na capa de Charlie Hebdo no dia do ataque, tem razão: não se ri do que não se exibe como caricatura.
Nos atentados de novembro de 2015, os extremistas, outra vez,
manifestaram o ódio sentido pelo estilo de vida ocidental centrado no
divertimento, no lazer, no espetáculo e na liberdade de comportamento. O
gozo alheio explícito costuma provocar ressentimento. A festa irrita
quem não se diverte. Uma frase de Voltaire, o mais irônico dos
filósofos, serve de epitáfio aos terroristas: “A civilização não suprime
a barbárie, aperfeiçoa-a”.
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* Jornalista. Sociólogo.
Fonte: http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/
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