Ricardo Timm de Souza*
Professor da PUCRS passa o Brasil cultural a limpo,
sob a batuta da mais pensante das humanas:
a Filosofia.
“Nunca houve um documento da cultura que
não fosse igualmente um documento da barbárie”, ensina o pensador
Walter Benjamin, intérprete privilegiado dos séculos XIX e XX, em seu
tão célebre excerto. Tem sido assim em todas as épocas e civilizações: é
próprio do humano. A construção civilizatória não pode descurar desse
aspecto necessário de sua história e de seu presente, sob pena de
ocasionar o perecimento mesmo daquilo que de melhor já se conquistou ao
longo da história da humanidade. À visibilidade do que se estatui,
segue-se a sombra do que foi violentado no processo de estatuir. Manter
tal fato presente à consciência é o mínimo que se pode e deve esperar de
quem pensa seriamente a contemporaneidade.
Por outro lado, em outros tempos, o
filósofo Baruch Spinoza proferiu por sua vez uma frase só aparentemente
simples: “A verdade acaba aparecendo em si mesma desde si mesma”.
Compreender o ecoar dessa frase aqui e agora, no sentido do ataque
direto ao coração da hipocrisia que ela significa, é dever de todos e
todas interessados em entender o que realmente se passa nos dias que
correm.
Ora, não é difícil perceber o quanto
inúmeros acontecimentos relevantes ao longo desse ano que finda
expõem-se agora como verdades recalcadas que subiram à tona da percepção
de qualquer pessoa minimamente interessada no mundo e, no presente
contexto, especificamente no Brasil.
Se em algum momento houve alguma dúvida a
respeito da herança deseducativa persistente da ditadura de 1964 e da
devastação cultural que ela objetivava com o fito de controlar corações e
mentes, tal dúvida diluiu-se completamente no ano que passou. Aliando
despojos do passado ideológico recente – “comunismo” – com interesses os
mais diversos do tardocapitalismo, num arco eclético que abrangeu desde
a mídia hegemônica até os grandes atores da especulação financeira,
juntamente com, por óbvio, seus fantoches e massas de manobra, expressos
nos mais diferentes âmbitos de poder, a novel amálgama do não-pensar
aglutinou-se em uma espécie de “língua geral da violência” (expressão do
antropólogo Hélio S. Silva) e trouxe à tona um inédito arsenal
ideológico alimentado diuturnamente por funcionários – alguns inclusive
dizendo-se “filósofos”, sociólogos”, “historiadores” – de um sistema de
chavões, gritos e apostas na falência da linguagem, ou seja, na
falência da crítica.
Assim, 2015 foi o ano da verdade do
Brasil. A quem acreditava em “homem cordial”, o que apareceu foram
espectros saudosos da escravidão; a quem acreditava em promessas da
“justiça”, o que surgiu foi o sequestro midiático da violência perversa,
o linchamento simbólico e real de pessoas, as agressões, as ameaças de
morte; a quem acreditava na possibilidade de convivência entre
diferentes, o racismo mais escabroso assomou dos porões da cultura
orgulhoso e em trajes de luxo e sangue, e o preconceito
(exponencialidade descontrolada do medo ao Outro), em todas as suas
formas que são finalmente uma só, travestiu-se de todas as cores, na
homofobia, no medo do protagonismo feminino e das novas configurações
familiares anti-patriarcais – enfim, numa desesperada tentativa de
redução do universo complexo em que vivemos a um jogo infantil binário
do “bem” contra o “mal”. As massas de manobra elegeram logo seus heróis,
infiltrados em todas as dimensões da vida pública e privada. A ideia fixa
tornou-se, num salto mortal completamente paradoxal, uma estranha meta
do pensamento, e não sua pura e simples negação acrítico-positivista (J.
Habermas), como em outros lugares e eras. Passaram a pulular os bufões
histéricos do estabelecido em toda sua desfaçatez: o antro dos
“lobisomens da história” (E. Levinas) havia encontrado sua voz.
Desse modo, a verdade apareceu em si
mesma desde si mesma. Uma parte do verdadeiro Brasil veio à tona, qual
um corpanzil afogado que sobe à superfície da água por sua própria
decomposição incontida. A qualquer observador sensato, apareceu como se
estivéssemos todos vivendo no farfalhar espasmódico da violência original do país, aquela primeva, realizada desde há cinco séculos por uma espécie de “elite” colonial sui generis,
incapaz de perceber o mundo em que vive, porém completamente capaz de
recriar os zumbis do passado que sempre a sustentaram e continuam
sustentando, explorando o medo e o trabalho alheios. De repente, não
mais que de repente, todo ódio de classe social e seus incontáveis
derivados espumou e revolveu-se num estertor de saudosismo incontido e
pavor do futuro, expressão completamente visível de infelicidade
cultivada a golpes da violência astuta.
“Nunca houve um documento da cultura que
não fosse igualmente um documento da barbárie” – para o pensamento
minimamente crítico, também aqui o Brasil de cinco séculos tomou um
caminho próprio, naturalizou o descompasso, apostou no impossível: pois,
mesmo com tantas e auspiciosas exceções e novidades ao longo de nossa
história e no hic et nunc, a opção foi assimetricamente pela
barbárie. Cumpre agora às novas gerações, ao espírito da abertura ao
real, aos autores e atores de novos sistemas culturais para além do
estatuído, do velho e do medroso, colocar mãos à obra e, ao transformar a crise em crítica,
soerguer mais e mais documentos de cultura em nossa amada terra; pois é
evidente que não pode escapar a ninguém que pensa que “a inteligência é
uma categoria moral” (T. Adorno).
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* Professor do Programa de Pós-graduação em Filosofia da PUCRS.
Fonte: Correio do Povo impresso - Caderno de Sábado, 02/01/2016 pág.2
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