segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

Brasil, 2015 – O ano da Verdade

Ricardo Timm de Souza*
 
 Professor da PUCRS passa o Brasil cultural a limpo, 
sob a batuta da mais pensante das humanas: 
a Filosofia.
 
“Nunca houve um documento da cultura que não fosse igualmente um documento da barbárie”, ensina o pensador Walter Benjamin, intérprete privilegiado dos séculos XIX e XX, em seu tão célebre excerto. Tem sido assim em todas as épocas e civilizações: é próprio do humano. A construção civilizatória não pode descurar desse aspecto necessário de sua história e de seu presente, sob pena de ocasionar o perecimento mesmo daquilo que de melhor já se conquistou ao longo da história da humanidade. À visibilidade do que se estatui, segue-se a sombra do que foi violentado no processo de estatuir. Manter tal fato presente à consciência é o mínimo que se pode e deve esperar de quem pensa seriamente a contemporaneidade.

Por outro lado, em outros tempos, o filósofo Baruch Spinoza proferiu por sua vez uma frase só aparentemente simples: “A verdade acaba aparecendo em si mesma desde si mesma”. Compreender o ecoar dessa frase aqui e agora, no sentido do ataque direto ao coração da hipocrisia que ela significa, é dever de todos e todas interessados em entender o que realmente se passa nos dias que correm.

Ora, não é difícil perceber o quanto inúmeros acontecimentos relevantes ao longo desse ano que finda expõem-se agora como verdades recalcadas que subiram à tona da percepção de qualquer pessoa minimamente interessada no mundo e, no presente contexto, especificamente no Brasil.

Se em algum momento houve alguma dúvida a respeito da herança deseducativa persistente da ditadura de 1964 e da devastação cultural que ela objetivava com o fito de controlar corações e mentes, tal dúvida diluiu-se completamente no ano que passou. Aliando despojos do passado ideológico recente – “comunismo” – com interesses os mais diversos do tardocapitalismo, num arco eclético que abrangeu desde a mídia hegemônica até os grandes atores da especulação financeira, juntamente com, por óbvio, seus fantoches e massas de manobra, expressos nos mais diferentes âmbitos de poder, a novel amálgama do não-pensar aglutinou-se em uma espécie de “língua geral da violência” (expressão do antropólogo Hélio S. Silva) e trouxe à tona um inédito arsenal ideológico alimentado diuturnamente por funcionários  – alguns inclusive dizendo-se “filósofos”, sociólogos”, “historiadores” – de um sistema de chavões, gritos e apostas na falência da linguagem, ou seja, na falência da crítica.

Assim, 2015 foi o ano da verdade do Brasil. A quem acreditava em “homem cordial”, o que apareceu foram espectros saudosos da escravidão; a quem acreditava em promessas da “justiça”, o que surgiu foi o sequestro midiático da violência perversa, o linchamento simbólico e real de pessoas, as agressões, as ameaças de morte; a quem acreditava na possibilidade de convivência entre diferentes, o racismo mais escabroso assomou dos porões da cultura orgulhoso e em trajes de luxo e sangue, e o preconceito (exponencialidade descontrolada do medo ao Outro), em todas as suas formas que são finalmente uma só, travestiu-se de todas as cores, na homofobia, no medo  do protagonismo feminino e das novas configurações familiares anti-patriarcais – enfim, numa desesperada tentativa de redução do universo complexo em que vivemos a um jogo infantil binário do “bem” contra o “mal”. As massas de manobra elegeram logo seus heróis, infiltrados em todas as dimensões da vida pública e privada. A ideia fixa tornou-se, num salto mortal completamente paradoxal, uma estranha meta do pensamento, e não sua pura e simples negação acrítico-positivista (J. Habermas), como em outros lugares e eras. Passaram a pulular os bufões histéricos do estabelecido em toda sua desfaçatez: o antro dos “lobisomens da história” (E. Levinas) havia encontrado sua voz.

Desse modo, a verdade apareceu em si mesma desde si mesma. Uma parte do verdadeiro Brasil veio à tona, qual um corpanzil afogado que sobe à superfície da água por sua própria decomposição incontida. A qualquer observador sensato, apareceu como se estivéssemos todos vivendo no farfalhar espasmódico da violência original do país, aquela primeva, realizada desde há cinco séculos por uma espécie de “elite” colonial sui generis, incapaz de perceber o mundo em que vive, porém completamente capaz de recriar os zumbis do passado que sempre a sustentaram e continuam sustentando, explorando o medo e o trabalho alheios. De repente, não mais que de repente, todo ódio de classe social e seus incontáveis derivados espumou e revolveu-se num estertor de saudosismo incontido e pavor do futuro, expressão completamente visível de infelicidade cultivada a golpes da violência astuta.

“Nunca houve um documento da cultura que não fosse igualmente um documento da barbárie” – para o pensamento minimamente crítico, também aqui o Brasil de cinco séculos tomou um caminho próprio, naturalizou o descompasso, apostou no impossível: pois, mesmo com tantas e auspiciosas exceções e novidades ao longo de nossa história e no hic et nunc, a opção foi assimetricamente pela barbárie. Cumpre agora às novas gerações, ao espírito da abertura ao real, aos autores e atores de novos sistemas culturais para além do estatuído, do velho e do medroso, colocar mãos à obra e, ao transformar a crise em crítica, soerguer mais e mais documentos de cultura em nossa amada terra; pois é evidente que não pode escapar a ninguém que pensa que “a inteligência é uma categoria moral” (T. Adorno).
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* Professor do Programa de Pós-graduação em Filosofia da PUCRS. 
Fonte: Correio do Povo impresso - Caderno de Sábado, 02/01/2016 pág.2

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