Martha Medeiros*
Não lembro em que livro encontrei esta frase do poeta Fernando
Pessoa: “Ninguém admite, verdadeiramente, a existência real de outra
pessoa”. É uma afirmação incômoda. Seremos tão autocentrados a ponto de
admitir apenas parcialmente a existência de quem nos cerca?
Reza a lenda que só levamos em conta aqueles por quem temos sentimentos profundos: filhos, pais, irmãos e amigos íntimos. Aos outros (amigos não tão íntimos, colegas de trabalho e conhecidos diversos) destinamos nossa simpatia. E, aos desconhecidos, devotamos no máximo nossa curiosidade, se eles a merecerem. Ou nossa indiferença, se eles a merecerem também.
Só que Pessoa não fazia essa distinção, não estava contemporizando. Ele foi claro: os outros, todos os outros, são abstrações ao redor. Convivemos com eles, nos preocupamos com eles, até mesmo os amamos, mas, ainda assim, eles gravitam em nossa órbita sem que consigamos conferir-lhes uma individualidade plena.
Essa ausência de empatia explica por que o mundo nunca vai ser justo e pacífico. Houvesse verdadeira empatia entre os seres humanos, adeus guerras, violência urbana e corrupção. Bastaria que cada um tivesse consciência de que o outro sente, sofre, ama, deseja e pensa com legitimidade e intensidade idênticas a nossa.
Na incapacidade de desenvolvermos esse olhar abrangente, direcionamos o foco apenas aos nossos pares, acreditando que eles representam “todo mundo”. Todo mundo curtiu o post. Todo mundo sentiu a morte do David Bowie. Todo mundo está adorando o novo filme do Tarantino.
Um microcosmo de pessoas do mesmo nível social e intelectual, que cultivam os mesmos hábitos e gostos e que por isso têm a existência comprovada, tanto que, quando sofrem alguma violência, o fato parece muito mais grave do que quando acontece o mesmo com alguém que não se parece conosco e que, portanto, não é visto como parte do mundo.
Um menino de dois anos chamado Vitor foi assassinado a sangue-frio na rodoviária de Imbituba, dias atrás. Um maluco enfiou-lhe um estilete na garganta, sem mais nem menos. Vitor era um belo loirinho, filho de um renomado cirurgião e de uma psicanalista que vivem num prédio da Beira-Mar Norte, em Florianópolis.
Fosse isso mesmo, o assunto estaria na capa dos jornais e revistas, só que não. Vitor foi realmente assassinado, mas era pobre, bugre e vivia numa aldeia indígena. Estava na rodoviária com a mãe, que ali vendia artesanato.
Bastou corrigir a descrição do menino, numa simples troca de parágrafos, para a empatia retroceder e a existência de Vitor se tornar menos importante – ou mesmo nula.
Ainda temos muito a evoluir, cara-pálida. Enquanto os outros forem uma abstração, um mundo melhor também será.
Reza a lenda que só levamos em conta aqueles por quem temos sentimentos profundos: filhos, pais, irmãos e amigos íntimos. Aos outros (amigos não tão íntimos, colegas de trabalho e conhecidos diversos) destinamos nossa simpatia. E, aos desconhecidos, devotamos no máximo nossa curiosidade, se eles a merecerem. Ou nossa indiferença, se eles a merecerem também.
Só que Pessoa não fazia essa distinção, não estava contemporizando. Ele foi claro: os outros, todos os outros, são abstrações ao redor. Convivemos com eles, nos preocupamos com eles, até mesmo os amamos, mas, ainda assim, eles gravitam em nossa órbita sem que consigamos conferir-lhes uma individualidade plena.
Essa ausência de empatia explica por que o mundo nunca vai ser justo e pacífico. Houvesse verdadeira empatia entre os seres humanos, adeus guerras, violência urbana e corrupção. Bastaria que cada um tivesse consciência de que o outro sente, sofre, ama, deseja e pensa com legitimidade e intensidade idênticas a nossa.
Na incapacidade de desenvolvermos esse olhar abrangente, direcionamos o foco apenas aos nossos pares, acreditando que eles representam “todo mundo”. Todo mundo curtiu o post. Todo mundo sentiu a morte do David Bowie. Todo mundo está adorando o novo filme do Tarantino.
Um microcosmo de pessoas do mesmo nível social e intelectual, que cultivam os mesmos hábitos e gostos e que por isso têm a existência comprovada, tanto que, quando sofrem alguma violência, o fato parece muito mais grave do que quando acontece o mesmo com alguém que não se parece conosco e que, portanto, não é visto como parte do mundo.
Um menino de dois anos chamado Vitor foi assassinado a sangue-frio na rodoviária de Imbituba, dias atrás. Um maluco enfiou-lhe um estilete na garganta, sem mais nem menos. Vitor era um belo loirinho, filho de um renomado cirurgião e de uma psicanalista que vivem num prédio da Beira-Mar Norte, em Florianópolis.
Fosse isso mesmo, o assunto estaria na capa dos jornais e revistas, só que não. Vitor foi realmente assassinado, mas era pobre, bugre e vivia numa aldeia indígena. Estava na rodoviária com a mãe, que ali vendia artesanato.
Bastou corrigir a descrição do menino, numa simples troca de parágrafos, para a empatia retroceder e a existência de Vitor se tornar menos importante – ou mesmo nula.
Ainda temos muito a evoluir, cara-pálida. Enquanto os outros forem uma abstração, um mundo melhor também será.
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* Jornalista. Escritora
Fonte: http://www.clicrbs.com.br/zerohora/jsp/default2.jsp?uf=1&local=1&source=a4950492.xml&template=3916.dwt&edition=28201§ion=70
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