UWE TIMM | ESCRITOR ALEMÃO
Timm em Porto Alegre, em 2015. Divulgação Dublinense
No Brasil para lançar o livro ‘A descoberta da currywurst’, 'best seller' alemão falou de culpas
Escritor diz que é papel de escritores e intelectuais combater mentalidade conservadora
Uwe Timm, um dos escritores alemães que mais vende livros hoje, é a
personificação de duas características bem alemãs: a firmeza das ideias
expostas com clareza, que em geral se associa à Alemanha,
e a amabilidade no trato pessoal – característica pouco atribuída ao
país, sobretudo por quem só o conhece pelos clichês. Seus livros, entre
eles vários best sellers europeus como À sombra do meu irmão (ed. Dublinense), também retratam algo muito nacional: a sensação de culpa coletiva gerada pelo antissemitismo de Hitler
e o que Führer empreendeu com a Segunda Guerra Mundial. Falar com Uwe,
assim como visitar a Alemanha e ler seus livros, são duas maneiras de
entender melhor essa realidade.
O escritor esteve no Brasil no fim de 2015 para o lançamento de seu romance mais recente, A descoberta da currywurst (Dublinense).
Nele, o autor, que é casado com uma argentina, recupera a origem desse
típico prato nacional feito com tempero estrangeiro para retratar seu
país no fim da Segunda Guerra:
golpeado e caduco, propenso a se abrir às novidades. O livro já vendeu
800.000 cópias em todo o mundo – grande parte delas, para a rede de
escolas do ensino fundamental alemão. Para comentá-lo, o autor de 75
anos nascido em Hamburg e radicado em Munique acolheu a entrevista do EL
PAÍS, feita em alemão oxidado, com elogios entusiasmados à repórter e
um sorriso franco. Quis agradar, mas disse as suas verdades.
Pergunta. A Alemanha é uma inspiração constante para você ou apenas um pano de fundo para as suas histórias?
Resposta. É de fato como uma inspiração. Temos uma
história em parte triste, relacionada ao período nazista, à posterior
separação do país em Alemanha Ocidental e Oriental... Muitas coisas
catastróficas aconteceram nesse contexto. Eu tinha cinco anos quando a Segunda Guerra
acabou. E vivi na pele como os adultos mudaram, da noite para o dia.
Eles gritavam “Heil, Hitler” [a saudação nazista em alemão], e depois,
de repente, pararam. Todos os uniformes desapareceram, tiraram a foto de
Hitler das paredes... Para uma criança, mesmo sem entender, era
evidente que algo sério estava acontecendo. E isso sempre me interessou,
era algo que eu queria entender, inclusive para a minha própria
história também.
P. Mesmo hoje, mesmo sendo um país tão diferente, ele continua a inspirar sua literatura?
R. Sim, e é preciso dizer que é um país totalmente
diferente. Os anos 80 marcaram um antes e um depois na história alemã.
Depois da guerra, vieram os ingleses e os norte-americanos, e houve, por
exemplo, um programa de reeducação nas escolas, um trabalho voltado a
mudar essa mentalidade racista que imperou no nazismo.
P. Por que você escolheu uma currywurst (linguiça à moda alemã temperada com curry) para contar uma história que se passa durante a Segunda Guerra em A descoberta da currywurst?
R. Com a currywurst, vêm duas coisas juntas: o curry, que era algo desconhecido quando surgiu na Alemanha à Segunda Guerra, na década de 40, e a wurst,
que é bem alemã. É uma maneira que me pareceu interessante de descrever
uma época em que coisas locais passaram a ser feitas à moda
estrangeira, ressaltando um modo de viver bem ocidental e com novidades
como o curry – um tempero indiano levado à Alemanha por soldados
ingleses. O livro conta como uma mulher se apaixonou por um soldado e o
escondeu, como um ato de rebeldia. Ela considera que a guerra não
acabou, mas que se prolongou com a disputa entre os Estados Unidos,
país com o qual os alemães se aliaram, e a Rússia. Cozinhando e olhando
pela janela da cozinha, observa como a vida de repente mudou e sente
necessidade de interpretá-la, dotá-la de significado. Assim, inventa a currywurst.
P. O que levou você a começar a escrever ficção?
R. Comecei cedo a escrever, com 12 anos. Foi porque
eu tinha muitos problemas com o professor na escola. Ele – e meu pai
também – eram muito autoritários. Eu cometia muitos erros de ortografia
e, só escrevendo para mim foi que eu pude me soltar e soltar minha
fantasia. Comecei a escrever um romance, como forma de resistência a
esse excesso de autoridade naquela época. Continuei escrevendo e
escrevendo. Acho que você escreve quando está infeliz, insatisfeito com o mundo, consigo mesmo.
Se você está feliz, alegre, sai de casa e vai fazer alguma coisa
[risos]. Então, o que me estimulou foi essa insatisfação. Aos poucos,
fui fazendo disso uma profissão.
P. Esta é sua primeira vez no Brasil? Você tinha alguma imagem pré-concebida do país?
R. Não. Há dois anos, estive em Salvador e no Rio de Janeiro, quando outro romance meu, Penumbras
(ed. Record), foi lançado em português. E antes, há 25 anos, estive
aqui, no Instituto Goethe de São Paulo, com outro dos meus livros
também. Existem os clichês sobre o Brasil, como o futebol e a
amabilidade dos brasileiros, que, é preciso dizer, também são verdade.
Nós, estrangeiros, somos recebidos de maneira muito cálida aqui. Mas,
indo além disso, pude ver que esse é um país muito moderno. Também tive a
impressão de que o Brasil e a Europa têm uma grande proximidade, pela
maneira em que os brasileiros vivem. Para mim, é menos norte-americana
do que europeia, ironicamente. Também li Darcy Ribeiro, Carlos Drummond
de Andrade e outros autores nacionais. É um lugar muito rico, de música
maravilhosa também.
P. Li uma vez que todos nós somos responsáveis sobre
como um país é governado. No caso da Alemanha, você acha que o
holocausto, por exemplo, é uma responsabilidade da história ou há cargas
que pesam coletivamente sobre os cidadãos alemães?
R. Naturalmente, quem não estava presente ou era uma
criança, como eu, não é culpado individualmente. Mas é possível dizer
que somos responsáveis por que algo parecido não aconteça de novo. Isso é
central. Hoje, na Alemanha vivem um milhão de refugiados.
É inacreditável. Na França, por exemplo, acho que são 5.000. Na
Inglaterra ou na Polônia, nada, ninguém. Essa é uma grande mudança em
relação ao passado: como os alemães se tornaram amigáveis ao que vem de
fora. Claro que existem racistas e xenófobos, mas a grande maioria dos
alemães é favorável a que os refugiados que buscam saídas às guerras em
seus países estejam na Alemanha. Parece a mim um bom sinal, de uma nova
mentalidade.
P. O Brasil não viveu nenhuma guerra, mas na política, na economia e em termos sociais há problemas graves. Além disso, assistimos no presente a uma onda de ideias conservadoras
ganhar mais espaço no país. Seria possível fazer alguma comparação
desse contexto, guardadas as proporções, com essa mentalidade
conservadora que encontrou espaço na Alemanha antes da Segunda Guerra?
Somos, os brasileiros, responsáveis por ela hoje, de maneira geral?
R. É uma questão de jornalistas, escritores,
artistas, intelectuais e também políticos mudarem essa mentalidade. Que
se mostre às pessoas (que defendem intervenção militar) que ninguém
gostaria realmente de algo assim: uma ditadura jamais é algo bom.
Na Argentina, foram 30.000 desaparecidos, como se sabe. Em termos
econômicos, não ajudou coisa nenhuma em lugar algum. Pinochet, no Chile,
depois da queda de Allende, só fez aumentar as diferenças entre ricos e
pobres. Sem falar na violência.
P. Você mencionou os refugiados. O que você opina sobre o governo de Angela Merkel e o que ela disse sobre a responsabilidade alemã em relação ao holocausto, rebatendo declarações de Netanyahu sobre um líder islâmico?
R. Não votei no partido de Angela Merkel, porque me
posiciono mais à esquerda, mas acredito que a política dela em relação
aos refugiados é correta. Foi sua decisão recebê-los, e foi uma boa
decisão. Como isso vai continuar, é outra coisa. Naturalmente, chegarão
mais e mais... Fica impossível, um problema. O ponto, a partir deste
momento, é como a União Europeia vai se posicionar. Não só a Alemanha e a
Suécia podem atuar. O perigo, pelo que vejo, é que os
ultraconservadores de direita não só existam no continente, mas que
cheguem a governar. Como é na Polônia, por exemplo. Concordo também, com
o que Merkel respondeu a Netanyahu sobre o holocausto: a responsabilidade é dos alemães.
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REPORTAGEM POR
Camila Moraes
FONTE: http://brasil.elpais.com/brasil/2016/01/13/cultura/1452705329_661136.html
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