domingo, 3 de janeiro de 2016

Ensaísta faz crítica cultural do Brasil e questiona autores consagrados


 

RIO - Na apresentação de “A poeira da glória” (Record), o jornalista, crítico e ensaísta Martim Vasques da Cunha pede aos leitores que o julguem pelos argumentos que apresentará nas mais de 600 páginas seguintes. Seu objetivo é retirar a “poeira da glória”, expressão tomada de empréstimo do escritor Otto Lara Resende, dos clássicos da literatura brasileira. Mais do que uma crítica literária, Cunha faz uma crítica cultural do Brasil e questiona os seus mais consagrados intérpretes, como Sérgio Buarque de Holanda e Antonio Candido. O ensaísta garante que não quis comprar briga com ninguém, mas mostrar “uma visão meio inesperada da literatura que sempre esteve oculta, mas poucos queriam ver”.

— Tudo está bem documentado nos livros e nos depoimentos. Basta apenas lê-los com um novo olhar, sem nenhum filtro ideológico — afirma Cunha em entrevista por e-mail ao GLOBO. — Antes de tudo temos de parar de colocar esses autores, vivos ou mortos, no pedestal e finalmente assoprar a “poeira da glória” em suas obras para que a cultura brasileira possa começar a respirar de novo.

Nas suas análises, vocês faz uma avaliação moral de escritores e suas obras e reflete sobre valores como o Bem, o Belo e o Verdadeiro. Quais as suas filiações teóricas em “A poeira da glória”?
Fazer uma avaliação moral não significa, em hipótese nenhuma, fazer uma avaliação moralista, isto é, que reduza esses escritores a dogmas de bom comportamento. Literatura não se faz com boas intenções, mas sim com a plena consciência de que, pouco importa o que faça, você não sairá ileso ou vivo deste mundo. O que eu fiz, na verdade, foi analisar a vida e a obra desses autores como se fosse o drama existencial que representa também o drama do país. Assim, a minha filiação teórica se encontra principalmente em autores como Mario Vieira de Mello, Lionel Trilling, Milan Kundera, Roger Kimball, além de Julien Benda, Antonio Paim, Paulo Mercadante e João César de Castro Rocha com seu “Machado de Assis — Uma poética da emulação”.

Analisar obras a partir de valores ideais como o Bem e o Belo não seria algo anacrônico, já abandonado pela crítica? Por que trazer de volta a compreensão da literatura a partir desta perspectiva?
Creio que “anacrônico” é um termo equivocado quando se percebe que a minha filiação teórica, como você mesmo disse, inclui autores de diversas filiações ideológicas e que abarcam vários anos de estudos. Não há nada anacrônico na minha abordagem quando se percebe que um gigante como Lionel Trilling — infelizmente, pouco conhecido no Brasil — ou alguém como Milan Kundera, em especial no seu livro de ensaios mais recente, “Um encontro” (2013), sempre abordaram a literatura sob o prisma destes “valores ideais”. E esta compreensão sobre a literatura pode oferecer de volta justamente o prazer da leitura que perdemos e que atualmente vemos como um fardo — quando ela é um dos poucos remédios que temos para mitigar a nossa solidão.

Machado de Assis é considerado o patrono da literatura brasileira. Você tem críticas a essa reverência, em especial por causa do apreço do autor pela dissimulação. Por que você vê como problemático o lugar ocupado por Machado de Assis?
A “poética da dissimulação” de Machado de Assis é algo muito bonito de se ver em termos estéticos e técnicos, mas extremamente nefasto quando a percebemos na nossa cultura e no nosso comportamento cotidiano. Machado mostra que apenas conseguiremos sobreviver neste mundo cruel se dependermos do fingimento e da falsidade perante nós mesmos porque não há qualquer chance de encontrarmos inocência ou bondade — e quando isso acontece, deve-se colocar tudo sob suspeita, já que provavelmente se trata de uma exceção à regra. Isso resulta numa cultura da trapaça e do ressentimento que fundamenta a nossa sociedade, em que o brasileiro é incapaz de dominar as suas paixões e encontrar dentro de si a liberdade interior que o impediria de se transformar em um “monstro moral”.

Uma das inovações do livro é propor uma organização dos autores em duplos. O que torna Lima Barreto um duplo de Euclides da Cunha, assim como Guimarães Rosa de Otto Lara Resende e Nelson Rodrigues de Antonio Candido?
O livro foi estruturado como uma “descida aos infernos”, em que cada autor é o duplo do outro, seja pela contraposição de uma qualidade com um defeito (como é o caso de Nelson Rodrigues e Antonio Candido) ou então pelo paralelismo de obsessões em que um se sai razoavelmente vitorioso enquanto o outro sucumbe. O exemplo evidente desta construção dramática se encontra no capítulo sobre Guimarães Rosa e Otto Lara Resende, sendo que este último, como bem aponta o título do ensaio, é uma espécie de Virgílio e de verdadeiro herói neste submundo que se tornou a nossa literatura.

Antonio Candido, de quem você discorda várias vezes, é considerado o principal crítico literário brasileiro e responsável por formar gerações de críticos. Qual a sua principal crítica a Candido?
Antonio Candido foi o crítico que praticou aquilo que Julien Benda chamava de “a traição dos intelectuais” ao analisar a literatura somente pelas suas paixões políticas e esquecendo-se que ela retrata sobretudo o drama de uma realidade incapaz de ser classificada em gavetinhas ideológicas, seja do lado da esquerda ou da direita.

No livro, você critica também os chamados intérpretes do Brasil. Qual seria o principal equívoco deles ao fazer as suas interpretações?
O principal equívoco de intérpretes do Brasil como Sergio Buarque de Holanda, Mario de Andrade e Paulo Prado, entre outros, foi ter uma visão reducionista da natureza humana, substituindo-a por aquilo que o sociólogo Luis de Gusmão chamou de “o fetichismo do conceito”, transformando o homem em uma abstração, incapaz de assumir suas responsabilidades, ao jogar toda a culpa nas ideologias políticas e nas circunstâncias sociais.

No fim do seu livro, você argumenta que vivemos em um “totalitarismo cultural”. Quais são as características desse totalitarismo? E o termo não seria forte?
Não há nada forte ao usarmos a palavra “totalitarismo”. É apenas um termo científico, sem nenhum caráter positivista, que descreve precisamente qual o seu maior desejo: controlar a natureza humana em seus mínimos detalhes, na crença de que uma determinada interpretação da realidade se confunde com o centro do poder instituído. O totalitarismo cultural vivido no Brasil é exatamente essa busca obsessiva em querer “politizar” tudo, até mesmo os relacionamentos humanos, e amputar qualquer caminho do ser humano de conhecer a si mesmo para depois redescobrir a sua liberdade interior.
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Reportagem por

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