RIO - Na apresentação
de “A poeira da glória” (Record), o jornalista, crítico e ensaísta Martim
Vasques da Cunha pede aos leitores que o julguem pelos argumentos que
apresentará nas mais de 600 páginas seguintes. Seu objetivo é retirar a “poeira
da glória”, expressão tomada de empréstimo do escritor Otto Lara Resende, dos
clássicos da literatura brasileira. Mais do que uma crítica literária, Cunha
faz uma crítica cultural do Brasil e questiona os seus mais consagrados intérpretes,
como Sérgio Buarque de Holanda e Antonio Candido. O ensaísta garante que não
quis comprar briga com ninguém, mas mostrar “uma visão meio inesperada da
literatura que sempre esteve oculta, mas poucos queriam ver”.
— Tudo está bem
documentado nos livros e nos depoimentos. Basta apenas lê-los com um novo
olhar, sem nenhum filtro ideológico — afirma Cunha em entrevista por e-mail ao
GLOBO. — Antes de tudo temos de parar de colocar esses autores, vivos ou
mortos, no pedestal e finalmente assoprar a “poeira da glória” em suas obras
para que a cultura brasileira possa começar a respirar de novo.
Nas suas
análises, vocês faz uma avaliação moral de escritores e suas obras e reflete
sobre valores como o Bem, o Belo e o Verdadeiro. Quais as suas filiações teóricas
em “A poeira da glória”?
Fazer uma avaliação
moral não significa, em hipótese nenhuma, fazer uma avaliação moralista, isto
é, que reduza esses escritores a dogmas de bom comportamento. Literatura não se
faz com boas intenções, mas sim com a plena consciência de que, pouco importa o
que faça, você não sairá ileso ou vivo deste mundo. O que eu fiz, na verdade,
foi analisar a vida e a obra desses autores como se fosse o drama existencial
que representa também o drama do país. Assim, a minha filiação teórica se
encontra principalmente em autores como Mario Vieira de Mello, Lionel Trilling,
Milan Kundera, Roger Kimball, além de Julien Benda, Antonio Paim, Paulo
Mercadante e João César de Castro Rocha com seu “Machado de Assis — Uma poética
da emulação”.
Analisar obras
a partir de valores ideais como o Bem e o Belo não seria algo anacrônico, já
abandonado pela crítica? Por que trazer de volta a compreensão da literatura a
partir desta perspectiva?
Creio que
“anacrônico” é um termo equivocado quando se percebe que a minha filiação
teórica, como você mesmo disse, inclui autores de diversas filiações
ideológicas e que abarcam vários anos de estudos. Não há nada anacrônico na
minha abordagem quando se percebe que um gigante como Lionel Trilling —
infelizmente, pouco conhecido no Brasil — ou alguém como Milan Kundera, em
especial no seu livro de ensaios mais recente, “Um encontro” (2013), sempre
abordaram a literatura sob o prisma destes “valores ideais”. E esta compreensão
sobre a literatura pode oferecer de volta justamente o prazer da leitura que
perdemos e que atualmente vemos como um fardo — quando ela é um dos poucos
remédios que temos para mitigar a nossa solidão.
Machado de
Assis é considerado o patrono da literatura brasileira. Você tem críticas a
essa reverência, em especial por causa do apreço do autor pela dissimulação.
Por que você vê como problemático o lugar ocupado por Machado de Assis?
A “poética da
dissimulação” de Machado de Assis é algo muito bonito de se ver em termos
estéticos e técnicos, mas extremamente nefasto quando a percebemos na nossa
cultura e no nosso comportamento cotidiano. Machado mostra que apenas
conseguiremos sobreviver neste mundo cruel se dependermos do fingimento e da
falsidade perante nós mesmos porque não há qualquer chance de encontrarmos
inocência ou bondade — e quando isso acontece, deve-se colocar tudo sob
suspeita, já que provavelmente se trata de uma exceção à regra. Isso resulta
numa cultura da trapaça e do ressentimento que fundamenta a nossa sociedade, em
que o brasileiro é incapaz de dominar as suas paixões e encontrar dentro de si
a liberdade interior que o impediria de se transformar em um “monstro moral”.
Uma das
inovações do livro é propor uma organização dos autores em duplos. O que torna
Lima Barreto um duplo de Euclides da Cunha, assim como Guimarães Rosa de Otto
Lara Resende e Nelson Rodrigues de Antonio Candido?
O livro foi
estruturado como uma “descida aos infernos”, em que cada autor é o duplo do
outro, seja pela contraposição de uma qualidade com um defeito (como é o caso
de Nelson Rodrigues e Antonio Candido) ou então pelo paralelismo de obsessões
em que um se sai razoavelmente vitorioso enquanto o outro sucumbe. O exemplo
evidente desta construção dramática se encontra no capítulo sobre Guimarães
Rosa e Otto Lara Resende, sendo que este último, como bem aponta o título do
ensaio, é uma espécie de Virgílio e de verdadeiro herói neste submundo que se
tornou a nossa literatura.
Antonio Candido,
de quem você discorda várias vezes, é considerado o principal crítico literário
brasileiro e responsável por formar gerações de críticos. Qual a sua principal
crítica a Candido?
Antonio Candido foi o
crítico que praticou aquilo que Julien Benda chamava de “a traição dos
intelectuais” ao analisar a literatura somente pelas suas paixões políticas e
esquecendo-se que ela retrata sobretudo o drama de uma realidade incapaz de ser
classificada em gavetinhas ideológicas, seja do lado da esquerda ou da direita.
No livro, você
critica também os chamados intérpretes do Brasil. Qual seria o principal
equívoco deles ao fazer as suas interpretações?
O principal equívoco
de intérpretes do Brasil como Sergio Buarque de Holanda, Mario de Andrade e
Paulo Prado, entre outros, foi ter uma visão reducionista da natureza humana,
substituindo-a por aquilo que o sociólogo Luis de Gusmão chamou de “o
fetichismo do conceito”, transformando o homem em uma abstração, incapaz de
assumir suas responsabilidades, ao jogar toda a culpa nas ideologias políticas
e nas circunstâncias sociais.
No fim do seu
livro, você argumenta que vivemos em um “totalitarismo cultural”. Quais são as
características desse totalitarismo? E o termo não seria forte?
Não há nada forte ao
usarmos a palavra “totalitarismo”. É apenas um termo científico, sem nenhum
caráter positivista, que descreve precisamente qual o seu maior desejo:
controlar a natureza humana em seus mínimos detalhes, na crença de que uma
determinada interpretação da realidade se confunde com o centro do poder
instituído. O totalitarismo cultural vivido no Brasil é exatamente essa busca
obsessiva em querer “politizar” tudo, até mesmo os relacionamentos humanos, e
amputar qualquer caminho do ser humano de conhecer a si mesmo para depois redescobrir
a sua liberdade interior.
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Reportagem por Leonardo Cazes
Foto: Martim Vasques da Cunha
- Divulgação / Dionisius Amêndola
Fonte: http://oglobo.globo.com/cultura/livros/ensaista-faz-critica-cultural-do-brasil-questiona-autores-consagrados-18394421
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