Estado de Segurança: governos movimentam-se para restringir
liberdades, atemorizar cidadãos e reduzi-los, enfim, à passividade.
Isso
nada tem a ver com “combate ao terrorismo”
Por Giorgio Agamben | Tradução Pedro Lucas Dulci
O estado de emergência não é um escudo que protege a democracia. Pelo
contrário, ele sempre acompanhou as ditaduras e até forneceu um quadro
jurídico para as atrocidades da Alemanha nazista. A França deve resistir
à política do medo.
Não será possível compreender o verdadeiro problema da prorrogação do
estado de emergência nesse país – até o final de fevereiro – se ele não
for examinado no contexto de uma transformação radical do modelo de
Estado que se tornou familiar. É preciso, acima de tudo, desmentir as
palavras das mulheres e homens políticos irresponsáveis, segundo as
quais o estado de emergência seria um escudo para a democracia.
Os historiadores estão bem conscientes de que o oposto é verdadeiro. O
estado de emergência é precisamente o dispositivo pelo qual os poderes
totalitários instalaram-se na Europa. Nos anos que antecederam a tomada
do poder por Hitler, os governantes social-democratas da República de
Weimar tinham recorrido tantas vezes ao estado de emergência (estado de
exceção, como é chamado na Alemanha), que se pode dizer que esse país já
tinha cessado, antes de 1933, de ser uma democracia parlamentar.
Mas o primeiro ato de Hitler, após a sua nomeação, foi proclamar de
novo o estado de emergência, que nunca foi revogado. Quando nos
surpreendemos com os crimes que foram cometidos com impunidade pelos
nazistas na Alemanha, nos esquecemos de que essas ações eram
perfeitamente legais, pois as liberdades individuais haviam sido
suspensas.
Não está claro por que tal cenário não se repetiria na França. É
possível imaginar sem dificuldade um governo de extrema-direita
servir-se, para seus propósitos, de um estado de emergência a que os
governos socialistas tornaram agora os cidadãos acostumados. Em um país
que vive em uma emergência prolongada, e em que as operações policiais
vão substituir gradualmente o Judiciário, devemos esperar uma
deterioração rápida e irreversível das instituições públicas.
Isto é especialmente verdadeiro já que o estado de emergência faz
parte do processo que atualmente faz com que as democracias ocidentais
involuam para algo chamado Estado de Segurança (“Security State”, como
dizem os cientistas políticos americanos). A palavra “segurança” entrou
totalmente no discurso político e, pode-se dizer sem medo de errar, que
as “razões de segurança” tomaram o lugar do que foi chamado
anteriormente o “raison d’Etat” [razão de ser do Estado]. Uma análise
desta nova forma de governo, no entanto, ainda está ausente. Como o
Estado de Segurança não é nem o Estado de Direito, nem aquilo que Michel
Foucault chamou de “sociedades disciplinares”, ele requer alguns marcos
para uma possível definição.
No modelo do inglês Thomas Hobbes, que influenciou tão profundamente
nossa filosofia política, o contrato que transfere para os poderes
soberanos pressupõe medo mútuo da guerra de todos contra todos: o Estado
é precisamente o que tem que acabar com o medo. No Estado de Segurança,
esse padrão se inverte: o Estado é permanentemente fundamentado no medo
e deve, a todo o custo, manter-se assim, uma vez que desse medo ele
deriva a sua função essencial e legitimidade.
Foucault já havia mostrado que quando a palavra “segurança” aparece
pela primeira vez na França no discurso político, com os governos
fisiocratas de antes da Revolução, não foi para evitar desastres e fomes
— mas para deixar que eles acontecessem para, em seguida, governar em
um sentido que pensavam ser rentável.
Nenhum senso jurídico
Da mesma forma, a segurança em questão hoje não se destina a impedir
atos de terrorismo (que também é algo extremamente difícil, se não
impossível, uma vez que as medidas de segurança são eficazes apenas após
o fato e o terrorismo é, por definição, uma série de primeiros
disparos). Destina-se a estabelecer uma nova relação com os homens, que é
a de um controle generalizado e ilimitado – daí a ênfase particular em
dispositivos que permitem o controle completo de dados informáticos e de
comunicação dos cidadãos, incluindo o direito de remoção integral do
conteúdo de computadores.
O risco que primeiramente enfrentamos é a tendência à criação de uma
relação sistêmica entre o terrorismo e segurança do Estado. Se o Estado
precisa legitimar o medo, é preciso, em última análise, produzir terror,
ou, pelo menos, não impedir que ele ocorra. É por isso que muitos
países adotam uma política externa que alimenta o terrorismo — o qual
dizem combater em seu interior — e manter relações cordiais, ou até
mesmo vender armas, a Estados conhecidos para financiar organizações
terroristas.
Um segundo ponto a notar é a mudança do estatuto político dos
cidadãos e do povo, que deveria ser o titular da soberania. No Estado de
Segurança, há uma tendência irrepreensível ao que só pode ser chamado
de uma despolitização progressiva dos cidadãos, cuja participação na
política é reduzida às urnas. Esta tendência é particularmente
preocupante e até havia sido teorizado por juristas nazistas, definindo o
povo como elemento essencialmente apolítico, cujo Estado deve garantir a
proteção e o crescimento.
No entanto, de acordo com os juristas, só há uma maneira de tornar político este elemento impolítico:
pela igualdade de descendência e de raça, que irá distingui-lo do
estrangeiro e do inimigo. Isto não significa confundir o Estado nazista
com o Estado de Segurança contemporâneo: o que se precisa entender é
que, ao se despolitizar os cidadãos, eles não poderão sair de sua
passividade, uma vez que eles são mobilizados pelo medo contra um
inimigo estrangeiro que não seja somente externo (como no caso dos
judeus na Alemanha ou, agora, com os muçulmanos na França).
É neste contexto que devemos considerar o sinistro projeto de
privação da nacionalidade de cidadãos binacionais, que relembra a lei
fascista de 1926 sobre a desnacionalização dos “cidadãos indignos da
cidadania italiana” e leis nazistas na desnacionalização dos judeus.
Um terceiro ponto, cuja importância não devemos subestimar, é a
transformação radical dos critérios que estabelecem a verdade e a
certeza na esfera pública. Registra-se, acima de tudo, a um observador
atento às atas de crimes de terrorismo, a renúncia total do
estabelecimento da certeza jurídica.
Enquanto compreende-se, em um Estado de direito, que um crime só pode
ser comprovado por um inquérito judicial, sob o paradigma de segurança
devemos nos contentar com o que dizem polícia e os meios de comunicação
que dela dependem – ou seja, duas instâncias que sempre foram
considerados pouco confiáveis. Daí as imprecisões incríveis e as
contradições patentes nas reconstruções apressadas de eventos, que
conscientemente iludem qualquer possibilidade de verificação e
falsificação e que mais se parecem com fofocas do que com inquéritos.
Isto significa que o Estado de Segurança tem um interesse em que os
cidadãos – cuja proteção ele deve assegurar – permaneçam sem saber o
que os ameaça, pois incerteza e medo andam juntos.
A mesma incerteza que se encontra no texto da lei de 20 de Novembro
sobre o estado de emergência, que se refere a “qualquer pessoa em
relação à qual haja razões sérias para considerar que o seu
comportamento é uma ameaça à ordem pública e à segurança”. É bastante
óbvio que a frase “razões sérias para considerar” não tem nenhum
significado jurídico e, como refere-se à arbitrariedade de quem
“considera”, pode ser aplicada a qualquer momento e contra qualquer um.
No Estado de Segurança, essas formas indeterminadas, que foram sempre
consideradas pelos advogados como contrárias ao princípio da segurança
jurídica, tornam-se a norma.
Despolitização dos cidadãos
A mesma imprecisão e os mesmos equívocos retornam nas declarações de
mulheres e homens políticos, segundo os quais a França estaria em guerra
contra o terrorismo. A guerra contra o terrorismo é uma contradição em
termos, porque o estado de guerra é definido precisamente pela
capacidade de identificar com certeza o inimigo com o qual se deve
lutar. Na perspectiva securitária, o inimigo deve – pelo contrário –
permanecer vago, no interior, mas também no exterior, de modo que
qualquer um possa ser identificado como tal.
A manutenção de um estado de medo generalizado, a despolitização dos
cidadãos, a renúncia à efetividade da lei: essas três características do
Estado de Segurança, que bastam para perturbar os espíritos. Porque
isso significa, em primeiro lugar, que o Estado de Segurança para o
qual estamos escorregando faz o oposto do que ele promete. A segurança
significa falta de preocupação (sine cura) –, enquanto ele
mantém o medo e o terror. O Estado de Segurança é, por outro lado, um
Estado policial, porque pelo eclipse do Poder Judiciário, ele generaliza
a margem discricionária do polícia, a qual, em um estado de emergência
constante, torna-se cada vez mais soberana.
Por meio da despolitização gradual dos cidadãos, convertidos de
alguma forma transforma em terroristas potenciais; o Estado de
Segurança, finalmente lançou-se do campo conhecido da política, para se
dirigir a uma zona incerta, onde o e público e privado se confundem, e
onde é difícil definir as fronteiras entre eles.
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Fonte: http://outraspalavras.net/capa/agamben-o-flerte-do-ocidente-com-o-totalitarismo/
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