Marcelo Coelho
Jessé José Freire de Souza
Sociólogo, professor de Ciência Política na Universidade Federal Fluminense e
Presidente do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada)
Sociólogo, professor de Ciência Política na Universidade Federal Fluminense e
Presidente do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada)
O
problema da economia e da democracia brasileiras não nasce de supostas
deficiências culturais que tenhamos frente aos países desenvolvidos, mas
da incapacidade do sistema para integrar um vasto contingente de
excluídos, a quem faltam não apenas recursos materiais, mas equipamentos
básicos de educação, autoestima e cidadania.
Cientista político e presidente do Ipea rejeita, em novo livro, interpretações do Brasil como a de Sérgio Buarque de Holanda. Negando a ideia de que jeitinho e corrupção sejam exclusividades nacionais herdadas da colonização, aponta o "racismo de classe" e o abandono dos excluídos como raízes dos problemas do país:
1. Confusão entre o público e o privado,
2. compadrio,
3. herança católica portuguesa,
4. predomínio das relações pessoais e familiares sobre o sistema de mérito,
5. corrupção.
Ao contrário do que em geral se pensa, nada disso é característica exclusiva do Brasil.
Para JESSÉ SOUZA, presidente do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada),
vinculado ao Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, e doutor
em sociologia pela Universidade de Heidelberg (Alemanha), criou-se no Brasil, à esquerda e à direita, um legado de equívocos a partir do pensamento de Sérgio Buarque de Holanda (1902-82), que merece ser classificado como um verdadeiro "complexo de vira-lata".
Para o professor de ciência política na UFF (Universidade Federal Fluminense), que acaba de lançar "A Tolice da Inteligência Brasileira" [Leya, 272 págs., R$ 39,90, e-book, R$ 26,99], a intelectualidade do país tende a idealizar as sociedades capitalistas avançadas,
imaginando que em países como Estados Unidos ou França predomine a
plena igualdade de oportunidades e a completa separação entre o Estado e
os interesses privados. Mas o peso das origens familiares, do capital cultural acumulado ao longo de gerações, das pressões empresariais sobre o poder público está presente, diz ele, em qualquer país capitalista.
Autor de estudos sobre Max Weber (1864-1920) e Jürgen Habermas, Jessé Souza desenvolve, em "A Tolice da Inteligência Brasileira", um sofisticado argumento teórico para mostrar de que modo o conceito weberiano de "patrimonialismo" – fundamento das críticas de Raymundo Faoro
(1925-2003) à imobilidade do sistema social brasileiro e ao fracasso do
capitalismo e da democracia entre nós – não foi originalmente pensado
para ter aplicação nas sociedades modernas.
Ao
interesse teórico que marcou o início de sua carreira, Jessé Souza tem
acrescentado, nos últimos anos, um intenso trabalho de investigação
empírica, do qual resultaram livros como "Os Batalhadores Brasileiros: Nova Classe Média ou Nova Classe Trabalhadora?" (editora da UFMG, 2010), e "A Ralé Brasileira: Quem É e Como Vive" (editora da UFMG, 2009).
O problema da economia e da democracia brasileiras, argumenta Souza, não nasce de supostas deficiências culturais que tenhamos frente aos países desenvolvidos, mas da incapacidade do sistema para integrar um vasto contingente de excluídos, a quem faltam não apenas recursos materiais, mas equipamentos básicos de educação, autoestima e cidadania.
A lição de Florestan Fernandes, em especial de seu livro de 1964, "A Integração do Negro na Sociedade de Classes" (editora Globo), é das poucas que saem preservadas do implacável julgamento crítico de "A Tolice da Inteligência Brasileira", repleto de palavras duras contra Roberto DaMatta, Fernando Henrique Cardoso e outros mestres do pensamento social entre nós.
Eis a entrevista.
As
ciências sociais brasileiras – com influência no discurso da imprensa e
das classes médias – têm insistido no conceito de "patrimonialismo": a
prática de tratar bens públicos como se fossem propriedade de uns poucos
personagens com acesso permanente ao poder político. Você critica esse
conceito, chamando-o de "conto de fadas para adultos". Poderia explicar?
Jessé Souza: O conceito de patrimonialismo foi contrabandeado de Max Weber
sem a menor preocupação com a contextualização histórica que é
fundamental em Weber. Acho que isso está bem fundamentado no livro, mas a
"incorreção científica" não é a questão principal aqui.
O
patrimonialismo só sobrevive como um conceito que quer dizer alguma
coisa em um contexto que pressupõe o complexo de vira-lata do
brasileiro. Essa é a questão principal. É só porque se imagina, candidamente, que existam países onde não há a apropriação privada do Estado para fins particulares – os EUA para os liberais brasileiros seriam esse paraíso– que se pode falar de patrimonialismo como particularidade brasileira.
Imagine a meia dúzia de petroleiras americanas, que mandavam no governo Bush filho,
atacando o Iraque, com base em mentiras comprovadas, pela posse do
petróleo. E com isso matando milhões de pessoas e desestabilizando a
região até hoje com consequências funestas que todos vemos.
Quer
melhor exemplo de apropriação privada do Estado para fins de lucro de
meia dúzia sem qualquer preocupação com as consequências? A verdadeira questão é sempre em nome de que e de quem se apropria do Estado: para o lucro de meia dúzia – como foi a regra no Brasil e que é a real motivação do impeachment de hoje – ou para a maioria da sociedade.
Minha tese é a de que, no Brasil, o patrimonialismo serve para duas coisas bem práticas:
1) A primeira é demonizar o Estado como ineficiente e corrupto e permitir a privatização e a virtual mercantilização de todas as áreas da sociedade, mesmo o acesso à educação e à saúde, que não deveria depender da sorte de nascer em berço privilegiado;
2) Serve como uma espécie de "senha" de ocasião para que o 1% que controla o dinheiro, a política (via financiamento privado de eleições) e a mídia em geral possa mandar no Estado mesmo sem voto.
Não é coincidência que tenha havido grossa corrupção em todos os
governos, mas apenas com Getúlio, Jango, Lula e Dilma, governos com
alguma preocupação com a maioria da população, é que a "senha" do
patrimonialismo tenha sido acionada com sucesso. Somos ou não feitos de
tolos?
A
corrupção no Brasil, segundo muitos analistas, teria causas culturais,
originadas na tradição ibérica e católica. Qual a sua discordância com
relação a essa tese?
Jessé Souza:
Essa versão é falsa. Ela é "pré-científica", já que examina o fenômeno
da transmissão cultural nos termos do senso comum que pensa mais ou
menos assim: "Se meu avô é italiano, então também sou". Depende. A
língua comum facilita certas interações, mas o decisivo e o que
efetivamente constrói os seres humanos são as influências das
instituições, como a família, a escola, a economia e a política.
No
Brasil, desde sempre, temos a escravidão como uma espécie de
"instituição total" que determinou um tipo muito peculiar de família, de
religião, de poder político, de exercício da justiça, de produção
econômica, tudo isso muito distinto de Portugal, que desconhecia a
escravidão, a não ser de modo muito tópico e localizado.
A
Igreja Católica, por exemplo, tinha muito poder e continha o mandonismo
dos grandes senhores. Aqui o "senhor de terras e gente" mandava em tudo
sem peias. O Brasil desde o ano zero foi, portanto, uma sociedade singular, apesar de colonizada por Portugal.
Mas foi a partir desse engano que se criou uma ciência culturalista
frágil e superficial, baseada no senso comum que hoje ganha a mente e os
corações dos brasileiros de tão repetida por todos.
O mais importante é que essa falsa ciência que constrói o brasileiro como inferior
– posto que ligado ao "corpo" como emotividade e sexo, se opondo ao
europeu e americano que seriam o "espírito", intelecto e moralidade
distanciada – serve a interesses políticos. Esse racismo pela cultura só substitui o "racismo racial" clássico, mantendo todas as suas funções de legitimar privilégios.
Na dimensão internacional, a
intelectualidade brasileira dominante, colonizada até o osso, engole o
racismo cultural e torna ontológica a suposta inferioridade brasileira;
na dimensão interna e nacional, serve para separar "classes do
espírito", como a classe média "coxinha", que seria "ética", posto que
escandalizada com o "patrimonialismo seletivo" criado pela mídia, e as
classes populares, tidas como "amorais", posto que guiadas pelo
interesse imediato.
Essa espécie de "racismo de classe", falso de fio a pavio, é o fio condutor do empobrecido debate público brasileiro.
Você
é muito crítico com relação a um dos formuladores desse "culturalismo",
Sérgio Buarque de Holanda. As teses de "Raízes do Brasil" foram
expostas em 1936. Será que ao menos naquela época a crítica a um Estado
sem meritocracia, baseado no favoritismo e nas relações familiares, não
era correta?
Jessé Souza: Eu gostaria antes de tudo de saber onde
fica esse país maravilhoso, formado apenas pelo mérito, que não
favorece ninguém e onde relações familiares não decidem carreiras.
Quem conhecer, por favor, me avise. Eu passei boa parte de minha vida
adulta em países ditos "avançados" e nunca conheci um assim. A própria crença de que exista algo assim prova como o racismo e a "vira-latice" tomou conta de nossa alma.
Sérgio
Buarque de Holanda é o pai desse liberalismo amesquinhado e colonizado
brasileiro. É necessário sempre separar a "pessoa" da "obra" e de seus
efeitos sociais, que são o que importa. O liberalismo é fundamento importante da democracia, mas existem várias maneiras de ser liberal, e a nossa maneira é a pior possível.
Buarque
criou a semântica do falso conflito que permite encobrir todos os
conflitos sociais verdadeiros entre nós e que nos faz de tolos até hoje.
A absurda separação entre um Estado demonizado como corrupto e
ineficiente e o mercado como reino de todas as virtudes, quando os dois
no fundo são indissociáveis, só serve como mote para a meia dúzia que
manda no Brasil e controla o dinheiro, a política e a informação via
mídia virar o país de ponta-cabeça só para ter mais dinheiro no bolso.
Como
não se pode dizer que o que se quer é uma gorda taxa Selic e o acesso
"privado" às riquezas brasileiras, como petróleo e ferro,
para essa meia dúzia, então diz-se que é para acabar com o "mar de
lama", sempre só no Estado, se ocupado por partidos populares, e sempre
seletivamente construído via mídia conservadora em associação com as
instituições que querem aumentar seu poder relativo vendendo-se como
"guardiãs da moralidade pública".
É esse discurso que transforma milhões de pessoas inteligentes em tolas. Essa parcela da classe média conservadora é explorada por esse 1% que lhe vende os milagres da privatização brasileira:
a pior e mais cara telefonia do globo, por exemplo, campeã de
reclamações. De resto, todos os bens e serviços produzidos aqui são
piores e mais caros. Mas dessa espoliação da classe média por um mercado superfaturado que vai para o bolso do 1% mais rico ninguém fala.
O
filho do "coxinha" quer ter acesso a uma boa universidade pública, e o
avô dele, quando está doente e o plano não paga, tem que ir ao SUS para
doenças graves e tratamentos caros. Um Estado fraco só serve ao 1% mais rico que pode ficar ainda mais ricoembolsando a Petrobras a preço de ocasião. O "coxinha" só é feito de tolo.
A
classe média "coxinha" que sai às ruas tirando onda de campeã da
moralidade, por sua vez, explora e rouba o tempo das classes excluídas a
baixo preço para poupar o tempo do trabalho doméstico e investir em
mais estudo e mais trabalho valorizado e rentável.
Luta
de classes não é só cassetete na cabeça de trabalhador. É uma luta
silenciosa e invisível (para a maioria) que implica monopólio de
recursos para as classes privilegiadas e condenações à miséria eterna
para a maioria dos 70% que não são da classe média ou do 1% mais rico. A
fanfarra do patrimonialismo e da corrupção só do Estado serve, antes de
tudo, para tornar essas lutas invisíveis.
Como você vê a obra de Roberto DaMatta nesse contexto?
Jessé Souza: A
obra dele, que reflete fielmente as discussões de botequim de todo o
Brasil, foi uma tentativa de "modernizar" Buarque. O mais irritante é
que esse pessoal "tira onda" de crítico ao repetir as platitudes do
Estado patrimonial e do "jeitinho" como prova da queda ancestral do
brasileiro médio para auferir vantagens por relações de conhecimento com
poderosos.
A tese central de DaMatta, que se tornou uma espécie de "segunda pele" do brasileiro médio, é a de que a hierarquia social brasileira é fundada no capital social de relações pessoais.
Essa seria a peculiaridade brasileira que viria de épocas ancestrais.
Desde que a gente reflita duas vezes, essas teses caem como castelo de
cartas. Se não, vejamos.
O
leitor que nos lê conhece alguém com acesso a relações pessoais com
pessoas poderosas sem, antes, ter capital econômico ou capital cultural? Se o leitor conhecer, então DaMatta tem razão na sua tese do jeitinho.
Como desconfio de que o leitor não conheça ninguém assim, então o que DaMatta faz é tornar invisível a distribuição injusta de capital econômico e cultural e, com isso, sepultar qualquer reflexão sobre a origem social de toda desigualdade.
Para
completar supõe – no fundo a cândida e infantil crença nos Estados
Unidos como paraíso na terra – que existam países onde o capital em
relacionamentos não decida previamente a vida da maior parte das
pessoas. Teoria mais frágil e colonizada impossível. Mas é ela que faz a
cabeça do brasileiro médio hoje.
Ao
lado do "culturalismo conservador", você critica o economicismo de raiz
marxista. Quais as suas restrições a esse modelo explicativo?
Jessé Souza: É que o capitalismo não é só troca de mercadorias e fluxo de capital. É preciso, por isso, superar o economicismo, seja liberal, seja marxista. O capitalismo é também um sistema social e moral que avalia todo mundo e que humilha e despreza uns e enobrece e legitima a felicidade de outros.
É
essa hierarquia social "invisível" (mas cuja realidade o estudo
empírico pode mostrar) que diz o que é certo e errado, verdadeiro ou
falso. O capitalismo é, portanto, um sistema de classificação e
desclassificação que predetermina quem ganha e quem perde e legitima
esses lugares.
No
livro, que resume meus 35 anos de trabalho teórico e empírico sobre
esses temas, procurei mostrar que esses sistemas de classificação são os
mesmos para Brasil e Argentina, do mesmo modo como atuam na França ou
na Inglaterra.
A peculiaridade do Brasil é a tolerância com o abandono da classe dos excluídos que chamo provocativamente de "ralé". Todos
nossos problemas – insegurança, baixa produtividade, serviços públicos
de má qualidade – advêm do esquecimento dessa classe.
A corrupção existe em todos os países, você diz. Mas certamente há diferenças de grau entre a Dinamarca, digamos, e o Brasil.
Jessé Souza: A
corrupção é endêmica ao capitalismo. Se corrupção for enganar o outro,
então o capitalismo é certamente mais engenhoso que qualquer outro
sistema social.
O
que outros países como a Dinamarca ou Alemanha não têm é a CORRUPÇÃO
"PEQUENA" – a única que o cidadão feito de tolo enxerga no cotidiano –
do agente público mal remunerado, como os policiais entre nós. Existem também arranjos institucionais mais ou menos bem-sucedidos.
O
Brasil ganharia com o financiamento público de eleições e com uma
reforma política que tornasse mais transparente a relação com a economia. É nisso que falta avançar. Mas é
preciso mesmo ser muito ingênuo para não perceber que a "GROSSA
CORRUPÇÃO", a que drena capitais e privilégios para uma pequena minoria,
é universal. Dilma tentou comprar essa briga no Brasil, enfrentando
o grande capital especulativo. Hoje fica claro que esse pessoal não a
perdoou pela ousadia.
Suponha-se
que Sérgio Buarque de Holanda, Raymundo Faoro e Roberto DaMatta estejam
errados ao atribuir a uma particularidade brasileira, a um vício
cultural católico português a inexistência de um sistema de mérito real,
de uma real impessoalidade do Estado e de uma legítima situação de
igualdade de oportunidades no Brasil. Mesmo que essa situação não
corresponda à realidade de um país como os Estados Unidos, que esses
autores idealizam, será que essa crítica não expressa um desejo de
transformação importante? Em vez de anular o valor dessa crítica,
poderíamos alargar sua dimensão estendendo-a a outros países.
Jessé Souza: O
único caminho seguro, na vida pessoal ou na coletiva, é a verdade. Não
se pode pensar uma sociedade e suas contradições alargando uma concepção
falsa desde os pressupostos. Nem há razão para isso.
O livro mostra, creio eu, que é possível um novo caminho para a percepção do Brasil e de suas singularidades.
Um caminho que não vise apenas preservar os privilégios absurdos de uma
pequena elite socialmente irresponsável, legitimados por uma
pseudociência, mas que possa, inclusive, recuperar a inteligência viva dessa mesma classe média que é hoje manipulada a agir contra seus interesses.
NO BRASIL SOFREMOS COM PÉSSIMOS SERVIÇOS DE EMPRESAS PRIVADAS Como é o caso da telefonia celular: cara e de má qualidade!!! |
Você
diz que as classes médias, predominantes nas manifestações de junho de
2013, são feitas de tolas quando compram automóveis com o triplo da taxa
de lucro dos países europeus, pagam taxas de juros estratosféricas e
usam serviços de celular entre os mais caros e ineficientes do mundo.
Mas não teriam razão, do ponto de vista de seus interesses, ao reclamar
de impostos que são uma parcela enorme do preço de bens como veículos
automotores e geladeiras?
Jessé Souza: A estrutura de impostos no Brasil tem de ser efetivamente revista
no sentido de evitar impostos indiretos em produtos e serviços e
atingir mais a renda diferencial, e, muito especialmente, o patrimônio.
Desse ponto de vista, ela pode ter um pouco de razão.
Mas o ponto mais importante para a tolice da classe média é que o
Estado funciona como arrecadador de impostos, antes de tudo, para
bancar e garantir a drenagem de recursos arrecadados da sociedade como
um todo para a meia dúzia de Jessé Souza:s [membros das classes mais ricas e abastadas da sociedade que exerce o poder político e econômico] que manda na economia, na política via financiamento de eleições e na mídia.
O PAGAMENTO DE JUROS para essa meia dúzia e seus colegas estrangeiros –
o único aspecto que ninguém nem sequer pensa em cortar em ocasiões de
crise – compromete, por exemplo, o investimento em educação e saúde de qualidade para todos.
O
Jessé Souza: vai aos Estados Unidos se operar se for preciso e manda o
filho estudar em Miami ou na Suíça, como acontece realmente hoje em dia.
A classe média que sai às ruas para apoiá-lo precisa do SUS quando a
chapa esquenta e só conta com a universidade pública aqui mesmo para o
filho. Ao mesmo tempo, paga os serviços e produtos mais caros e de menor
qualidade relativa do globo no nosso mercado superfaturado. Esse
"extra" também é um imposto que sai da classe média direto para o bolso
da elite econômica. Mas dele nunca se fala.
Essa
classe média, portanto, é espoliada pela elite por mecanismos tanto de
Estado quanto de mercado, e é ela que depois sai às ruas para defender
os interesses dessa mesma elite usando o espantalho seletivo da corrupção apenas estatal.
Essa é a real história da tolice pré-fabricada entre nós.
O
sentimento anti-Estado e pró-mercado tende a ser conservador e perverso
no Brasil. Mas não poderíamos acusar a esquerda, em especial o PT, de
um excessivo "estatismo", não no sentido econômico, mas no de considerar
que a transformação social poderia vir de uma simples conquista do
poder político pelo partido de esquerda? Em vez de privilegiar formas de
auto-organização e de capilarização do partido nas periferias, o PT
procurou agir "a partir de cima", e não "a partir de baixo". Como
resultado, vemos nas periferias todo tipo de igrejas evangélicas, mas
nenhum núcleo ou sede distrital de partidos políticos. O preço para
assumir o poder sem essa organização foi a aliança com os setores mais
retrógrados da política brasileira, como Collor, Maluf, os ruralistas e a
bancada evangélica. O "estatismo" de esquerda, nesse sentido, não seria
uma repetição para pior do populismo? O petismo não seria também um
conto de fadas para adultos?
Jessé Souza: O
principal erro do PT para mim foi duplo e reflete sua dependência da
narrativa liberal tão importante nele quanto em um partido conservador
da elite como o PSDB. Esse foi um dos temas centrais do livro: mostrar
que a ideologia liberal amesquinhada dominou também a dita
"esquerda", colonizando a tradição social-democrata ou socialista
democrática.
O PT teria que ter criado uma narrativa independente mostrando a importância do passo a passo da ascensão social possível
e mostrando as dificuldades também – sem cair, por exemplo, na fantasia
da nova classe média, que gerou expectativas desmedidas.
Essa narrativa poderia ter sido uma versão politizada, mostrando a importância da política inclusiva e da "vontade política" para a mobilidade social, de modo a se contrapor à leitura individualista da ascensão social da religião evangélica.
Mas, para isso, teria
sido necessário tocar no nó górdio da dominação social no Brasil, que é
o papel de "partido político da elite" assumido pela IMPRENSA
CONSERVADORA desde o golpe contra Getúlio. É ela, afinal, quem chama
a classe média moralista e feita de tola às ruas e é ela que manipula
seletivamente e a seu bel-prazer o tema da corrupção como única moeda
dos conservadores para mascarar seus interesses mais mesquinhos em
pseudointeresse geral. É ela quem tira onda de "neutra", quando apenas obedece ao dinheiro.
O medo desse confronto foi a real causa do que agora acontece.
Em uma sociedade midiática, onde toda informação vem de cima para
baixo, tem que existir o contraditório, a opinião alternativa, senão o
voto do eleitor não é esclarecido nem autônomo, ou seja, rigorosamente,
não tem democracia. Nesse sentido estamos mais perto da Coreia do Norte
do que da Inglaterra ou da Alemanha. Confiar apenas nos "movimentos sociais" nesse contexto é ingenuidade.
Esses movimentos também estão sob a égide do discurso único da mídia
conservadora. Essa é para mim a real razão do fracasso relativo do
projeto petista.
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Fonte: Folha de S. Paulo – ilustríssima – Domingo, 10 de janeiro de 2016 – 02h04 – Internet: clique aqui.
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