Luiz Felipe Pondé*
Anos atrás, um amigo me disse que as pessoas com menos espiritualidade
que ele conhecia eram os padres. Não quero aqui passar um juízo
universal sobre uma classe de pessoas que se dedica, como muitos padres o
fazem, a causas de grande valor num mundo sem Deus como o nosso. Mas
meu amigo, sim, tinha alguma razão no que dizia. Se não no seu sentido
total, pelo menos num específico: refiro-me ao pragmatismo da fé que
caracteriza muitos dos "profissionais da religião", para além dos padres
católicos.
Vou fazer uma analogia para ficar mais claro o que quero dizer e depois
volto ao tema do pragmatismo religioso. Refiro-me a vícios profissionais
de comportamento.
Não acho que esses vícios profissionais de comportamento sejam traços
universais nas duas categorias profissionais que vou citar como analogia
para chegarmos ao que estou chamando aqui de pragmatismo da fé.
Muita gente costuma dizer que o cotidiano dos advogados acaba por
produzir neles um certo ceticismo com a "natureza humana", na medida que
eles veem famílias se destruírem por conta de inventários, empregados
processarem patrões generosos ou cônjuges virarem inimigos mortais após
anos de vida gratificante e de juras de amor trocadas no calor do leito.
Esse ceticismo ou cinismo seria um vício profissional de comportamento
decorrente do acúmulo de "evidências" contra a fé na natureza humana.
É comum pessoas se referirem a médicos como pessoas frias que não se
sensibilizam com o sofrimento humano. Causa suposta: um cotidiano de
repetidos casos de sofrimento físico grave em que a "frieza objetiva" no
trato com o paciente seria necessária. O acúmulo de experiências desse
tipo levaria os médicos ao vício profissional de comportamento descrito
como "frieza" com o sofrimento humano. Não estou levando em conta aqui o
agravamento deste vício devido ao trabalho sem condições decentes ou
sem perspectivas de melhoria financeira dos médicos que atendem centenas
de pacientes no SUS ou em seguros de saúde baratos.
Portanto, o vício profissional de comportamento seria fruto de um cotidiano que se impõe à pessoa que o exerce.
E aí chegamos ao desencanto do meu amigo com os padres, desencanto este
que acredito poder aplicar também aos demais profissionais da religião,
isto é, os ministros religiosos.
Espera-se profundidade moral e espiritual em ministros religiosos. Não
vou discutir se essa expectativa é ingênua, mas assumo que a existência
dessa expectativa é, de alguma forma, consistente com a visão que se tem
das religiões hoje: sistemas culturais a favor do "bem" e de valores
não materiais. Grosso modo, esta seria uma definição básica de
profundidade moral e espiritual.
Minha hipótese é que nossa visão da religião é que está errada. A
religião, inclusive para sustentar sua suposta função de defensora do
"bem" e de valores não materiais, precisa de sustentabilidade econômica,
administrativa e de recursos humanos . Daí que os ministros religiosos
são, na maior parte do tempo, gestores econômicos, administrativos e de
recursos humanos.
Para começo de conversa, ministros religiosos competem dentro de seus
mercados de fiéis. São obrigados a conquistar e manter fiéis investindo
em sua fé e, por consequência, investindo na "máquina da fé" que são as
instituições religiosas, pouco importam quais. Os serviços religiosos
têm custos, mesmo um pai de santo precisa de verba para comprar bichos
para os sacrifícios que pede o candomblé.
Afora isso, tudo custa luz, água, manutenção, logística. Deuses são
baratos, mas seus representantes no mundo dos mortais custam caro.
Meu amigo se assustava com o pragmatismo dos padres. De fato, o
pragmatismo dos ministros religiosos pode chocar quando imaginamos que o
"mundo divino" e de seus funcionários seja mesmo espiritual e não
material como qualquer "negócio".
"Elevação moral e espiritual" ocupa lugar no espaço como tudo mais. Ver
como o pertencimento ao corpo profissional das religiões pode fazer de
você uma pessoa fria e pragmática pode ser mesmo uma decepção para os
mais crentes.
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* Filósofo. Escritor. Prof. Universitário.
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/luizfelipeponde/2016/01/1728079-pragmatismo-da-fe.shtml
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