Adriano Campos*
As estimativas variam entre 225% a
356% do PIB mundial. A gigantesca proporção do setor financeiro, assim
como a sua composição, refletem as transformações do capitalismo mundial
na última década: desde o ano 2000, o valor dos títulos de dívida
pública emitidos pelo Estados quase que triplicou, sendo notória a
crescente falta de investimento
na economia real. A consequência é uma polarização social crescente,
cujos sinais estão à nossa disposição: enquanto a Forbes celebra os 30 melhores gestores
globais com menos de 30 anos, os números da OIT confirmam o direito ao
trabalho como uma miragem para toda uma geração de novos trabalhadores.
Ao longo da história, nem à boleia do Deloren conduzido por Marty Mcfly (Regresso ao Futuro)
conseguiríamos recuar a um mundo com uma concentração de renda tão alta
como a de hoje - apenas comparável à realidade descrita nos romances de
Charles Dickens ou Victor Hugo. Mas em meio à catástrofe provocada por
este sistema predatório, ouvimos, com cada vez mais frequência, vozes
improváveis convocando a uma militância pela alteração do paradigma.
Da Fundação Gates ao Senhor Facebook
O primeiro aviso veio de Warren Buffet, em 2006, ao afirmar que "Há
uma luta de classes, certo, mas é a minha classe que está a ganhar".
Nesse mesmo ano, o magnata da finança tentou equilibrar a balança ao
doar 85% da sua fortuna a cinco fundações, entre as quais a fundação
Bill e Melinda Gates. Criada em 1997, a maior fundação filantrópica do
mundo, que gere um valor equivalente ao PIB da Lituânia, tem-se
destacado pelo combate a doenças, como a malária e a tuberculose, e pelo
incentivo à escolarização de crianças pobres nos E.U.A. Os prémios
internacionais pela ação meritória multiplicam-se enquanto Melinda Gates
figura em todas as listas de mulheres mais influentes do planeta. Mas a
filantropia praticada pelo casal Gates e por Buffet é bem diferente da
tradicional caridade levada a cabo por outros milionários no passado
(Rockefeller, Carnegie, Ford). Como refere Nicole Aschoff, editora da revista Jacobin,
o "filantrocapitalismo" dos Gates é muito mais ambicioso, "pois procura
disciplinar as forças do capitalismo que os fizeram fabulosamente ricos
e assim ajudar o resto do planeta. Os filantrocapitalistas pensam que
soluções lucrativas para os problemas sociais são mais eficientes, pois
dão ao capital privado uma razão para se importarem."
Um exemplo ilustrativo desta visão é o desenvolvimento de vacinas
para os países pobres, fortemente impulsionado pela Fundação Gates nos
últimos anos. Ao contrário do que muitos possam imaginar, não se trata
de ajudar diretamente estes Estados a desenvolver os seus recursos
farmacêuticos, garantindo serviços nacionais de saúde com qualidade.
Como resume Melinda Gates,
"Se conseguirmos estimular as companhias farmacêuticas a criar vacinas
através de parcerias público-privadas. Se conseguirmos garantir-lhes um
mercado de milhões de crianças que usem essas vacinas. Se conseguirmos
esse comprometimento com o mercado, sabendo que haverá uma procura
garantida, nós podemos incentivá-los com os dólares necessários para de
facto criarem essas vacinas". Uma fórmula elucidativa para um ativismo
desinteressado: enquanto a pobreza e o atraso causadores de muitas
destas doenças permanecerem, o pragmatismo do mercado e dos dólares
podem ajudar a atenuar o problema.
Recentemente, Mark Zuckerberg juntou-se ao clube dos
filantrocapitalistas, anunciando a doação de 99% da sua fortuna. No
caso, as ações do Facebook irão, não para uma fundação, mas para uma
companhia LLC (empresa de sociedade limitada), o que permitirá a
Zuckerberg manter operações de venda e investimento pagando menos
impostos. À semelhança de Bill Gates - criticado por ter criado a sua
fundação no auge do processo antitrust contra a Microsoft nos
E.U.A - Zuckerberg foi acusado de usar este mecanismo como autopromoção
da sua imagem. Esse fator poderá desempenhar uma importância
considerável na ação individual destes multimilionários, mas o
fortalecimento do filatrocapitalismo representa uma alteração mais
profunda do sistema, que não devemos ignorar.
Mercado disciplinado ou totalitarismo financeiro?
A existência de Organizações Não Governamentais (ONG) e o alargamento
da sociedade civil na provisão das necessidades sociais não é uma
novidade na história do capitalismo. Como referem Matthew Bishop e Michael Green,
o crescimento da filantropia parece estar associado a todos os períodos
em que o crescimento massivo da riqueza é acompanhado pelo aumento das
desigualdades sociais. Uma válvula de escape que protege o sistema de
pressões sociais e políticas. O que constitui a novidade é, por um lado,
a dimensão atual destas organizações - a Amnistia Internacional, por
exemplo, tem um orçamento anual superior ao Conselho dos Direitos
Humanos da ONU - e, por outro, o facto destas se expandirem num contexto
de crescimento medíocre da economia nas últimas décadas. A explicação
para esta dinâmica, refere Phil McMichael,
reside no esgotamento do modelo de desenvolvimento nacional
implementado por muitos países subdesenvolvidos, assente na soberania
económica e na libertação da dependência externa, que deu lugar, a
partir da década de 80, ao "projeto de globalização", promotor dos
processos de privatização e de redução dos serviços públicos. Este giro
abriu as portas à filantropia institucional e transferiu poderes
soberanos para redes e organizações internacionais que não estão
submetidas a um escrutínio democrático.
Em Portugal, o apreço da direita pelo mercado eleitoral das IPSS garantiu, nos últimos anos, um retorno em força da caridadezinha institucional, pelo que a expressão deste filantrocapitalismo revigorado e interventivo fica reduzida ao esforço ideológico da Fundação Francisco Manuel dos Santos e às suas ramificações nos meios de comunicação
Quando até o Estado Chinês, tradicionalmente avesso à caridade social, se prepara para facilitar uma filantropia livre de impostos,
percebemos a dimensão do fenómeno. E pese embora os avanços efetivos de
alguns destes empreendimentos, a ação dos filantrocapitalistas pode não
estar assim tão distante das práticas que alimentam a finança global.
Segundo Max Haiven,
uma das características do "totalitarismo financeiro" em que vivemos é a
captura das subjetividades e a reprodução de práticas sociais
submetidas à especulação. Assim acontece com a quotização coletivas dos
salários para a segurança social, cujo valor final, em cada vez mais
países, termina a ser jogado em bolsa, ou com a escolarização, não mais
apresentada como um bem coletivo ao serviço do conhecimento comum mas
como um ativo pessoal necessário a quem queira prevalecer no mercado de
trabalho, mesmo que adquirido às custas de pesados empréstimos
bancários.
Em 2010, não por acaso, Mark Zuckerberg, Oprah Winfrey e o Governador republicano de Nova Jersey juntaram-se para promover um modelo inovador
nas escolas públicas de Newark. O plano, generosamente financiado em
100 milhões de dólares por Zuckerberg, previa a introdução de métodos
empresariais no ensino, desde uma avaliação agressiva dos professores, a
cooptação de gestores externos sem ligação à comunidade e a
hostilização dos sindicatos. Cinco anos depois, o projeto é um rotundo
fracasso, com resultados dececionantes e uma desorganização geral da
rede pública de ensino da cidade. Este exemplo demonstra o perigo de
submeter a esfera pública ao capital privado, dando-lhe, ainda para
mais, um poder de gestão e decisão na condução dos serviços que devem
estar à disposição de todos.
Em Portugal, o apreço da direita pelo mercado eleitoral das IPSS
garantiu, nos últimos anos, um retorno em força da caridadezinha
institucional, pelo que a expressão deste filantrocapitalismo revigorado
e interventivo fica reduzida ao esforço ideológico da Fundação
Francisco Manuel dos Santos (FFMS) e às suas ramificações nos meios de
comunicação (como é o exemplo do Observador), o que já não é
coisa pouca. O problema, aqui como lá fora, é que a ideia de um mercado
norteado pelo lucro (pois há, com certeza, mercados não capitalistas) e
disciplinado pela força de beneméritos milionários, em que o cidadão se
transforma num cliente exigente e participativo, só faz sentido se
esquecermos que na origem de muitos problemas sociais estão os meios
pelos quais estas fortunas foram acumuladas. A FFMS teria a capacidade
financeira de ditar políticas e programas ideológicos caso o seu
patrono, o dono do Pingo Doce, fosse obrigado a pagar os impostos em
Portugal (e não na Holanda) e a praticar salários decentes?
Os filantrocapitalistas parecem ter vindo para ficar, com toda a sua
influência e exuberância, com o seu elogio do mercado e o encantamento
da sua riqueza pessoal como legitimidade para uma ação política
pragmática. São parte do problema.
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* Sociólogo.
Fonte: http://www.esquerda.net/opiniao/os-filantrocapitalistas-vao-salvar-o-mundo/40533
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