Mauro Luis Iasi*
“Seria tudo o que vejo
natural, e estaria eu doente,
ao desejar remover o irremovível?
Li canções dos egípcios, dos homens que construíram as pirâmides.
Queixavam-se dos seu fardo e perguntavam
Quando terminaria a opressão. Isso há quatro mil anos.”
– BERTOLT BRECHT
ao desejar remover o irremovível?
Li canções dos egípcios, dos homens que construíram as pirâmides.
Queixavam-se dos seu fardo e perguntavam
Quando terminaria a opressão. Isso há quatro mil anos.”
– BERTOLT BRECHT
O tempo
flui indiferente às mazelas e pequenas catástrofes daqueles que o criaram. Mais
uma dimensão daquilo que se estranha e volta contra seus criadores como uma
força hostil que parece controlá-los, mais uma vereda do fetichismo e da
reificação, mais uma face de tempos sombrios que nos couberam atravessar.
O tempo é
uma criação humana. Na natureza as coisas simplesmente são. Elas têm seus
ciclos de nascimento vida e morte, acendendo e apagando segundo a necessidade,
nos dizia Heráclito de Éfeso. No entanto, as coisas, orgânicas ou inorgânicas,
existem e percorrem seus caminhos sem a dimensão do tempo – este é uma
construção do ser social na medida em que não apenas existe, mas ousa produzir
as condições de sua existência rompendo os limites das barreiras naturais,
tornando-se um ser histórico e social.
Em nossas
consciências imediatas o tempo se apresenta como único, como um fluxo dentro do
qual se dá a trajetória das coisas e dos seres, de maneira que nossa impressão
é que existe fora de nós, que dias e noites se sucedem, formando a carne dos
dias que fenecem, somando-se em semanas e meses, até que anos e décadas
anunciam a proximidade do fim inexorável. Tal fluxo existe em si e nós nos
jogamos em sua corrente para viver o que nos cabe. Pulamos de onde? Bom, João
Ubaldo Riberio em seu Viva o Povo Brasileiro, descreve a curiosa tese do
“puleiro das almas”, no qual aguardamos nossa vez de entrar na dimensão
temporal e mundana. Parece-me tão pertinente como qualquer outra tese religiosa
ou filosófica.
Marilena
Chauí, que sempre nos trás elementos interessantes, nos lembra que na
Antiguidade se concebia duas dimensões: a Cósmica como um ciclo perene e
eterno, portanto atemporal, e um tempo dos seres, linear e finito, seja dos
seres, seja das cidades e impérios (Brasil: Mito fundador e sociedade
autoritária, Perseu Abramo, 2000, p. 70). Trata-se da famosa diferenciação
de uma dimensão temporal e mundana e outra atemporal e divina, própria da
consciência social medieval.
De
qualquer forma, nossa consciência parece nos indicar que estamos dentro de um
fluxo que se encontra dentro de outro, que, por sua vez, encontra-se dentro de
outro. Vivemos os dias que fluem dentro de períodos históricos que fluem dentro
de séculos e milênios que constituem as eras. O que diferencia estas dimensões
não é apenas o aspecto quantitativo (dias, anos, milênios), mas há uma
diferença de ritmo e de substância que nos interessa. O tempo cotidiano não
apenas se dá no ritmo das horas, dias, semanas, meses e anos com os quais tecemos
a trama que constitui nossa vida, mas agimos nesta dimensão temporal premidos
pela imediatez, pela ultrageneralização, pela heterogeneidade das esferas do
trabalho, da linguagem, da vida privada. Como nos demonstra José Paulo Netto,
seguindo as pistas de Heller e Lukács, não há um ser humano sem vida cotidiana,
“enquanto espaço-tempo de constituição, produção e reprodução do ser social, a
vida cotidiana é ineliminável” (José Paulo Netto e Maria do Carmo B. De
Carvalho, Cotidiano, conhecimento e crítica, São Paulo, Cortez: 2012).
No
entanto, apesar de “insuprimível” o cotidiano é histórico. Isto é: não é sempre
o mesmo, pois trata-se da constituição, produção e reprodução de uma forma
determinada de vida, uma vida histórica, portanto, nos remetendo a outro ritmo,
aquele dos períodos históricos de constituição dos modos de produção, que não
pode ser concebido a não ser em séculos e milênios, como pensam Marx e Engels.
Ocorre que este tempo histórico tem também suas mediações, na história concreta
das formações sociais, da dinâmica da luta de classes, no jogo político do
nascimento, vida e morte dos Estados e formas de governo, na constituição de
uma superestrutura política e jurídica, na conformação de uma determinada
consciência social, de uma cultura e de suas múltiplas expressões.
Esta
segunda dimensão, dentro da dimensão histórica mais geral, encontra sua
fronteira com o tempo cotidiano em conjunturas determinadas. Como se
visualizássemos uma linha que a todo momento pudesse cortar o corpo da história
com um eixo que tem sua raiz numa certa conjuntura na qual os homens e mulheres
vivem seu cotidiano, transpasse um período histórico da formação social e
corresponda a um ponto determinado do desenvolvimento do modo de produção que
os inclui.
A
simultaneidade destas três dimensões temporais, ainda que não seja percebida na
“superficialidade extensiva” da consciência imersa no cotidiano, atua de forma
bem objetiva no acontecimento histórico.
Uma
grávida e seu marido marceneiro buscam uma manjedoura onde possam parir o
messias. Fazia frio na noite do deserto. Estrelas gélidas e indiferentes
pontuavam o firmamento, enquanto apenas uma parecia indicar o caminho. O casal
sentia fome e frio – alegria pelo filho que vinha, mas apreensão pela situação.
Esta trama não bóia no nada, tem local e tempo. Estamos na Palestina, num certo
momento do desenvolvimento do Império Romano que impunha ali seu domínio,
através do Rei de Israel – Herodes – garantido por poderosa força militar
enviada por Antônio, imperador romano. Seu governo consolidara-se no ano 31 a.
C.
Não
importa se o calendário, confuso que estavam os tempos, passaria pelo ano zero
com o nascimento de tão esperada criança, começando a contagem de novo. As três
dimensões do tempo se chocavam naquela noite. A família pobre a espera do
rebento, as dores do parto e o orgulho esperançoso do pai; o governo de Herodes
e seus mega empreendimentos, sua corte de grande influência helênica de cultura
refinada, havia chegado ao poder derrubando mais de um século da dinastia hasmonéia,
angariando simpatias e antipatias por sua proximidade com os romanos.
A
grandiosidade de seus monumentos fariam parecer eterno seu poder, como Roma, no
entanto, Herodes morrerá cerca de quatro anos depois e Roma sucumbirá e
dolorosa fragmentação até a deposição do último imperador romano em 476 d. C.,
enquanto a pobre criança perseguida, presa quando adulta, torturada e executada
como criminoso na cruz ao lado de ladrões, será a base de uma religião que
suplantaria a grandiosidade dos templos de Herodes e o Império que executou o
homem para tornar suas ideias imortais.
Ainda que
a exata conexão dos fatos e das dimensões temporais só possam ser averiguadas
com o próprio desenvolvimento da história, ele estavam lá, presentes no momento
dos acontecimentos cotidianos. Herodes caminhava já para sua morte, assim como
germinava no grandioso Império Romano a decadência que levaria à sua queda.
Vivemos,
já dizia Hegel ao seu tempo, sempre a morte de um mundo no momento em que
germina outro, mas no âmbito da vida cotidiana temos a ilusão da eternidade do
presente, sempre foi assim e sempre será, grita nossa consciência prenha de
ultrageneralização. É difícil separar as pedras que caem em ruínas, pois são as
mesmas que edificam as novas fundações daquilo que se constrói. São lamentáveis
os patéticos esforços daqueles que se agarram às ruínas e zombam dos esforços
dos construtores, assim como é muito difícil desprender-se da miséria dos
tempos para ver além da noite que parece eterna.
Sempre me
causou estranhamento a persistência daqueles que moram perto de vulcões ativos.
Constroem suas casas, cultivam a terra e erguem suas cidades, criam seus
filhos, ao lado do caminho da lava que ainda há pouco corria fluida e
incandescente. Correm desesperados ao menor tremor e ameaça da gigante boca de
fogo e destruição, mas logo voltam para reconstruir suas vidas em terras
renovadas e férteis. Mas, talvez, assim sejamos todos nós, este estranho ser
que se denomina de humano. Somos construtores de futuras ruínas, nascendo agora
para morrer depois, querendo acreditar ser eterna a vida que temos, o amor que
encontramos, os laços que nos unem. Talvez.
Toda
crise é enorme para aquele que a vive. Maldizemos nosso tempo, a desgraça da
vida, a frustração amorosa como sendo a porta que sela o destino de nossas
vidas… nunca mais serei feliz… mas, a vida segue. Nem sempre nós podemos fazer
o mesmo.
Aceito o
caráter insuprimível do cotidiano, mas a história que se abre é um fluxo feito
por nós, ainda que alienada, de forma que da mesma maneira que produzimos a
história que nos aprisiona na reificação, podemos igualmente, produzir as
circunstâncias que podem nos emancipar. Talvez.
De uma
coisa temos certeza, estes tempos vão passar e outros virão. Nossa decisão é
nos inscrever nas fileiras daqueles que os construirão na perspectiva da
emancipação humana. Uma das vantagens de se pensar com base no tempo histórico
é essa. Tal perspectiva não tem o poder de eliminar as mazelas do cotidiano,
mas nos permite olhar para elas e vislumbrar a exata estatura das coisas. E
elas, meus caros, hoje em dia, são pequenas… muito pequenas.
***
* Mauro
Iasi é professor adjunto da
Escola de Serviço Social da UFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e
Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB. É
autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002) e colabora com os livros Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram
as ruas do Brasil e György Lukács e a emancipação humana (Boitempo, 2013), organizado por Marcos Del Roio. Colabora
para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.
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