A maioria prefere não pensar no que acontece aos nossos corpos
depois da morte. Mas a decomposição dá à luz uma nova vida de forma
inesperada, escreve Moheb Costandi.
“Talvez seja precisa alguma força para partir isto”, diz a agente
funerária Holly Williams, enquanto levanta o braço de John e levemente
lhe dobra os dedos, o cotovelo e o pulso. “Geralmente, quanto mais
fresco estiver um corpo, mais fácil é para mim poder trabalhá-lo.”
Williams
fala suavemente e tem uma atitude despreocupada, que reflete a natureza
do seu trabalho. Tendo crescido e estando agora a trabalhar na casa
funerária da sua família no norte do Texas, ela já viu e lidou com
corpos quase diariamente, desde a sua infância. Agora aos 28 anos,
estima já ter trabalhado com cerca de mil corpos.
O seu trabalho envolve recolher os corpos de pessoas que
tenham falecido recentemente na zona de Dallas e Fort Worth e
prepará-los para o funeral.
Longe de estar “morto”, um corpo em decomposição está
repleto de vida. Um número crescente de cientistas olha para um corpo em
decomposição como a pedra angular de um vasto e complexo ecossistema.
“A maior parte das pessoas que vamos buscar morrem em lares de idosos
— explica Williams — mas às vezes temos de recolher pessoas que foram
baleadas ou que morreram num acidente de carro. Podemos receber uma
chamada para ir buscar alguém que tenha morrido sozinho e que só foi
encontrado passados dias ou semanas e os seus corpos já estão em
decomposição, o que torna o meu trabalho muito mais difícil.”
John
tinha morrido há cerca de quatro horas, antes de o seu corpo ser
trazido para a casa funerária. Em grande medida, tinha tido uma vida
relativamente saudável. Trabalhou desde sempre nos campos petrolíferos
do Texas, uma profissão que o mantinha fisicamente ativo e em forma.
Tinha parado de fumar há décadas e bebia álcool de forma moderada. Foi
então que, numa manhã fria de janeiro, John teve um enfarte agudo em sua
casa (causado, aparentemente, por outras complicações médicas
desconhecidas), caiu no chão e morreu quase instantaneamente. Tinha
apenas 57 anos.
Agora, o John estava deitado na mesa de metal de
Williams, o seu corpo envolvido num lençol branco, frio e hirto ao
toque, a sua pele de um cinza-arroxeado – sinais que indicavam que os
estágios iniciais da decomposição já tinham começado.
Autodigestão
Longe de estar “morto”, um corpo em decomposição está repleto de
vida. Um número crescente de cientistas olha para um corpo em
decomposição como a pedra angular de um vasto e complexo ecossistema,
que surge pouco depois da morte, que prospera e evolui à medida que a
decomposição se desenrola.
A decomposição começa alguns minutos
após a morte, com um processo designado autólise ou autodigestão. Pouco
tempo depois de o coração deixar de bater, as células ficam privadas de
oxigénio e a sua acidez aumenta à medida que os subprodutos tóxicos das
reações químicas se acumulam no seu interior. As enzimas começam por
digerir as membranas das células e abandonam o espaço intracelular,
enquanto se dá a sua destruição. Este processo começa geralmente no
fígado, que é rico em enzimas, e no cérebro, devido ao seu elevado teor
de água. Contudo, todos os outros tecidos e órgãos acabam por
deteriorar-se desta forma. Com a ajuda da gravidade, os vasos sanguíneos
começam a derramar células danificadas, fixando-se nos capilares e nas
veias mais pequenas, o que provoca a descoloração da pele.
A maior parte dos órgãos são desprovidos de micróbios
quando estão vivos. Contudo, pouco tempo depois da morte, o sistema
imunitário deixa de funcionar, deixando-os proliferar livremente pelo
corpo.
A temperatura corporal também começa a descer, até se aclimatizar ao
meio ambiente. Depois, instala-se o rigor mortis — “a rigidez da morte” —
começando nas pálpebras, no queixo e nos músculos do pescoço, antes de
avançar para o tronco e os membros. Em vida, as células dos músculos
contraem e relaxam devido à ação de duas proteínas filamentosas (a
actina e a miosina), que deslizam uma ao longo da outra. Depois da
morte, esgota-se a fonte de energia das células e os filamentos
proteicos são bloqueados. Isto faz os músculos ficarem rígidos e prende
as articulações.
Nestes estágios iniciais, o ecossistema
cadavérico consiste, maioritariamente, nas bactérias que vivem dentro e à
superfície do corpo humano. Os nossos corpos albergam um grande número
de bactérias; cada superfície e cada canto do corpo proporcionam um
habitat para uma comunidade microbiana especializada. De todas essas
comunidades, a maior reside nos intestinos, que servem de morada a
biliões de bactérias de centenas, ou talvez milhares, de espécies
diferentes.
O microbioma intestinal é um dos temas mais populares
da biologia; desempenha várias funções na saúde humana e está
relacionado com um grande conjunto de doenças e complicações médicas,
desde o autismo e a depressão, até à síndrome do intestino irritável e à
obesidade. Mas continuamos a saber pouco acerca destes passageiros
microbianos. Sabemos ainda menos sobre o que lhes acontece quando
morremos.
Os investigadores conseguiram estimar o momento da
morte, com uma margem de erro de três dias, a partir de cadáveres em
decomposição há quase dois meses.
Em agosto de 2014, a cientista forense Gulnaz Javan da Universidade
do Estado do Alabama, em Montgomery, juntamente com os seus colegas,
publicou o primeiro estudo sobre aquilo a que chamaram o
tanatomicrobioma (do grego, thánatos, que significa “morte”).
“Muitas
das amostras vêm de casos criminais”, diz Javan. “Quando alguém se
suicida, ou é assassinado, ou morre de uma overdose ou de um acidente
rodoviário, eu colho amostras de tecidos dos corpos. Há problemas
éticos, porque precisamos de consentimento.”
A maior parte dos
órgãos são desprovidos de micróbios quando estão vivos. Contudo, pouco
tempo depois da morte, o sistema imunitário deixa de funcionar,
deixando-os proliferar livremente pelo corpo. Habitualmente, isto começa
nos intestinos, no nó que se situa entre o intestino grosso e o
delgado. Se nada for feito em contrário, as bactérias começam a digerir
os intestinos — e depois os tecidos circundantes — de dentro para fora,
usando como fonte de alimento o cocktail químico que as células
danificadas deixam escapar. A seguir invadem os vasos capilares do
sistema digestivo e os gânglios linfáticos, espalhando-se primeiro para o
fígado e baço e depois para o coração e para o cérebro.
Javan e a
sua equipa recolheram amostras de fígado, baço, cérebro, coração e
sangue de 11 cadáveres, entre 20 e 240 horas após a morte. Usaram duas
tecnologias de ponta diferentes de sequenciação de ADN que, com recurso à
bioinformática, lhes permitiram analisar e comparar o conteúdo
bacteriológico de cada amostra.
As amostras recolhidas de órgãos diferentes do mesmo cadáver eram
muito semelhantes entre elas, mas muito diferentes daquelas que foram
tiradas dos mesmos órgãos mas de corpos diferentes. Isto pode dever-se,
em parte, a diferenças na composição do microbioma de cada cadáver, ou
pode ser causado por diferenças no tempo que passou, em cada caso, desde
a morte. Um estudo anterior sobre ratos em decomposição mostrou que,
embora o microbioma mude drasticamente depois da morte, essa mudança
acontece de forma consistente e mensurável. Os investigadores
conseguiram estimar o momento da morte, com uma margem de erro de três
dias, a partir de cadáveres em decomposição há quase dois meses.
O
estudo de Javan sugere que este “relógio microbial” poderá também
existir no corpo humano em decomposição. A cientista mostrou que as
bactérias chegavam ao fígado cerca de 20 horas depois da morte e que
demoravam, pelo menos, mais 58 a espalharem-se por todos os órgãos dos
quais foram recolhidas amostras. Ou seja, depois de morrermos, as
bactérias podem espalhar-se pelo nosso corpo de forma sistemática e o
tempo que as leva a infiltrar-se primeiro num órgão interno e depois
noutro, pode fornecer uma nova forma de estimar a quantidade de tempo
que decorreu desde o momento da morte.
“O nível de decomposição
varia, não só de indivíduo para indivíduo, mas difere também nos vários
órgãos do corpo”, diz Javan. “O baço, os intestinos, o estômago e o
útero grávido decompõem-se rapidamente, mas por outro lado, os rins, o
coração e os ossos sofrem um processo mais lento.” Em 2014, Javan e os
seus colegas asseguraram uma bolsa de 200 mil dólares (cerca de 180 mil
euros), da Fundação Norte Americana para a Ciência, para continuarem a
sua investigação. “Vamos fazer sequenciações e usar a bioinformática de
última geração para ver qual o melhor órgão para estimar [o momento da
morte] – isso ainda não é claro”, diz ela.
No entanto, uma coisa
que parece ser clara é que uma composição bacteriana diferente está
associada a estágios diferentes de decomposição.
Putrefação
Entre os pinheiros de Hutnsville, no Texas, encontram-se dispersos
meia dúzia de cadáveres humanos em vários estados de decomposição. Os
dois corpos mais recentemente colocados têm os braços e as pernas
esticados em forma de “X”, perto do centro do recinto, com muita da sua
pele solta de tons cinzento e azul ainda intacta, conseguindo ver-se as
caixas torácicas e os ossos pélvicos, entre a carne em lenta putrefação.
A alguns metros de distância, está outro corpo completamente em
esqueleto, com a sua pele preta e dura pegada aos ossos, como se
estivesse a usar um fato brilhante de látex com um barrete. Mais além,
passando por outros restos esqueléticos remexidos por predadores,
encontra-se um terceiro corpo dentro de uma jaula feita de madeira e
arame. Está quase no fim do ciclo de morte, parcialmente mumificado.
Vários cogumelos grandes e castanhos crescem no que fora outrora um
abdómen.
Para a maioria, ver um corpo putrefacto é, no mínimo,
desconcertante e, no pior cenário, repugnante e assustador, o tipo de
coisa que provoca pesadelos. Mas isto é o dia-a-dia para aqueles que
trabalham no Instituto de Ciência Forense Aplicada do Texas. Inaugurado
em 2009, o instituto localiza-se numa área de 100 hectares do Parque
Nacional da Universidade Estatal de Sam Houston (SHSU). Dentro dessa
zona há um terreno de 3,5 hectares densamente arborizado, que foi selado
de uma área maior e subdividido, com cercas verdes de arame de 3 metros
de altura com acabamentos em arame farpado.
No final de 2011, os investigadores do SHSU Aaron Lynne e Sibyl
Bucheli e os seus colegas colocaram no terreno dois cadáveres frescos e
deixaram-nos a decompor-se em condições naturais.
A putrefação
começa com o início da autodigestão e a saída das bactérias do tubo
gastrointestinal. Isto corresponde à morte molecular – a transformação
mais acentuada dos tecidos moles em gases, líquidos e sais. Já tinha
começado nos estágios iniciais de decomposição, mas torna-se realmente
marcada quando as bactérias anaeróbicas entram no processo.
A
putrefação está associada a uma viragem acentuada das espécies
bacterianas aeróbicas, que necessitam de oxigénio para crescerem, para
as anaeróbicas, que não requerem oxigénio. Estas últimas alimentam-se
dos tecidos corporais, fermentando os açúcares que neles se encontram
para produzir subprodutos gasosos como o metano, o sulfureto de
hidrogénio e o amoníaco, que se vão acumulando dentro do corpo,
insuflando (ou “inchando”) o abdómen e, por vezes, outras partes.
Isto
provoca ainda mais descoloração do corpo. À medida que as células
sanguíneas continuam a sair dos vasos desintegrados, as bactérias
anaeróbicas convertem as moléculas de hemoglobina, que transportavam
oxigénio pelo corpo, em sulfemoglobina. A presença desta molécula no
sangue estanque confere à pele o aspeto marmoreado com tons verdes e
pretos, característico de um corpo sujeito a decomposição ativa.
O inchaço é frequentemente usado como um marcador da
transição entre os estágios iniciais e posteriores da decomposição,
sendo que um estudo recente revela que esta transição é caracterizada
por uma viragem distinta na composição bacteriana do cadáver.
A pressão crescente dos gases que se vão acumulando dentro do corpo
provoca o aparecimento de bolhas ao longo de toda a superfície da pele. A
seguir a isto, as longas camadas de pele tornam-se mais flexíveis e
começam a “deslizar” ao longo do corpo, que quase não consegue
prendê-las à sua estrutura subjacente. Eventualmente, os gases e os
tecidos liquefeitos abandonam o corpo, geralmente através do ânus,
outros orifícios e, muitas vezes, partes do corpo onde a pele tenha sido
rasgada. Às vezes, a pressão é tão grande que o abdómen explode.
O
inchaço é frequentemente usado como um marcador da transição entre os
estágios iniciais e posteriores da decomposição, sendo que um estudo
recente revela que esta transição é caracterizada por uma viragem
distinta na composição bacteriana do cadáver.
Bucheli e Lynne
recolheram amostras bacterianas de várias partes dos corpos no início e
no fim da fase de inchaço. Depois, extraíram ADN bacteriano das amostras
e sequenciaram-no.
Enquanto entomologista, Bucheli interessa-se
principalmente pelos insetos que colonizam os cadáveres. Ela olha para
um cadáver como um habitat especializado de várias espécies de insetos
necrófagos, alguns dos quais completam o seu ciclo de vida inteiro
dentro, fora ou à volta de um corpo em decomposição.
Colonização
Quando um corpo em decomposição começa a libertar os gases e tecidos
liquefeitos presos no seu interior, passa a estar totalmente exposto ao
meio que o rodeia. Nesta fase, o ecossistema cadavérico torna-se
realmente independente: um centro de atividade para micróbios, insetos e
necrófagos.
Duas espécies intimamente ligadas à decomposição são a
mosca varejeira e a mosca da carne (e as suas larvas). Os cadáveres
libertam um odor nauseabundo, de uma doçura enjoativa, provocado por um
cocktail de compostos voláteis que se vai alterando com o avanço da
decomposição. As moscas varejeiras detetam esse cheiro, usando recetores
especializados nas suas antenas; depois, pousam no cadáver e depositam
os seus ovos nos orifícios e nas feridas abertas.
Cada mosca
deposita cerca de 250 ovos que eclodem dentro de 24 horas, dando origem a
pequenas larvas de primeira fase. Estas alimentam-se da carne
putrefacta, transformando-se em larvas maiores, que se alimentam por
mais algumas horas, antes de se metamorfosearem de novo. Depois de se
terem alimentado durante mais algum tempo, estas larvas maiores, e agora
mais gordas, afastam-se do corpo. Aí, passam a pupas e transformam-se
em moscas adultas, repetindo o ciclo até não sobrar nada para se
alimentarem.
Nas condições certas, um corpo ativamente em
decomposição terá um grande número de larvas de terceira fase a
alimentarem-se dele. Este monte de larvas gera muito calor, o que faz
aumentar a temperatura interna em mais de 10 graus. Como os pinguins a
acotovelarem-se no Polo Sul, as larvas individuais dentro do monte estão
constantemente a mover-se. Mas enquanto os pinguins se juntam para
gerar calor, as larvas movimentam-se para se refrescarem.
Uma compreensão mais aprofundada da composição destas
comunidades bacterianas, das relações entre elas e de como elas se
influenciam umas às outras, à medida que a decomposição avança, poderá
um dia ajudar equipas forenses a perceber melhor onde, quando e como
morreu uma pessoa.
“É uma faca de dois gumes”, explica Bucheli, rodeada por grandes
modelos de insetos e bonecas de coleção no seu gabinete da SHSU. “Se
estiverem nas extremidades, podem ser comidas por um pássaro, mas no
centro correm o risco de ficarem cozidas. Por isso estão constantemente a
deslocar-se do centro para as pontas e vice-versa.”
A presença de
moscas atrai predadores como besouros, ácaros, formigas, vespas e
aranhas, que se alimentam e/ou parasitam dos ovos das moscas e das
larvas. Abutres e outros necrófagos, bem como animais carnívoros de
grande porte, podem também acercar-se do corpo.
Contudo, na
ausência de animais necrófagos, as larvas são responsáveis pela remoção
dos tecidos moles. Como notou Carl Linnaeus (que concebeu o sistema pelo
qual os cientistas nomeiam as espécies) em 1767, “três moscas são
capazes de consumir um cavalo tão rapidamente quanto um leão”.
As
larvas de terceira fase afastam-se de um cadáver em quantidades maiores,
seguindo muitas vezes o mesmo percurso. A sua atividade é tão rigorosa,
que os traços migratórios que fazem são visíveis depois de a
decomposição ter acabado, na forma de sulcos profundos na terra que
emanam do cadáver.
Cada espécie que visita o cadáver tem um
reportório único de micróbios intestinais e os solos diferentes
albergam, quase sempre, comunidades bacterianas distintas, cuja
composição é provavelmente determinada por fatores tais como a
temperatura, a humidade, o tipo de solo e a sua textura.
Todos
estes micróbios convivem e misturam-se dentro do ecossistema do cadáver.
As moscas que pousam no corpo não só depositam os seus ovos na sua
superfície, como recolhem algumas das bactérias que lá encontram e
deixam outras que trazem consigo. E os tecidos liquefeitos que escorrem
do corpo permitem a troca de bactérias entre o cadáver e o solo por
baixo dele.
Quando recolhem amostras dos cadáveres, Bucheli e
Lynne identificam as bactérias que têm origem na pele do corpo, as que
as moscas e os outros animais necrófagos lá deixam e aquelas que provêm
do solo. “Quando um corpo está no processo de purga, as bactérias
intestinais começam a sair e podemos vê-las em maior quantidade fora do
corpo”, diz Lynne.
Por este motivo, é provável que cada corpo tenha uma marca
microbiológica única, que pode sofrer alterações com o tempo, de acordo
com as condições específicas do local da morte. Uma compreensão mais
aprofundada da composição destas comunidades bacterianas, das relações
entre elas e de como elas se influenciam umas às outras, à medida que a
decomposição avança, poderá um dia ajudar equipas forenses a perceber
melhor onde, quando e como morreu uma pessoa.
Por exemplo, a
deteção de sequências de ADN, num cadáver, que se sabe serem únicas de
um determinado organismo ou tipo de solo, pode ajudar os investigadores
criminais a estabelecer uma ligação entre o corpo de uma vítima de
homicídio e uma localização geográfica particular, ou restringir mais as
suas buscas de pistas, talvez a uma zona mais limitada.
“Tem
havido vários casos de tribunal em que a entomologia forense se demarcou
realmente e forneceu peças importantes para resolver o puzzle”, diz
Bucheli, acrescentando que espera que as bactérias possam facultar
informações adicionais, podendo vir a tornar-se mais uma ferramenta para
refinar os cálculos que estimam o momento da morte. “Espero que daqui a
cinco anos, mais ou menos, possamos começar a usar os dados bacterianos
nos julgamentos”, comenta a cientista.
Para este efeito, os
investigadores estão a catalogar as espécies bacterianas que se
encontram dentro e à superfície do corpo humano e a estudar de que forma
é que as populações de bactérias diferem entre indivíduos. “Gostava
muito de ter um conjunto de dados desde a vida até à morte”, diz
Bucheli. “Gostava de conhecer um dador que me deixasse recolher amostras
bacterianas enquanto está vivo, durante o processo da sua morte e na
fase da decomposição.”
Purga
“Estamos a olhar para o fluido de purga que sai dos corpos em
decomposição”, diz Daniel Wescott, o diretor do Centro de Antropologia
Forense da Universidade Estatal do Texas, em San Marcos.
Wescott,
um antropologista especializado na estrutura craniana, está a usar um
microtomógrafo para analisar a estrutura microscópica dos ossos que
foram trazidos do parque. Ele colabora também com entomologistas e
microbiólogos – incluindo Javan, que por sua vez esteve ocupada a
analisar amostras de solos que estiverem em contacto com cadáveres
recolhidos do centro de San Marcos –, bem como com engenheiros
informáticos e um piloto, que opera um drone que tira fotografias aéreas
do centro.
“Estava a ler um artigo sobre drones que sobrevoavam
campos de cultivo para ver quais é que eram mais adequados para serem
cultivados”, diz Wescott. “Estavam a observar quase nos infravermelhos,
porque os solos organicamente mais ricos são mais escuros do que os
outros. Pensei que, se eles conseguiam fazer isso, então talvez nós
pudéssemos detetar estes pequenos círculos.”
Um corpo em decomposição muda, significativamente, a
química do solo onde se encontra, provocando alterações que podem
persistir ao longo de anos.
Esses “pequenos círculos” são as ilhas de decomposição dos cadáveres.
Um corpo em decomposição muda, significativamente, a química do solo
onde se encontra, provocando alterações que podem persistir ao longo de
anos. A purga, ou seja, o vazamento do que resta do corpo dos materiais
decompostos, liberta nutrientes para o solo subjacente e a migração das
larvas transfere muita da energia do corpo para um ambiente mais amplo.
Eventualmente, este processo todo cria uma “ilha de decomposição do
cadáver”, uma área com uma elevada concentração de solo organicamente
rico. Para além de libertar nutrientes para um ecossistema mais amplo,
esta ilha atrai outros materiais orgânicos, tais como insetos mortos e
matéria fecal de animais de maior porte.
Segundo uma estimativa, o
corpo humano consiste, em média, em 50 a 75 % de água e cada quilograma
de massa corporal seca acaba por libertar para o solo 32 gramas de
nitrogénio, 10 gramas de fósforo, 4 gramas de potássio e 1 grama de
magnésio. No início, este processo mata alguma da vegetação por baixo e à
volta do cadáver, possivelmente devido à toxicidade do nitrogénio ou
por causa dos antibióticos presentes no corpo, que são segregados pelas
larvas dos insetos quando estas se alimentam da carne. Mas, no fim de
contas, a decomposição é benéfica para o ecossistema envolvente.
Futuras investigações sobre a forma como os corpos em
decomposição alteram a ecologia do seu meio poderão fornecer uma nova
forma de encontrar vítimas de homicídio cujos corpos tenham sido
enterrados em covas pouco fundas.
A biomassa microbial dentro da ilha de decomposição do cadáver é
maior do que em outras áreas próximas. Os vermes nematoides, que estão
associados à deterioração e são atraídos pelos nutrientes derramados,
tornam-se mais abundantes e a vida vegetal mais diversificada. Futuras
investigações sobre a forma como os corpos em decomposição alteram a
ecologia do seu meio poderão fornecer uma nova forma de encontrar
vítimas de homicídio cujos corpos tenham sido enterrados em covas pouco
fundas.
A análise aos solos das campas pode ser outra forma de
estimar o momento da morte. Um estudo de 2008, que aborda as alterações
bioquímicas que ocorrem numa ilha de decomposição, mostrou que a
concentração no solo de fósforo líquido derramado por um cadáver atinge o
seu pico cerca de 40 dias após a morte, enquanto o valor máximo de
nitrogénio e fósforo extraível acontece 72 e 100 dias depois,
respetivamente. Um entendimento mais detalhado deste tipo de processos
poderá fazer com que a análise da bioquímica de solos sepulcrais ajude,
um dia, os investigadores forenses a estimar há quanto tempo um corpo
foi colocado numa cova escondida.
Enterro
Um corpo deixado à mercê das forças da natureza, no calor seco e
implacável do verão do Texas, em vez de se decompor totalmente,
mumifica. A pele desidrata, rapidamente, ficando presa aos ossos, uma
vez completado o processo.
A velocidade das reações químicas
envolvidas duplica a cada aumento de 10 ºC na temperatura, o que
significa que um cadáver atinge um estado avançado de decomposição após
16 dias, a uma temperatura média diária de 25 ºC. Por essa altura, a
maior parte da carne foi removida do corpo, pelo que as larvas podem dar
início à sua migração em massa para longe da carcaça.
Os egípcios
antigos aprenderam inadvertidamente como é que as condições ambientais
afetam a decomposição. No período pré-dinástico, antes de começarem a
construir sarcófagos e túmulos elaborados, eles costumavam envolver os
mortos em faixas de linho e enterrá-los diretamente na areia. O calor
impedia a atividade dos agentes microbiais, enquanto o enterro prevenia
que os insetos chegassem aos corpos, o que permitia uma excelente
preservação. Mais tarde, começaram a construir os complexos túmulos para
os seus mortos para garantir uma melhor vida depois da morte, mas isto
tinha um efeito contrário ao esperado – na verdade, separar o corpo da
areia acelera a decomposição.
E por isso inventaram o embalsamamento e a
mumificação.
O embalsamamento envolve tratar o corpo com químicos que
abrandam o processo de decomposição. Os agentes funerários continuam a
estudar até hoje o método egípcio de embalsamamento.
O embalsamamento envolve tratar o corpo com químicos que abrandam o
processo de decomposição. Os embalsamadores do Antigo Egito lavavam
primeiro o corpo do falecido com vinho de palmeira e água do Nilo,
retirando a maioria dos órgãos internos através de uma incisão feita
abaixo da mão esquerda, preenchendo-a com natrão (uma mistura de sal que
ocorre naturalmente no Vale do Nilo). Usando um gancho comprido,
puxavam o cérebro pelas narinas e cobriam todo o corpo com natrão,
deixando-o a secar durante 40 dias. Inicialmente, os órgãos secos eram
colocados em vasos canópicos e enterrados juntamente com os corpos; mais
tarde, eram envolvidos em linho e devolvidos aos corpos. Finalmente, o
próprio corpo era envolto em múltiplas camadas de linho, como preparação
para o enterro. Os agentes funerários continuam a estudar até hoje o
método egípcio de embalsamamento.
Voltando à casa funerária, Holly
Williams está a fazer algo de semelhante para que os familiares e
amigos possam ver mais uma vez os seus entes queridos, no funeral, tal
como eram, em vez de como estão agora. Para as vítimas de acidentes ou
mortes violentas, isto pode envolver reconstrução facial extensiva.
Como
vive numa terra pequena, Williams já teve de trabalhar com muitas
pessoas que ela conhecia ou com quem cresceu – amigos que tiveram uma overdose,
que cometeram suicídio ou que morreram atrás do volante. Quando a sua
mãe morreu há quatro anos, Williams também tratou um pouco dela,
acrescentando alguns toques finais de maquilhagem: “Sempre lhe penteei o
cabelo e tratei da maquilhagem quando era viva, por isso sabia
exatamente como fazê-lo”.
Ela transfere John para a mesa de metal, tira-lhe as suas roupas e
coloca-o em posição. Depois, tira vários frascos pequenos de fluido de
embalsamamento de um armário suspenso. O fluido contém uma mistura de
formaldeído, metanol e outros solventes; preserva temporariamente os
tecidos do corpo, ligando as proteínas celulares umas às outras,
mantendo-as no mesmo sítio. O fluido mata as bactérias, prevenindo-as de
atacarem as proteínas e usá-las como fonte de alimento.
Williams
verte o conteúdo dos frascos para a máquina de embalsamamento. O fluido
vem num leque de cores, cada uma correspondendo a uma tonalidade
diferente da pele. Ela limpa o corpo de John com uma esponja molhada e
faz uma incisão na diagonal precisamente acima da sua clavícula
esquerda. Williams “levanta” a artéria carótida e a veia subclávia do
pescoço, aperta-as com pedaços de fio, depois introduz uma cânula (tubo
fino) na artéria e pequenas pinças na veia para abrir os vasos.
A
seguir, ela liga a máquina, bombeando o fluido de embalsamamento para a
artéria carótida e ao longo do corpo de John. À medida que o fluido
entra, o sangue escorre para fora através da incisão, percorrendo os
limites escavados da mesa inclinada de metal até um lavatório grande.
Entretanto, Williams pega num dos membros de John e massaja-o com
gentileza. “Leva cerca de uma hora a remover todo o sangue de uma pessoa
de médias dimensões e substituí-lo com fluido de embalsamamento. Os
coágulos sanguíneos podem atrasar o processo, massajar ajuda a
quebrá-los e faz correr melhor o fluido.”
Os corpos são, no fim de contas, simplesmente formas de
energia, presas por pedaços de matéria, à espera de serem libertadas
para um universo mais amplo.
Uma vez substituído todo o sangue, ela faz passar um aparelho
aspirador pelo abdómen e suga os fluidos da cavidade corporal,
juntamente com quaisquer restos de urina ou fezes que ainda possam
restar. Finalmente, Williams cose as incisões, volta a passar uma
esponja, ajusta os traços faciais e volta a vesti-lo. Agora, John está
pronto para o seu funeral.
Os corpos embalsamados decompõem-se,
eventualmente. Quando e quanto tempo demoram a fazê-lo depende, em
grande medida, de como foi feito o embalsamamento, o tipo de caixão no
qual o corpo foi colocado e como foi enterrado. Os corpos são, no fim de
contas, simplesmente formas de energia, presas por pedaços de matéria, à
espera de serem libertadas para um universo mais amplo.
Segundo
as leis da termodinâmica, a energia não pode ser criada ou destruída,
mas apenas convertida numa forma ou noutra. Por outras palavras, as
coisas destroem-se, e durante esse processo, convertem a sua massa em
energia. A decomposição é uma evocação final e mórbida de que toda a
matéria no universo tem de seguir estas leis fundamentais. Somos
destruídos, equilibrando a nossa matéria corporal com aquilo que nos
rodeia e reciclando-a para o benefício de outros seres vivos.
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Texto de Mosaic Science. Texto: Moheb Costandi; Editor: Mun-Keat Looi; Fact checker: Francine Almash
Fonte: http://observador.pt/especiais/isto-acontece-morrermos/
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