Pierre Bourdieu
Desde o iluminismo no século XVIII, a educação sempre foi vista
como uma instância de transformação e equalização social, estando ligada
a princípios democráticos. Os iluministas sempre acreditaram que,
por meio da educação, o homem, como construtor da cultura, deveria
ser capaz discernir, avaliar e agir com autoconsciência para modificar
sua própria vida e da existência social como um todo. Acreditavam que a
educação formaria o cidadão consciente e participativo, pois o indivíduo
ativo seria o fundamento da sociedade democrática. Essa visão
democrática da educação foi desconstruída por Bourdieu e Passeron, a
partir da publicação do livro “A reprodução: elementos para uma teoria dos sistemas de ensino”
(1970). Eles demonstraram, através de um farto material de pesquisas
empíricas, que a educação não é uma instância de equalização e
mobilidade social, ao contrário, é uma instância de conservação e
reprodução da desigualdade social.
Bourdieu (2007) desvelou em sua época, que um jovem da alta
burguesia tinha oitenta vezes mais chances de entrar na universidade que
o filho de um assalariado agrícola e quarenta vezes mais que um filho
de operário, e suas chances eram duas vezes maior que um jovem da classe
média. Ele percebeu, ainda, uma nítida diferença de desempenho
escolar entre as crianças pertencentes as famílias mais abastadas e as
crianças pertencentes as classes populares. Ao analisar esse
fenômeno, chegou a conclusão que não se tratava de dádiva divina, de
dons inatos ou de qualidades naturais. Os estudos mostravam que as
crianças pertencentes as elites chegavam à escola munidos de um grande
capital cultural e de determinados valores e formas de comportamento
(Ethos), que os diferenciavam das crianças das classes populares. Foi a
partir do conceito de capital cultural que Bourdieu compreendeu as
desigualdades de desempenho escolar dos alunos de diferentes classes
sociais. As classes dominantes ensinavam a seus filhos, provavelmente
de modo lúdico e espontânea, um conjunto de conhecimentos e referenciais
linguísticos, algumas habilidades e formas de comportamento, que
apenas os mais bem sucedidos possuíam. . Esse capital cultural foi
entendido, por ele, como um conjunto de saberes, conhecimentos,
competências e esquemas mentais adquiridas na família e que,
posteriormente, seria desenvolvido pela escola.
Para Bourdieu, a cultura transmitida pela escola seria uma
cultura de classe. Ela não estaria fundamentada em nenhuma razão
objetiva universal. É a cultura escolar que decide o que é estimável ou
insignificante, distinto ou vulgar, bom ou ruim Nesse sentido não há
nenhuma justificativa racional para o fato de se estudar a pintura ao
invés da história em quadrinhos; a história da Europa em detrimento da
história da África; a música clássica ao invés do Funk ou Hip Hop. A
organização das disciplinas, os conteúdos, a organização do sistema
escolar, surgem como produto das relações de força, de uma determinada
formação social. Do mesmo modo, os valores, preceitos, atitudes,
comportamentos e conhecimentos apreendidos na escola são, por definição,
arbitrários. Bourdieu e Passeron entenderam a cultural escolar como
uma forma de violência simbólica, e, mais explicitamente, como dominação
simbólica. Para eles, a escola é reprodutora dos valores, do
imaginário e das condições sociais dominantes do sistema cultural. A
escola é o principal meio pela qual o sistema de domínio social se
constitui se mantêm e se perpetua.
O grande objetivo da ação pedagógica para Bourdieu é
inculcar um habitus de classe". O "habitus" foi entendido por ele como
estruturas sociais incorporadas, que produzem disposições para pensar,
sentir e agir. Segundo Catani, “o habitus, constituído por um
conjunto de disposições para a ação, é a história incorporada, inscrita
no cérebro e também no corpo, nos gestos, nos modos de falar ou em tudo o
que somos. É essa história incorporada que funciona como princípio
gerador do que fazemos ou das respostas que damos à realidade e na
realidade social (CATANI, 2007, p. 20). A ação pedagógica é,
portanto, um trabalho de inculcação dos valores, preceitos, modos de
ser, pensar e agir socialmente valorizados.
A sociedade capitalista é uma sociedade extremamente
hierarquizada e desigual, organizada segundo uma divisão injusta de
renda, privilégios e poderes. As melhores posições na estrutura social
dependem das qualificações dos indivíduos. Contudo, a boa
qualificação tornou-se monopólio das classes dominantes. A educação,
ao privilegiar os mais dotados de capital cultural, beneficia as
crianças das classes sociais mais favorecidas. São essas crianças que
serão mais bem qualificadas e ocuparão as posições mais importantes no
mercado de trabalho. Ao contrário, as crianças das classes populares,
por não possuírem o capital cultural, fracassam mais facilmente no
percurso escolar, pois possuem mais dificuldades de dominarem os códigos
que a escola valoriza. Desse modo a educação reproduz as desigualdades
sociais e colabora para a manutenção das estruturas sociais.
Para Bourdieu, um dos papéis do cientista social é descrever a
lógica de funcionamento das estruturas sociais. O espaço social
aparece como um conjunto de relações invisíveis, objetivas, entre as
posições ocupadas nas distribuições de recursos ou poderes, que podem
ser usados de modo eficiente para se apropriar de bens que estão em
disputa. Esse espaço de relações sociais é tão real como o espaço
geográfico. Para que o indivíduo mude de lugar, nesses espaços, é
necessário tempo, trabalhos, sofrimentos, esforços. Os agentes trazem s
marcas e os estigmas desses esforços. Por causa disso, o espaço social é
um espaço de conflito, de luta simbólica, onde os agentes e grupos
dominantes procuram manter sua posição de domínio.
O capital econômico e o capital cultural são as formas de
capital mais importante para estruturar o espaço social, uma vez que
fornecem os principais critérios de diferenciação simbólica. Para
Bourdieu (2004) há duas dimensões do espaço social. Na primeira
dimensão, os agentes se posicionam segundo o volume global de capital
que possuem, formando uma hierarquia de cima para baixo. Quanto maior o
capital e quanto mais diferenciado ele for, melhor a posição do agente
na estrutura social. A partir dessa perspectiva, os empresários, os
profissionais liberais, os professores universitários, por possuírem um
capital maior e diferenciado, se opõe globalmente aqueles desprovidos de
capital econômico e cultural, como os operários, trabalhadores do setor
de serviços ou agricultores. Na segunda dimensão os agentes se
posicionam de acordo com a estrutura do seu capital, ou seja, segundo a
importância do capital que possuem. Quanto maior o peso relativo do
capital econômico ou do capital cultural que possuem, maior é sua
diferença e distinção em relação aos outros agentes. Nesse sentido os
grandes empresários e comerciantes se opõe ao professores
universitários, por possuírem maior capital econômico. Do mesmo modo,
esses últimos se opõem aqueles, por possuírem um maior capital cultural.
Poderíamos distinguir também, em um nível inferior, os professores de
ensino médio em oposição aos pequenos comerciantes. Os funcionários de
escritório em oposição trabalhadores da fábrica.
A grande parte das diferenças entre os agentes é determinada
pela ocupação social. É o Estado que produz as classificações oficiais,
sendo o tribunal supremo que possui o monopólio da nomeação legítima. É o
Estado que determina as taxonomias oficiais. Ao nomear os agentes
segundo sua atividade ou profissão, o Estado anula todas as diferenças
constitutivas do espaço social, tratando uniformemente todas as posições
como ocupações: empresário, comerciante, professor, faxineiro, etc.
Essa classificação do Estado sobre as ocupações tem
nitidamente o objetivo de criar uma visão legitima do mundo social. Há
uma naturalização das hierarquias ocupacionais, que passam a ser aceitas
de modo natural, como se as posições no espaço social fossem dadas
apriori. Os nomes de profissões que os agentes possuem, e os títulos que
os nomeiam, são marcas distintivas, que podem ser positivas ou
negativas, recebendo seu valor da posição que ocupam na hierarquia da
taxionomia estabelecida. A ocupação determina a posição do agente no
espaço social. Por esta razão, os agentes buscam, cada vez mais,
títulos para maximizar ganho simbólico e mudar de posição na hierarquia
social. "O título profissional ou escolar é uma espécie de regra
jurídica de percepção social, um ser-percebido que é garantido como um
direito. É um capital simbólico institucionalizado, legal (e não apenas
legítimo)". (BOURDIEU, 1989, 148-9)
O título profissional e a ocupação representam o capital
simbólico, dando notoriedade, prestígio e crédito aqueles que os
possuem. São as instituições do Estado, como instâncias de poder, que
legitimam e dão credibilidade a esses títulos e ocupações. Trata-se do
desejo de reconhecimento, de ser percebido, de ser importante para as
outras pessoas, de se possuir certas propriedades distintivas. O que os
agentes buscam, é adquirir identidade social. O espaço social surge
como uma luta simbólica, em que os agentes buscam, cada um por si,
construir uma reputação. Eles buscam acumular capital simbólico para que
adquiram carisma, prestígio e reconhecimento por seus méritos e
qualidades especiais. A busca de títulos, bens culturais e de ocupações
no espaço social se fundamenta numa vontade de distinção social.
Devido às grandes exigências do mercado de trabalho, a
educação tornou-se em nossa época um bem conspícuo. Os indivíduos, para
se diferenciarem simbolicamente, procuram adquirir capital cultural.
Quando procuramos os serviços de um engenheiro, médico ou advogado,
torna-se claro que estes agentes são reconhecidos como profissionais,
que possuem certos atributos essenciais da sua profissão. Ao contrário, o
agente que trabalha em uma lanchonete, no escritório ou limpando casas
não é definido como profissional, mas como um ocupante de um posto de
trabalho, que faz uma tarefa ou exerce uma atividade. Para Bourdieu
(1989) o título é em si mesmo uma instituição, assim como a língua. É
uma marca distintiva legitimada pelo Estado e reconhecida socialmente. É
por meio dos títulos que os agentes são percebidos, reconhecidos,
respeitados e adquirem credibilidade. Estudar em uma grande escola,
fazer um curso no exterior, falar línguas ou produzir artigos
científicos são formas de agregar valor a si mesmo, obtendo capital
simbólico para adquirir algum recurso, poder ou vantagem no mercado de
trabalho. Ao receber valor pela ocupação ou pelo título profissional
que possui, em um mundo hierarquizado pelas distintas formas de capital,
isso contribui para a identidade social do agente e determina sua
posição no grupo ou classe social ao qual pertence. O campo do
trabalho, enquanto relações objetivas entre posições em disputa, é o
lugar e o espaço de uma luta concorrencial. O que está em jogo, é o
capital simbólico e o capital econômico, que não somente propiciam
prestigio, poder e bens materiais, mas propiciam acima de tudo uma
posição na estrutura social. Por esta razão é um campo de grande luta
simbólica.
A sociedade do consumo é o modo de produção e reprodução
material e espiritual, que expande e transforma o consumo de
mercadorias no principal fator das relações e das práticas sociais. A
educação, ao reproduzir as desigualdades sociais, insere-se nesse
processo, na medida em que produz um tipo específico de mercadoria: o
indivíduo. A formação escolar determina quais serão aqueles que ocuparão
as melhores posições na estrutura social. Contudo, ela encobre o fato
que essas posições já estão determinadas apriori, serão ocupadas por
aqueles provenientes das famílias mais privilegiadas, com um nível maior
de capital econômico e capital cultural. Ela encobre esse fato pela
ideologia do dom e do esforço individual. O sistema de ensino partiria
do princípio, que todos competiriam em condições iguais, e aqueles que
se destacassem, por seus dons individuais ou por seus esforços, por uma
questão de justiça, seriam promovidos na vida escolar e,
posteriormente, na vida profissional. É essa ideologia que legitima a
educação e a torna uma promessa de felicidade. Desse modo, a educação
torna-se um instrumento de manutenção da ordem social.
BIBLIOGRAFIA
BOURDIEU, Pierre. A distinção: critica social do julgamento. Porto Alegre, RS: Zouk, 2015.
BOURDIEU, Pierre e PASSERON, Jean C.. A Reprodução: Elementos para uma teoria do sistema de ensino. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2014.
BOURDIEU, Pierre. A escola conservadora: as desigualdades frente à escola e à cultura. In: BOURDIEU, Pierre. Escritos de educação. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007
BOURDIEU, Pierre. Coisas Ditas. Trad. Cássia R. da Silveira e Denise M. Pegorin. São Paulo: Brasiliense, 2004
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Trad. Fernando Tomaz. Rio de janeiro: Bertrand Brasil, 1989.
CATANI, Denise. B. A educação como ela é. Revista Educação, São Paulo, vol. 5, Especial: Biblioteca do Professor, Bourdieu pensa a Educação, p.16-25, set. 2007
NOGUEIRA, Maria A. e NOGUEIRA, Claudio.M.M. A sociologia da educação de Pierre Bourdieu: limites e contribuições. Educação & Sociedade, ano XXIII, no 78, Abril/2002. Disponível em < http://www.scielo.br/pdf/es/v23n78/a03v2378.pdf> acesso em Dezembro de 2015
Fonte:https://filosofonet.wordpress.com/2016/01/02/pierre-bourdieu-educacao-trabalho-e-a-manutencao-da-ordem-social/
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sábado, 2 de janeiro de 2016
Pierre Bourdieu: educação, trabalho e a manutenção da ordem social by Professor
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