"Ao caracterizar o fanático como
alguém sem senso de humor, ou com humor limitado, aí sim Oz envereda por
algo que vale a pena continuar a investigar. Sabemos disso quando vemos
que o humor é, não raro, o que mais revolta gente de seitas
ou gente
com capacidade grande de seguir
um líder irracional (ou racional
demais!)."
Se a definição de Amós Oz for correta
a respeito do que são os fanáticos, e do que somos nós em comparação
com eles, certos livros do filósofo Giorgio Agamben (e de Foucault e
outros), deverão ser postos de lado.
Segundo Amós, em seu livro Como curar um fanático (Companhia
das Letras, 2015), a luta contra o fanatismo se dá “entre aqueles que
acreditam que o fim, qualquer fim, justifica os meios e nós, os demais,
que acreditam que a vida é um fim em si, não apenas um significado.”
Trata-se de “uma luta entre os que acham que a justiça – ou o que quer
que se queira dizer com a palavra justiça – é mais importante do que a
vida e aqueles para quem a vida tem prioridade sobre os outros valores,
convicções ou crenças”. Entre Oz e os filósofos, fico com os segundos, é
claro.
Não acho que escritores de ficção ou
coisa semelhante devam tentar dar palestras teóricas. Poucos acertam.
Saramago errava quando queria falar algo de política ou sociologia
(embora também quando escrevia literatura, dado que era um chato). Amós
Oz começa errando pelo título “Como curar um fanático”. Essa metáfora
não ajuda. A ideia de transformar qualquer comportamento em patologia
não é boa. Propor que para solucionar problemas devamos hospitalizar o
mundo? Nunca é bom, para falar de fanatismo em termos teóricos, colocar
uma linha divisória nítida como é a linha entre doentes e sadios.
Afinal, nós sabemos bem que houve uma chacina de cães cocker nos Estados
Unidos, feita por pessoas ditas normais e que de fato até então não
tinham apresentado nenhum comportamento estranho, quando se ficou
sabendo que Hitler teria predileção por essa raça de cães. Aliás, foi
daí em diante que o labrador e outros ocuparam o gosto dos americanos,
até então vidrados em cockers!
Além do mais, se há algo realmente pouco
sustentável nessa história de Amós Oz sobre a importância da vida, é
que pelo seu critério, uma vez à luz de Agamben, todos nós modernos
somos anti-fanáticos. Ora, então, os fanáticos viriam de uma sobra
fantasmagórica do passado? Muitos acreditam nisso, falando em fanáticos
como os da Idade Média etc. Isso não se sustenta.
Agamben e Foucault nos dizem que a vida
política antiga é que é, efetivamente, a vida antiga. Ninguém apostava
na vida biológica como sendo a vida. Aliás, uma decisão sábia: vivia-se
menos e também a probabilidade de morrer a qualquer momento nas mãos de
inimigos e doenças não era um número baixo. A vida era, então, a vida de
títulos, honrarias, prestígio, a vida política ou, como dizemos hoje, a
vida social. Viver era ter honra e coragem, e ser capaz de heroísmo. Só
nós modernos, como explica Agamben, falamos de vida como vida
biológica, ou seja, a vida do coração batendo, ou o que é contrário à
morte cerebral. Atualmente a política acolhe a biologia. A vida política
acolhe a “vida nua” como vida par excellence. Então, hoje, o valor vida (a
vida biológica) é nosso maior valor. Mas isso é algo de hoje, moderno, e
assim mesmo não significa que tenhamos que nos agarrar a essa visão
geral de qualquer maneira, esquecendo o que se fez no passado. Pensamos
nisso quando nos imaginamos em situações em que só restaria a vida
biológica, a vida nua, quando é claro que não vale a pena mantê-la
diante de sofrimento moral. Consideramos de verdade a retirada da vida
uma solução válida se for para ter que se comprometer com uma humilhação
ou dor moral ou trocas impossíveis de suportar (por exemplo, ter de
fazer um mal a um ente querido ou a inocentes etc). Pensamos claramente
em tirar vida não só nossa, mas de outros, em inúmeras situações em que o
que está em jogo é valor moral. Assim, não é verdade que nós, os ditos
não fanáticos, lutamos pelo valor vida como acima de tudo. Podemos muito
bem termos isso como algo do campo moderno em geral e, no entanto,
compormos grupos que podem, sim, morrer e matar, e sem vínculos com a
justiça.
Nessa hora, já não estamos mais no campo
de Agamben somente, mas avançamos para a seara de Sloterdijk. Para ele,
temos de considerar a opção da modernidade também pelo cinismo. Quando
voltarão a valer os Mandamentos? É o que pergunta a garota para a avó,
durante a Guerra. Podemos morrer e matar e sair disso tudo (uma guerra
ou uma situação complicada qualquer) sem que tenhamos que arcar com
qualquer traço de fanatismo. Não somos os heróis do mundo, contra os
tais fanáticos, como Amós Oz acaba por assumir, mesmo dizendo,
contraditoriamente, que são os fanáticos os que olham para o mundo como
um mundo de “corretos” e “errados”, “mocinhos e bandidos”. Podemos
acreditar em tal coisa ou não e, enfim, não sermos fanáticos. Podemos
simplesmente ser soldados comuns ou cidadãos comuns que durante um tempo
adquiriram a capacidade de matar, de serem assassinos. Nessa hora, é
preciso sempre lembrar Hannah Arendt e a razão pela qual ela não foi
entendida na análise sobre Eichmann. Ela nunca disse que ele era um bom
sujeito, o que ele disse é que ele era um tipo medíocre, incapaz de
reflexão, um seguidor de jargões e frases feitas, um energúmeno que não
conseguia colocar sua consciência em funcionamento. Arendt jamais
aceitou chamar os nazistas de “monstros” ou de “doentes”. Fazer isso
seria ceder ao não analítico e participar da estupidez de raciocínio
típica do próprio nazismo.
Voltando a Sloterdijk, podemos também
pensar nossa época não só como acolhedora do cinismo, mas também da
“insustentável leveza do ser”, ou seja, uma época em que tudo é frívolo
(a sociedade da leveza) e, então, para se adquirir alguma sensação de
que há ainda a realidade e o sério (sério e real são sinônimos para nós,
muitas vezes), o melhor seria engajar-se em movimentos fanáticos. Esses
movimentos devolvem a muitos o que lhes falta, ou seja,
responsabilidade, sentido da vida, sensação de estar fazendo algo que
“vale a pena”. Muitos hoje em dia carecem de acreditar que há alguma
ontologia. (veja artigo Como surgem os terroristas, neste blog).
Agamben, Arendt e Sloterdijk podem
desmentir Amós Oz rapidamente. Todavia, há um ponto no livro em que Oz
acerta, e que pode inclusive redimi-lo. Ao caracterizar o fanático como
alguém sem senso de humor, ou com humor limitado, aí sim Oz envereda por
algo que vale a pena continuar a investigar. Sabemos disso quando vemos
que o humor é, não raro, o que mais revolta gente de seitas ou gente
com capacidade grande de seguir um líder irracional (ou racional
demais!). Por essa via, talvez, possamos notar mesmo um traço do
fanatismo.
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* Paulo Ghiraldelli 58, filósofo
FONTE: http://ghiraldelli.pro.br/amos-oz-e-fanatismo/
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