O
sociólogo Richard Sennett puxa o fio da meada da corrida presidencial
americana. Primeiro analisa o crescente debate sobre desigualdade no país: “A
classe média está estrangulada, e tende a cair”. Depois avalia a ascensão do
socialista Bernie Sanders: “O que ele diz não é utopia, é realidade, confronta
os milionários e conversa com os jovens sem emprego”. Então fecha com Obama:
“Ele elevou o nível do debate ao falar como um adulto para um público adulto.
Esse é seu maior legado”.
Nunca
a concentração de riquezas foi tanta nos bolsos de tão poucos. Soubemos essa
semana que 62 bilionários (entre eles, dois brasileiros) possuem o equivalente
ao que têm, juntos, outros 3,6 bilhões de pessoas, a metade da população
mundial, justamente os mais pobres. A cada par de anos sai uma estatística
parecida, tão difícil de acreditar quanto a primeira. Precisamos mesmo ser tão
desiguais?
No
país de maior economia do mundo, onde a corrida eleitoral começa a esquentar,
essa parece ser a pergunta da vez. Mostra que alguma coisa já mudou no debate
político americano. Não se fala apenas em imigração e política externa, mas
também nas jornadas de trabalho que só aumentam, nos salários que diminuem, nos
empregos que não dão segurança. A classe média, símbolo da força da economia do
país, começou a sofrer – e assim a discussão sobre distribuir a riqueza ganhou
espaço no epicentro da meritocracia e dos self made men.
Para
o prestigiado sociólogo Richard Sennett, professor da London School of
Economics e da Universidade de Nova York, esse é só o começo do debate sobre
desigualdade econômica em países ricos. “A classe média americana está
estagnada e, se vai a algum lugar, é para baixo. É uma situação nova, num país
que sempre se vendeu como terra da oportunidade. A fantasia acabou, o eleitorado
está percebendo e isso estará muito presente na política americana nos próximos
anos”, afirma Sennett, autor de O Declínio do Homem Público (clássico da
sociologia, de 1977, sobre mudanças de comportamento do homem desde o século
18) e de Respeito: A Formação do Caráter em um Mundo Desigual (Record),
misto de livro de memórias e análise da desigualdade social com base em sua
infância pobre, no Brooklin dos anos 40.
Nesta
entrevista ao Aliás, Sennett também analisou o papel do principal
porta-voz da discussão sobre desigualdade nos Estados Unidos: o senador Bernie
Sanders, que se declara socialista e vem desbancando Hillary Clinton em alguns
Estados na disputa pela candidatura democrata à Casa Branca. “Dizem que ele é
idealista. Por acaso é idealismo defender o confronto às oligarquias, se é o
que os Estados Unidos precisam? Ele vem se tornando tão popular, especialmente
entre os jovens, por dizer o que tem de ser dito.” Sobre o legado de Obama após
oito anos na presidência, Sennett foi generoso. “Ele elevou o nível do debate
político, ao falar como um adulto para um público adulto.”
Por
que o debate sobre a desigualdade reapareceu nos Estados Unidos?
A
principal razão é que a natureza da desigualdade mudou no país. A classe média
estagnou, num processo que vem acontecendo há 20 anos. Houve uma recuperação
depois da crise financeira de 2008, mas, agora, com o país cada vez mais
demandando produtos, isso fica mais aparente. A desigualdade, em vez de ser
definida pelos mais pobres, é hoje um problema maior para os que estão no meio.
Os que ficam mais embaixo estão, inclusive, levemente melhores do que em 2007.
Essa mudança, essa redistribuição da desigualdade, leva o tema para o centro do
debate político. Nos Estados Unidos, é uma questão que se nota na medida em que
afeta a classe média.
Como
chegou a esse ponto?
A
classe média estagnou, essencialmente, porque muitas das indústrias de serviço
americanas passaram a oferecer apenas trabalhos de curto período, que pagam
pouco, ou se transferiram para o terceiro mundo. Especialmente indústrias de
serviços, como call centers, que são levadas para países como a Índia. Como eu
disse, são oferecidos muito menos trabalhos full-time, ou de períodos mais
longos. O resultado é que os salários e, com eles, a riqueza estão diminuindo,
e as pessoas sentem muito mais insegurança no trabalho. Ao olhar os dados
globais de emprego nos Estados Unidos, no bruto, parece saudável. Mas, se você
observar quais são os trabalhos que empregam hoje, eles são de pior qualidade.
É uma situação distinta da do Brasil, onde há uma diferença maior entre os de
cima e os de baixo. A economia nos Estados Unidos têm a forma de uma ampulheta,
com o meio cada vez mais estrangulado. É a classe média, forçada a subir, ou,
mais frequentemente hoje, descer. Enquanto isso, a riqueza extrema aumenta. Mas
acho errado focar a questão da desigualdade no topo. É preciso ir a um nível
inferior para entender. Do ponto de vista social, é interessante notar que
todos estão tratando da estagnação da classe média. Essa é a razão da
popularidade de Bernie Sanders, que é de outra geração, mas vem falando da
realidade da classe média jovem. E fala disso de uma maneira que Hillary
Clinton não consegue.
Quais
as diferenças no pensamento de Hillary e Sanders nessa questão?
Toda
a campanha de Sanders é baseada na noção do que se pensa na Europa,
principalmente nos países nórdicos. Ele se diz socialista, mas na verdade é um
social-democrata. Isso tem um apelo incrível entre os mais jovens e esse é o
porquê de ele estar se tornando um desafio tão grande para Hillary. O que estou
descrevendo é um problema grave para os jovens americanos, porque as
oportunidades estão diminuindo aos que têm diploma universitário, há menos
espaço no topo, menos gente com mais e mais dinheiro. E há menos empregos para
os que estão embaixo e querem ter uma vida boa. Sanders é mais realista sobre a
questão do trabalho. A noção de Hillary é mais baseada em mobilidade social.
Uma visão antiga, desde que era senadora ela fala disso, em mover-se para cima
na escala ocupacional. Mas não acho isso muito possível hoje, com menos
posições de trabalho para a classe média. Hillary enfatiza o self made men,
algo que não se sustenta mais, especialmente para os jovens. Não passa de
fantasia.
E
Sanders entendeu isso.
Sim.
Os jovens, os millenials, estão acordando para a desigualdade. Isso é uma
mudança real. Antes de 2008, eles não pensavam muito nisso. Mas a crise
dramatizou a situação para eles. As oportunidades encolheram, a segurança está
encolhendo. É um mundo diferente para essa classe média que, desde a Segunda
Guerra, presumiu sempre que cada geração viveria melhor do que a anterior. Não
houve reflexão de que poderia ser diferente. Hoje a situação mudou, e os
millenials são os primeiros a lidar com esse fato.
As
propostas de Sanders para reduzir a desigualdade seriam efetivas?
Certamente.
Ele fala em diminuir o poder das oligarquias, aumentar impostos para os mais
ricos e, com isso, expandir programas de segurança social, criar um sistema de
saúde acessível a todos. Funcionou em países nórdicos. Não concordo com tudo o
que ele diz, mas ele tem falado em um problema real, que é a insegurança
laboral. Estou menos preocupado com a distribuição de riqueza do que com a
segurança que uma real democracia social poderia trazer. As pessoas sempre
conviveram com desigualdade e sempre lidaram com ela. O que está realmente
diferente hoje é a estrutura do trabalho, muito instável. As pessoas sentem
falta de segurança inclusive para ousar, fazer coisas novas. Isso é estimulado
se houver um sistema que permita que se reergam se falharem. É o que Sanders
defende, e esse sistema seria uma boa opção, necessária até, para os Estados
Unidos. Mas não acredito que tenha chances.
Por
quê?
Não
tem a ver com o fato de que ele se diga socialista. Tem a ver com a estrutura
da política. Ele não tem organização partidária, é um indivíduo correndo sem
estrutura política por trás. Ele pode ganhar as primárias em Estados pequenos,
mas nunca em Nova York, Pensilvânia, Texas, Califórnia. Ele não está integrado
na classe política, e é o que gosto nele. Mas, como realista, digo que se você
não controla a classe política você tem problemas. Pode-se dizer que o
presidente Obama também não tinha organização política por trás dele em 2008.
Mas Hillary gerenciou tão mal seu plano naquela ocasião que Obama foi capaz de,
passo a passo, colonizar instituições políticas novas a ele. Isso não está
acontecendo com Sanders. Hillary aprendeu com a experiência de 2008. Então não
acho que ele terá a mesma oportunidade.
Mas
o que representa haver um político de esquerda com chance em um país
como os Estados Unidos?
Representa
uma tentativa de falar de uma realidade que mudou. Os americanos gostam de
fantasias, de viver uma fantasia. E eles tiveram o poder de viver isso durante
muito tempo. A esperança da mobilidade social, por exemplo, de trabalhar duro e
chegar lá. E agora perderam esse poder.
Sanders
está recuperando utopias?
Não
acho que ele seja um idealista, que tenha ideias utópicas. Seria porque fala em
confrontar as oligarquias? Eu diria que esse é um ideal realista. Seria mais
realístico dizer “não, não vamos falar disso”? Falar em confrontar milionários
e bilionários, como ele faz, não é o que se espera de um político que quer ser
candidato a presidente. Mas dizer o que precisa ser dito é ser utópico? Não
acho que esteja devolvendo fantasias aos jovens, ou motivos para sonhar. Ele
está reconhecendo e mostrando a eles as realidades em que vivem.
Independentemente se pode ou não ganhar, está criando um movimento. Aos 74
anos. Espero que vá bem, porque a América precisa fazer as discussões que ele
propõe.
Na
sua opinião, qual será o legado de Obama?
Ele
concretizou propostas muito boas. Conseguiu fazer um sistema de justiça racial
mais justo, o que é uma grande realização. Tentou melhorar o sistema de saúde e
foi parcialmente bem-sucedido. Fez um esforço. Em outras coisas ele foi mal: o
legado dele na questão ambiental é pobre, e sua política internacional teve
resultados mistos. Muito pobre no começo, com melhoras recentes. As aberturas
para Irã e Cuba foram um grande legado. Mas isso ele só fez no fim. E ficou na
Casa Branca durante oito anos. Gostaria de vê-lo sair do Afeganistão, de ser
mais enérgico na crise de refugiados... Em linhas gerais, foi um bom governo.
Mas o que eu realmente gosto nele é que Obama sempre falou como adulto para um
público adulto. E muitos políticos americanos tratam o público como crianças.
Obama honrou o público ao levá-lo a sério, elevou o nível do debate na
política. E agora, para onde vai isso? Vai se perder. Se for um republicano,
cairá como chumbo. O discurso passará a ser primitivo. Mas, mesmo se for um
democrata, se for Hillary, vai cair o nível. O único que está falando com o
público como Obama faz é Sanders. Uma discussão adulta. Mas, como não acredito
que ele tenha chance, corremos um risco sério de ver, novamente, discussões
infantis nos Estados Unidos. E sabemos como isso tem reflexos em muitos países
da área de influência americana.
---------
Reportagem por Vitor
Hugo Brandalise - O Estado de S.Paulo
Fonte: http://alias.estadao.com.br/noticias/geral,retalhos-de-um-sonho,10000013161
Nenhum comentário:
Postar um comentário