O PrOA publica neste espaço trechos de livros no prelo ou recém-lançados. Leia a seguir um excerto de Estado de Crise, mais uma obra em que o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, o teórico da Modernidade Líquida, dialoga com um colega intelectual sobre temas da contemporaneidade. A exemplo de Cegueira Moral (no qual falava com o filósofo lituano Leonidas Donskis) e Sobre Educação e Juventude (que reunia conversas com o italiano Riccardo Mazzeo), entre outros, Estado de Crise é o registro de um misto de diálogo e entrevista com o sociólogo e jornalista italiano Carlo Bordoni. No livro, Bauman faz uma análise das causas e consequências da nova e duradoura crise mundial, como no trecho que se lê na sequência, uma análise de Bauman sobre a crise em um ambiente de enfraquecimento das instituições políticas. O livro está chegando esta semana às livrarias.
As credenciais populares do próprio sistema da democracia representativa, desenhado, elaborado e estabelecido pelos construtores do Estado-nação moderno, estão se desintegrando. Os cidadãos acreditam cada vez menos que os governos sejam capazes de cumprir suas promessas.Eles não estão errados. Uma das presunções tácitas, ainda que cruciais, da base de confiança na eficiência da democracia parlamentar é que os cidadãos decidem em eleições quem irá governar o país nos anos seguintes, e que o governo eleito tentará implementar suas políticas. O colapso recente da economia baseada no crédito deu à falência desse arranjo um relevo espetacular. Como observa John Gray, um dos mais perceptivos analistas das raízes da instabilidade mundial dos dias atuais, em seu prefácio à nova edição (2009) de False Dawn: The Delusions of Global Capitalism, ao se perguntar por que o colapso econômico recente não logrou aumentar a cooperação internacional, liberando, em vez disso, pressões centrífugas: “Governos estão entre as baixas da crise, e a lógica de cada um deles atuando para proteger seus cidadãos significa maior insegurança para todos”. Isso se dá porque “as piores ameaças ao gênero humano são globais em sua natureza”, ao passo que “não há nenhuma perspectiva de qualquer acordo efetivo de governança global para lidar com elas”.
Nossos problemas são produzidos globalmente, ao passo que os instrumentos de ação política legados pelos construtores do Estado-nação foram reduzidos à escala de serviços requeridos por Estados-nação territoriais. Eles se mostram, portanto, singularmente inadequados quando se trata de lidar com desafios extraterritoriais globais. Para nós, que continuamos a viver à sombra do arranjo westfaliano, eles são até hoje, ainda assim, os únicos instrumentos em que conseguimos pensar e para o qual estamos inclinados a nos voltar em momentos de crise, apesar de sua ruidosa insuficiência para garantir a soberania nacional, a condição sine qua non da viabilidade prática desse arranjo. O resultado ampla e previsivelmente observado é a frustração causada e fadada a se acirrar pela inadequação entre meios e fins.
Resumindo, nossa crise atual é em primeiro lugar e acima de tudo uma crise de agência, embora em última análise seja uma crise de soberania territorial. Cada unidade territorial formalmente soberana pode hoje servir como depósito de lixo para problemas originados muito além do alcance de seus instrumentos de controle político, e há muito pouco que ela possa fazer para impedi-los, e muito menos preveni-los, considerando a quantidade de poder deixada à sua disposição. Tais unidades formalmente soberanas – com efeito, um número crescente delas – foram rebaixadas na prática à condição de distritos de polícia locais, em prontidão a fim de garantir um mínimo necessário de lei e ordem para um tráfego cujas idas e vindas elas não pretendem (nem são capazes de) controlar. Não importa a extensão da distância entre soberania de jure e soberania de facto, todas as unidades estão fadadas a buscar soluções locais para problemas globalmente engendrados, tarefa que transcende em muito a capacidade de todas, exceto o punhado das mais ricas e desenvoltas.
Uma vez presos num duplo compromisso, pouca escolha resta aos governos, a não ser rezar para que, antes de se anunciar a data da eleição seguinte, seu serviço obediente e leal ao “segundo compromisso” seja recompensado com uma montanha crescente de investimentos e contratos comerciais. E, o que é muito importante, isso também acontece com o “fator tudo bem”, de comum acordo, conselheiro-chefe do povo na cabine eleitoral. Observemos, porém, que os sinais estão ficando mais complicados no terreno desse tipo de cálculo, deixando de funcionar como esperado. Não se trata apenas de os políticos eleitos deixarem de cumprir suas promessas; tampouco as “forças do segundo compromisso” (bolsas de valores, capitais itinerantes, investidores de risco e afins, chamados concisamente de “investidores mundiais” na linguagem politicamente correta de hoje) cumprem a sua parte segundo as expectativas dos políticos.
Não há nada, portanto, nem sequer um vislumbre de luz no fim do túnel, com que compensar a frustração do eleitorado e abrandar sua ira. A desconfiança e a indignação se espalham para todo o espectro político, exceto talvez os seus setores até aqui (mas até quando?) marginais, efêmeros e excêntricos, exigindo publicamente um fim para o regime democrático desacreditado e fracassado. Escolhas feitas na cabine eleitoral hoje são raras vezes motivadas pela confiança numa alternativa; cada vez mais, elas são resultado de mais uma frustração causada pelo trabalho remendado feito pelos empossados. Tornam-se cada vez mais raros os partidos capazes de ostentar que foram eleitos para mais de um mandato no poder.
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POR ZYGMUNT BAUMAN
Fonte: http://www.clicrbs.com.br/zerohora/jsp/default2.jsp?uf=1&local=1&source=a4963641.xml&template=3898.dwt&edition=28310§ion=3605
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