2015: duas traduções simultâneas de O pequeno príncipe
na Alemanha? Presentes de dois monstros da cultura atual germânica: o
escritor Hans Magnus Enzensberger e o filósofo Peter Sloterdijk.
Coincidência?
Quando veio o fim da URSS, Enzensberger
fez uma previsão que não se verificou. Disse que com o passar do tempo
surgiria um movimento saudosista em relação ao comunismo. Essa sua fala
não tinha a ver com desejo subjetivo, mas com algo mais importante:
estávamos e agora estamos ainda mais sem qualquer esperança na
“sociedade do trabalho”. Ou seja, os jovens viriam a perceber, depois de
algum tempo, que o trabalho na garras do capitalismo não era tudo
aquilo de bom que imaginavam, após terem se livrado do trabalho odioso
levado a cabo pelo socialismo.
Falando da sua tradução, Peter
Sloterdijk acentua um elemento do livro: nele não há o trabalho. Ou
melhor, até existe, mas é um trabalho completamente esquisito,
desprovido de tudo que podemos imaginar que seja um trabalho: contar
estrelas. Sloterdijk admira: trata-se de uma forma inusual de trabalho.
Ora, na verdade, trata-se do sonho contra o real, contra o trabalho.
Esse é o fio condutor.
As traduções simultâneas não me parecem
ser frutos de um desejo ingênuo de dar ao povo alemão, mais uma vez, o
direito ao sonho. As levas de deserdados do mundo estão batendo às
portas dos cantões ricos da Europa. A grande estufa europeia acordou do
seu sonho de pós-Guerra Fria. Então, não se trata de buscas para a
recuperação de sonho ou capacidade para sonhar, mas de olhar
criticamente como ele foi possível, como ele embalou o que o próprio
Sloterdijk diz que seu país passou na última década, uma Belle Époque
tardia.
Sabemos bem o quanto a Alemanha, após os
esforços de recuperação da Guerra e, em seguida, após o duro trabalho
de reunificação de 1989, respirou ares de uma invernada capaz de
celebrar o mimo. Rica, poderosa, sem dramas militares, democrática, a
Alemanha da última década mostrou-se longe de um lugar ruim. Durante
toda a crise mundial mais recente, sobreviveu de maneira a não colocar
seu povo sob sofrimento. Chegou mesmo a poder ajudar vizinhos. Ora,
talvez agora seja o momento de entender os livros que buscam sonhos e
inoculam sonhos, para saber como que, por uma oportunidade pequena, os
povos sonham. Entender a cultura da dureza que é a cultura alemã, ao
menos aos olhos de outros, é uma coisa. Mas entender que a cultura alemã
é também a cultura que agarra pequenas oportunidades de sonhos, parece
ser uma tarefa mais difícil. Aliás, hoje a Alemanha talvez represente,
com os Estados Unidos, o símbolo da sociedade da leveza. São essas
sociedades que têm agora na soleira de suas portas milhares de
desgarrados.
O pequeno príncipe volta para o
público alemão em duas traduções grandiosas. Como será recebido? Ora,
há mercado para tal. Cultura e capitalismo sabem disso. E da parte do
segundo polo, o filósofo e o escritor também sentiram que deveriam pegar
o livro do aviador.
A Alemanha é hoje uma bússola cultural,
em parceria, claro, com o que vem sempre sendo cumprido pelos Estados
Unidos. Se os intelectuais germânicos sentem que precisam trazer do
francês para o alemão o mundo em que a ocupação é o contar estrelas,
isso não nos deve passar despercebido. Talvez também estejamos, aqui no
Atlântico sul, não longe desse espírito, dessa “necessidade”. Talvez
todos nós do Ocidente tenhamos que elaborar uma arqueologia de nossa
capacidade de sonhar. Quem sabe não tenha chegado a hora não de louvar a
poesia, o amor, o sonho e a fantasia, mas de elaborar novas
compreensões desses nossos louvores para além das primeiras explicações
banais que eles provocam.
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* Paulo Ghiraldelli 58, filósofo.
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