sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

ESPÍRITOS LIVRES


Tatiana Salem Levy*
 

 "Sem sangue, a criação perde o sentido, perde 
a força que faz da arte um gesto de saúde. 
Em outras palavras, é o sangue que faz da arte, 
da escrita vida pulsante. Num momento em 
que o governo quer que os artistas se calem, 
criar será nosso maior grito."

Já faz um século e meio que Nietzsche cantou a morte de Deus e o niilismo advindo do vazio deixado por ela. Sem Deus, o homem de repente ficou sem resposta para perguntas sobre o sentido da existência. Se, afinal, caminhamos todos para o fim, e ninguém nos redimirá um dia, qual a razão de se estar aqui? Diante do niilismo gerado pelo esvaziamento de uma crença que transportava a força da vida para um além, Nietzsche afirmou o valor da arte e, com ele, o valor deste mundo onde vivemos, não daquele que supostamente viria com a eternidade.

Tanto tempo depois, parece que Deus está mais vivo do que nunca e anda se metendo onde não deve. Não por culpa dele, que talvez preferisse descansar no tal além, mas dos homens, que insistem em trazê-lo para a vida em sociedade, até mesmo para um lugar de onde havia sido banido, como a presidência de algumas repúblicas laicas feito a nossa. E, ao levarmos a religião para o Estado, terminamos por engendrar o movimento contrário ao de Nietzsche, negando o valor da arte, expulsando-a da polis.

No caos político dos últimos anos no Brasil, uma parte significativa da população vociferou que artista era sinônimo de vagabundo acostumado a "mamar nas tetas do Estado". Vimos crescer um ódio assustador aos artistas, como se fossem o mal da sociedade. Nem os fascismos do século passado detestaram tanto a arte. O que aconteceu no Brasil foi um desprezo brutal à expressão artística - claro que isso se deve também a uma banalização do pensamento, à falta de educação e contato com a arte, mas não só. Deve-se, acima de tudo, à afirmação de uma moral religiosa baseada na família tradicional, na suposta ordem, numa sociedade que se pretende distante da transgressão.

 "O governo que tomou posse no dia 1º já havia 
deixado claro não ser amigo das artes, 
anunciado cortes na Lei Rouanet, ou da própria lei. 
Não teve pena nem vergonha de extinguir 
o Ministério da Cultura e incluir a pasta 
no Ministério da Cidadania."

De repente, são os artistas que se veem diante de um abismo - e com esse abismo pode advir outro niilismo. Afinal, lutamos tanto para o cinema brasileiro se expandir, para a literatura ser divulgada e traduzida, para as artes plásticas circularem pelas maiores instituições internacionais, e agora parece que vão nos tirar tudo, o fomento sem o qual a arte deixa de existir em qualquer lugar do planeta? Seremos banidos, excluídos, tratados como seres indesejados?

O governo que tomou posse no dia 1º já havia deixado claro não ser amigo das artes, anunciado cortes na Lei Rouanet, ou da própria lei. Não teve pena nem vergonha de extinguir o Ministério da Cultura e incluir a pasta no Ministério da Cidadania. Estamos vendo escorrer tudo aquilo em que acreditamos e construímos a duras penas ao longo das últimas décadas. Quem era vivo nos anos 90 com certeza se lembra do choque que foi para o audiovisual a política do então presidente Collor, tornando o cinema brasileiro, que tinha sido tão potente, uma produção escassa.

É preciso, mais do que nunca, lembrarmos a potência da arte. Que os artistas do Brasil acordem todos os dias e se digam que vão resistir, e a melhor forma de resistir, nesse caso, é continuar criando, transgredindo, reinventando valores, desorganizando a ordem que acredita que menino deve vestir azul e menina deve vestir rosa. Nesse momento em que nos sentimos tão desanimados diante da falta de sentido, devemos criar sentidos, afirmar a estética. Afinal, como disse Nietzsche em "O Nascimento da Tragédia", "só como fenômeno estético se justificam a existência e o mundo".

É um bom momento para (re)lermos Nietzsche e sua filosofia, que busca a afirmação da existência. Um grande "sim" ao mundo - a este mundo daqui, não a outro -, é disso que precisamos. Em sua luta contra o niilismo, Nietzsche encontra na arte a pulsão da vida, a recriação do mundo e dos valores gastos. 

 "Nietzsche define o niilismo como falta de uma meta, 
falta da resposta ao porquê da existência. 
Uma espécie de doença, sem dúvida, 
que mina a alma. 
A arte aparece, então, 
como saúde."
 
Lembremos Zaratustra, que "aos 30 anos de idade deixou sua pátria e o lago de sua pátria e foi para as montanhas" ("Assim Falou Zaratustra", Companhia das Letras, trad. Paulo Cesar de Souza). Dez anos depois, desceu das montanhas e, ao anunciar que Deus estava morto, anunciou também seu amor aos homens. Um filósofo poeta que, embora não fosse ouvido pelo povo, continuava falando, dizendo preciosidades que hoje estampam camisetas, como: "É preciso ter ainda caos dentro de si, para poder dar à luz uma estrela dançante" ou: "Eu acreditaria somente num deus que soubesse dançar."

Nietzsche define o niilismo como falta de uma meta, falta da resposta ao porquê da existência. Uma espécie de doença, sem dúvida, que mina a alma. A arte aparece, então, como saúde. No pequeno artigo "A Literatura e a Vida", o filósofo francês Gilles Deleuze retoma essa ideia lançada por Nietzsche e fala do escritor como um médico. Acho que é esse o papel do artista numa sociedade que tem se revelado doente na intolerância à diferença, que não aceita os "espíritos livres" e quer que sejamos todos iguais, não em termos econômicos, mas em termos morais. A doença da intolerância deprime todos aqueles que não se enquadram nas regras predefinidas. A arte e sua potência surgem aqui como forma de resistência, de reinvenção do mundo.

"Onde não encontrei o que precisava, tive que obtê-lo à força de artifício, de falsificá-lo e criá-lo poeticamente para mim (- que outra coisa fizeram sempre os poetas? Para que serve toda a arte que há no mundo?)", afirma Nietzsche na introdução a "Humano, Demasiado Humano" (Companhia das Letras, trad. Paulo César de Souza). Este parece um bom caminho para os dias atuais no Brasil e em todos os países onde voltaram ao poder os valores ultraconservadores cujo lema "menino de azul e menina de rosa" é apenas a ponta do iceberg.

Foi assim que Nietzsche inventou como companhia, para manter a alma alegre em meio a muitos males, os "espíritos livres". Como estamos precisando inventar mais espíritos livres em meio a tanto conservadorismo! "Ai de nós!", profetiza Zaratustra, "aproxima-se o tempo em que o homem já não dará à luz nenhuma estrela". Lutemos, então, contra essa profecia, para, com o nosso caos, dar à luz muitas estrelas dançantes.

Lembremos de Chico e Caetano, de Glauber, do Teatro Oficina e de tantos artistas que se comprometeram durante a ditadura militar em fazer da arte um grito de vida. São momentos distintos, é verdade. Não estamos numa ditadura, Bolsonaro foi eleito pelo voto. Isso não nos assusta menos, afinal, grande parte da população está de acordo com a ideia de que o Estado laico deve ser invadido pela moral religiosa e não se escandaliza, para dar um exemplo, com o assassinato de um rapaz na avenida Paulista pelo simples fato de ser homossexual, colocando em risco a liberdade de cada um.

No trecho sobre o ler e escrever, afirma o poeta Zaratustra: "De tudo escrito, amo apenas o que se escreve com o próprio sangue. Escreve com sangue: e verás que sangue é espírito". Sem sangue, a criação perde o sentido, perde a força que faz da arte um gesto de saúde. Em outras palavras, é o sangue que faz da arte, da escrita vida pulsante. Num momento em que o governo quer que os artistas se calem, criar será nosso maior grito. E a quem acha que artista é vagabundo que "mama nas tetas do Estado", indico Nietzsche mais uma vez, e suas sábias palavras: "Todos os grandes (artistas) foram grandes trabalhadores, incansáveis não apenas no inventar, mas também no rejeitar, eleger, remodelar e ordenar." Pablo Picasso dizia que quando a inspiração chegasse iria encontrá-lo trabalhando, desmitificando, como Nietzsche, a ideia de que artistas são gênios que não trabalham. Mas há gente parada no tempo, gente que às vezes até gosta de ir ao cinema ou ao teatro, mas acha que artista é vagabundo, e aquilo se faz por magia.

A gente sabe que os próximos anos serão assim: os artistas falam, o pessoal do governo ri de escárnio. Mas a gente tem que continuar falando assim mesmo, ou melhor: por isso mesmo. Falando, cantando, escrevendo, pintando, desorganizando, dançando. Nossa forma de resistir, de existir. Ninguém ouvia Zaratustra e, no entanto, ele está aqui. Afinal, "existem tantas coisas entre o céu e a terra com que somente os poetas sonharam!" e os efeitos mais poderosos da arte, como afirma Nietzsche em "Humano, demasiado humano", são "dobrar almas, mover pedras, humanizar animais."
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* Tatiana Salem Levy, doutora em letras e escritora, escreve neste espaço quinzenalmente E-mail: tatianalevy@gmail.com
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