sexta-feira, 18 de janeiro de 2019

INTOLERÂNCIA CROMÁTICA

José de Souza Martins*
  
"Num país em que as próprias cores estão subjugadas pelos códigos do passado pré-moderno e ainda se transformam em metáforas de Estado, os desafios atuais são mais do que partidários e políticos. São os do desenvolvimento desigual e do atraso cultural que dele resulta."


A manifestação da ministra da Família quanto às cores aceitáveis para roupas de menino e de menina está causando estranheza. Distinção cromática considerada obsoleta pelas mães de nossa sociedade de consumo, alimenta, no entanto, a carência de afirmação dos que temem a diversidade do moderno. Com a força de redes sociais, como as que asseguraram a chegada do novo governo ao poder, a ironia desconstrutiva da imagem dos governantes, que daí resulta, se espalha.

Apesar da justificativa oficial para a ideia antiquada, não é ela apenas metáfora. Expressa um tipo de mentalidade, que aqui persiste na vida cotidiana do homem comum, o que destoa de concepções das razões de Estado.

A distinção de que menino veste azul e menina, rosa, aqui se difundiu há tempos, por imitação de imagens do cinema americano e por indução do comércio de roupas infantis. Há uns 30 anos, ou 40, na incerteza do sexo da criança a nascer, adotou-se a roupa amarela ou a branca, supostamente neutras. O advento da possibilidade de conhecer-se o sexo da criança antes do nascimento, de certo modo, revigorou a polarização de azul e rosa.

A cor associada à criança não é de agora aqui no Brasil. No século XVIII, para cada criança que nascia de uma escrava, recebia a mãe uma peça de baeta vermelha para os cueiros, independentemente do sexo. Acreditava-se que a criança ficava protegida do mau-olhado, o vermelho como rebatedor da malignidade do olhar invejoso.

De vários modos, o costume ainda persiste entre nós. Em lugar do cueiro vermelho, na roupa dos bebês de pobres ainda há mães que atam uma fitinha vermelha, menino ou menina. Já os bebês de ricos recebem a figa de ouro, com uma correntinha colocada em seu pescoço. A figa representa o pênis penetrando a vagina e é tida, desde tempos antigos, como representação da fecundidade, antídoto da morte. Há quem faça figa quando passa um enterro.

Há anos, um fabricante de tintas usou uma frase para divulgar seus produtos e estimular a diversificação do gosto cromático da população brasileira: "Se todos gostassem do azul, o que seria do amarelo?”.

Quando eu era menino, no subúrbio operário de São Paulo, a maioria das casas era pintada de cor ocre. Minha mãe, que viera da roça, onde todas as casas eram branqueadas com tabatinga, um barro branco do brejo, decidiu que sua casa urbana seria cor-de-rosa. Coisa que muitos estranharam. Anos depois, pintou, ela mesma, sua segunda casa, de um verde bem suave e muito enjoativo. Nunca mais mudou de opinião cromática. Creio que foi porque ela se tornou evangélica e conservadora, muito resistente a todas as inovações, que considerava coisas do Diabo.

Naquela época, a cor do luto era preta. Mas havia distinções para não se confundir o sexo do morto. Caixão de homem era preto, de mulher era roxo, de moça virgem era branco, de criança ou era branco ou era azul claro. Era o código sexual dos mortos. No velório e no enterro, jamais flores vermelhas. Na roça, ainda é de tradição o belo cravo de defunto, amarelo.

Os parentes dos mortos exibiam sinais do luto. Na manga do paletó dos homens era costurada uma braçadeira preta. Ou então, uma tarja preta na gola do paletó. Com as mulheres, o luto era mais complicado. A viúva passava a vestir, imediatamente, vestido preto. Em sua falta, uma cor neutra, enquanto todas suas roupas de uso cotidiano iam para uma grande lata de água, colocada ao fogo, para ferver. Nela, se diluía corante preto, que era vendido em armazéns e lojas, para tingir a roupa.

Lembro de vizinhas conversando com minha mãe, viúva, sobre a duração do chamado luto pesado, dominado pelo preto absoluto. Depois de um ano, seria tolerado o luto um pouco mais leve: saia preta e blusa preta com bolinhas brancas. Seis meses depois, saia cinza e blusa branca com bolinhas pretas. Era o chamado meio-luto. Na opção por cores neutras, muitas pessoas, especialmente mulheres, ainda hoje guardam o luto ou o meio-luto pela vida inteira, ou pelo marido que se foi ou pelos filhos que morreram.

Em algumas regiões do Brasil, como o Nordeste e o Norte, o vermelho é execrado, como cor do maligno. Em minhas viagens de pesquisa, nessas regiões e na zona rural de todas, sempre fui bem recebido quando trajava camisa azul e calça jeans azul, menos bem recebido quando a camisa era de outra cor. São regiões de muitos devotos do padre Cícero, que adotam a cor azul do manto de Nossa Senhora como cor do sagrado.

Num país em que as próprias cores estão subjugadas pelos códigos do passado pré-moderno e ainda se transformam em metáforas de Estado, os desafios atuais são mais do que partidários e políticos. São os do desenvolvimento desigual e do atraso cultural que dele resulta.
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* José de Souza Martins é sociólogo, membro da Academia Paulista de Letras e autor de Uma Sociologia da Vida Cotidiana (Contexto), dentre outros. Escreve neste espaço semanalmente
Fonte: https://www.valor.com.br/cultura/6069347/intolerancia-cromatica
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