sábado, 26 de janeiro de 2019

Os desumanos

Lya Luft*

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Uma amiga me pergunta se acho que os homens, no fundo, temem as mulheres. Não acho não, mas com certeza sermos diferentes provoca suspeitas às vezes irreparáveis.

Talvez na era dos trogloditas ou antes, essa criatura esquisita "que sangra todo mês e não morre", ou que de repente se retorce e dela brota um outro ser humano, deve ter causado muito assombro. Nunca saberemos. Estudiosos e entendidos falam até hoje desse estranhamento original. Teorias, desbundes, revoluções morais e imorais devem com certeza ter atenuado isso, ou liquidado de vez. Mas algo restou e ainda se revela seguidamente explodindo em violência.

Cada vez que ouço notícias de espancamento ou morte de mulheres - sim, feminicídio, usemos o termo já que ele existe -, me espanta como é possível que mulheres não débeis mentais nem fisicamente, suportem companheiros que ano após ano, dia após dia, as maltratam. E se (rarissimamente) conseguem uma ordem judicial de afastamento físico dele, o cavalheiro quase sempre a desrespeita: pois leis aqui são feitas para não se respeitar, e a punição quase inexiste. Algumas, que eu sei, depois de conseguirem afastar o truculento de casa, o chamam de volta porque não sabem viver sem ele. Dão chancela ao título de um livrinho que há muitos anos alguém me mostrou: Sou Infeliz, mas Tenho Marido.

O convívio com alguém grosseiro e violento pode ser a única saída que algumas divisam. Ou têm no fundo mais fundo algo de masoquista: apanho porque mereço, sou maltratada porque não valho grande coisa.

O assassinato de centenas, milhares de mulheres no Brasil me dá arrepios: me gela a alma saber que nos matam porque tomaram um porre, porque desejam outra, porque nossa presença, nossa voz, os irrita, porque estão de mau humor, perderam o emprego ou a amante, ou simplesmente, como disse certa vez um adolescente sequestrador de um amigo meu, "hoje a gente saiu de casa a fim de matar alguém". Quanto mais tempo - este meu tempo - passa, menos entendo muitíssimas coisas, entre elas está: o que falta em nossas leis, nossa cultura e moral, para que haja essa banalização de assassinatos de mulheres? O que sentem, pensam, os assassinos? Tive raiva, matei. Estava irritado, esfaqueei. Perdi o resto do salário no jogo, decapitei. Queria dormir e ela só reclamava, esquartejei.

Que chancela maldita dá permissão para esses horrendos fatos? Por qual parcela disso somos responsáveis, nós, mulheres, nós, vítimas? Humildade abjeta, solidão terrível, inércia, alienação, uma eterna culpa vil que nos faz oferecer o pescoço, o coração, ou a vida?

Não sei. Nunca entenderei. Mas não são só as leis profundamente falhadas, a segurança incrivelmente relapsa, a escolha trágica de parceiros monstruosos, que permitem esses crimes: alguma coisa em nós, emocional, cultural, psíquica, ancestral, nos faz vitimas fáceis?

Não sei. Não sei se quero saber. Mas, hoje, quando liguei a TV nos noticiários e mais uma vez, como quase todos os dias, ouvi falar de um assassinato de mulher por seu parceiro, não havia nada a fazer senão vir ao computador e escrever qualquer coisa para desabafar, para esbravejar, clamar, partilhar. O que há conosco, humanos tão desumanos?
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* Escritora
Fonte:  http://flipzh.clicrbs.com.br/jornal-digital/pub/gruporbs/acessivel/materia.jsp?cd=3b47e9cf8d52bd7974533a467facda53 26/01/2019
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