Elton Vitoriano Ribeiro SJ*
No dia 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou o caráter pandêmico da COVID-19. A mudança de classificação, antes entendida como uma epidemia localizada, ocorreu por causa da rápida e abrangente disseminação geográfica do vírus. Da China para a Europa, da Europa para a América, desses lugares para o resto do mundo. Em pouco tempo tínhamos a primeira, e verdadeiramente global, pandemia da modernidade. Em uma escala de tempo muito curta víamos um crescente e alarmante nível de contaminação global. A partir disso, medidas biopolíticas foram tomadas: monitoramentos, protocolos, controles de fronteiras, planos de ação, fechamentos, paralisações e a principal de todas, medidas biomédicas para o enfrentamento do vírus.
Imediatamente o termo epidemia (sobre, acima do povo) que é usado para designar uma doença de caráter transitório, mas que ataca simultaneamente um grande número de pessoas em um determinada região, não servia mais. Agora temos uma pandemia (todo o povo), ou seja, uma doença epidêmica que se alastra amplamente contaminado um grande, por vezes gigantesco, número de pessoas. Novamente, e agora mais do que nunca, medidas biopolíticas são necessárias para o enfrentamento da pandemia. Na China, controle social e tecnológico. Na Europa, medidas sanitárias combinadas com uma ampla restrição de mobilidade. No Brasil e nos EUA, negacionismo infantil e perigoso. Cada governo com suas medidas biopolíticas enfrentaram, ou negaram, a pandemia.
Os termos biopolítica e biopoder são importantes para nos ajudar a compreender essa narrativa. O controle político da vida (bios) para melhorar a vida humana faz parte de nossa forma de governar, de nossas instituições e de nosso imaginário social. Por exemplo, a preocupação biopolítica dos governos com a saúde pública tem diminuído a taxa de mortalidade infantil, aumentado a expectativa de vida, e nos dado uma qualidade de vida melhor do que a de nossos antepassados. Nossas empresas produzem uma infinidade de bens de consumo que qualificam, facilitam e otimizam nossas vidas. Não é exagero dizer que todas as práticas políticas e de poder, dos governos e instituições, se voltam para a vida, seus processos, suas necessidades, seus limites e suas possibilidades. Saúde pública, medicina, educação, direito, finança, organização social, esporte, lazer, cultura, religião, são apenas alguns exemplos que poderíamos elencar onde o controle biopolítico da vida se faz presente para o bem e para o mal. A partir daí, a biopolítica se torna a chave interpretativa, hermenêutica, para todas as análises críticas das formas de vida contemporâneas e das formas de poder político contemporâneo.
Para descrever essa complexa rede de relações entre a pandemia da COVID-19 e a sociedade, surge um novo termo: sindemia. Na verdade, o que temos não é mais uma pandemia, mas propriamente, uma sindemia. Esse conceito, sindemia, foi usado pelo médico e antropólogo norte-americano Merrill Singer em 1990. Sindemia é um neologismo que une duas palavras “epidemia (sobre o povo)” e “sinergia (junto – trabalho)”. Ele usou esse termo para explicar a situação onde duas ou mais doenças se unem em um determinado contexto, geralmente nocivo, que é potencializado por fatores sociais e ambientais e, por isso mesmo, potencializa os efeitos negativos das interações dessas doenças no ambiente. Depois, em 2009, Singer desenvolveu e aprofundou esse argumento em Introduction to Syndemics: A Critical Systems Approach to Public and Community Health.
Esse termo voltou à tona com o editorial de Richard Horton na prestigiosa revista The Lancet (26/09/2020) intitulado: COVID-19 is not a Pandemic. Nesse texto, Horton lembrava que sindemias são caracterizadas por interações biológicas e sociais. Portanto, além do problema do contágio, das infecções e da doença, entram em jogo as condições ambientais, culturais, políticas, econômicas. Especialmente em países mais pobres e em desenvolvimento, os problemas educacionais, de empobrecimento, de desemprego, problemas de saneamento básico, de tratamento de resíduos etc. Ou seja, o que acontece é um conjunto de problemas, biológico-sociais, interagindo sinergicamente e ampliando as complicações e dificuldades já existentes tornando a sindemia uma verdadeira catástrofe, ou melhor, uma catástrofe biopolítica.
Diante desse cenário descrito, a solução, evidentemente, deve ser um agir biopolítico. Primeiramente, organizando e articulando uma cooperação global porque ninguém pode proteger-se ou resolver a sindemia sozinho. Nesse sentido a OMS tem um importante papel, especialmente, no monitoramento da evolução dos contágios e mortes, e na organização das vacinações para países pobres. Depois, agindo em várias frentes por meio de políticas públicas de aquisição de vacinas, organização do sistema de saúde para um acesso universal dos doentes, ajudando na manutenção dos empregos e na criação de novos postos de trabalhos, proporcionando um auxílio financeiro para os que precisam, especialmente, de uma ajuda para se alimentarem, promovendo campanhas educativas de conscientização da situação e das soluções médicas como distanciamento, vacinas e isolamentos etc. E, finalmente, lutando diligentemente contra a desigualdade social e o empobrecimento da população que, em última instância, agravam muito os problemas mencionados. Nas palavras finais de Horton: “A menos que os governos elaborem políticas e programas para reverter as profundas disparidades, nossas sociedades nunca estarão verdadeiramente seguras da COVID-19”. Portanto, a Sindemia da COVID-19 é uma questão de biopolítica.
*Elton Vitoriano Ribeiro SJ é professor e pesquisador no departamento de Filosofia e reitor da FAJE.
Texto da Revista Lancet: <https://www.thelancet.com/action/showPdf?pii=S0140-6736%2820%2932000-6>. Acesso em 01.Maio.2021.
Imagem: exame.com via Google.
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