Anselmo Borges*
Na Igreja, haverá líderes no, com e para o Povo de Deus, para celebrar nas comunidades e com as comunidades a Eucaristia: a vida, a morte e a ressurreição de Jesus e da Humanidade inteira. A Eucaristia é memória da última Ceia e também de todas as refeições que Jesus tomou concretamente com pecadores e excluídos, precisamente para indicar a presença e actuação do Reino de Deus. Esses banquetes tinham causado profunda impressão nos discípulos. Jesus aliás comparou a realidade do Reino de Deus a bodas e banquete. Não se trata, pois, do padre-sacerdote do culto ritual-sacrificial. Jesus rejeitou o sacerdócio judaico e o culto sacrificial do seu tempo, e nada indica que quisesse instituir um novo culto sacrificial. Ele próprio não era “sacerdote” nem nenhum dos “Doze” nem Paulo. As suas relações com o Templo e o culto nele realizado pelos sacerdotes foram de ruptura, de tal modo que foi o sacerdócio judaico que o levou à cruz. No Novo Testamento, a palavra “sacerdote” no sentido sacrificial-cultual foi evitada. A concepção sacrificial da Eucaristia, que implica a introdução do sacerdote, é posterior, tendo na sua base sobretudo a vontade de impedir a acusação de ateísmo pelo facto de os cristãos se recusarem a prestar culto aos deuses e não oferecerem sacrifícios. Mas então o “povo sacerdotal” transformou-se na “Igreja dos padres”, e, esquecendo a Eucaristia como memorial do amor incondicional de Cristo pela Humanidade até ao fim na vida e na morte, a sua compreensão como sacrifício contribuiu para a concepção do Deus que precisa do sangue das vítimas, a começar pelo sangue do próprio Filho, em ordem a aplacar a sua ira. Deste modo, porém, continuou a história do deus sádico Moloch, em nome do qual é possível legitimar todo o sangue derramado. De facto, se Deus precisa, para ser aplacado na sua ira divina, do sangue de vítimas e até do do próprio Filho, porque é que nós não havemos também de poder derramar sangue e de vingar-nos?
Não
se pode esquecer que o divino andou sempre vinculado ao belo, de tal
modo que não há encontro autêntico com Deus sem o encontro com a beleza.
Ora, é necessário reconhecer que frequentemente as celebrações das
comunidades cristãs são confrangedoras no seu mau gosto. Quando nas
igrejas se ouve a música que se ouve e se tem de escutar as homilias
que se sabe, é de espantar como é que há ainda tanta gente que vai à
igreja. São necessárias celebrações familiares e belas, em que
pré-apareça e se experiencie a beleza que nos redime de um quotidiano
tantas vezes vulgar e vazio. Por outro lado, em casos especiais, como na
situação de confinamento, por exemplo, nunca se pode esquecer que, como
fizeram as primeiras comunidades, há possibilidade da celebração em
casa.
Será
de acrescentar que hoje, oficialmente, só se consideram sete
sacramentos. Mas Santo Agostinho falava em dezenas. E com razão, pois,
se no Antigo Testamento Deus fala através de sinais e se no Novo
Testamento Jesus fala mediante sinais, também a Igreja o deve fazer.
Trata-se de sinais que mostram que o Reino de Deus está presente,
trazendo salvação e força à Humanidade, manifestando a bondade de Deus e
a sua solicitude. O que é preciso é adaptar e transformar o universo
simbólico da Igreja para os novos tempos e necessidades.
Concluindo.
Como escreveu J. A. Pagola, “O objectivo de Jesus foi introduzir no
mundo o que ele chamava ‘o Reino de Deus’, uma sociedade estruturada de
maneira justa e digna para todos, como Deus a quer. Quando Deus reina no
mundo, a Humanidade progride em justiça, solidariedade, compaixão,
fraternidade e paz. A isto se dedicou Jesus com verdadeira paixão. Por
isso foi perseguido, torturado, executado. ‘O reino de Deus’ foi o
absoluto para ele”. A conclusão é evidente: a força, o motor, o
objectivo, a razão e o sentido último do cristianismo é “o Reino de
Deus”, não outra coisa. “O critério para medir a identidade dos
cristãos, a verdade de uma espiritualidade ou a autenticidade do que faz
a Igreja é sempre ‘o Reino de Deus’. Um reino que começa aqui e alcança
a sua plenitude na vida eterna.” Assim, concluindo: “Uma das
‘heresias’ mais graves que se foi introduzindo no cristianismo é fazer
da Igreja o absoluto. Pensar que a Igreja é o centro, a realidade à qual
tudo o resto se há-de subordinar; fazer da Igreja o ‘substituto’ do
Reino de Deus; trabalhar pela Igreja e preocuparmo-nos com os seus
problemas, esquecendo o sofrimento que existe no mundo e a luta por uma
organização mais justa da vida.”
O
cristão acredita que o Deus Pai de Jesus Cristo é o Criador do mundo.
Por isso, esta vida sobre a terra não é uma passagem ou um simples
treino para a vida verdadeira do Além. Não! Esta existência neste mundo,
aqui e agora, é já vida real e verdadeira, de salvação, com Deus. Mas
ainda não somos o que seremos. Aguardamos a consumação e céus novos e
uma terra nova. Uma religião que esqueça a Terra está inevitavelmente
sob a suspeita de ilusão, como um mundo sem transcendência fica
inevitavelmente sob a ameaça da desumanidade.
Como
escreveu E. Schillebeeckx, quando a Igreja vive seguindo Jesus na
oração e na libertação dos homens e das mulheres, “a fé na ressurreição
não conhece por isso mesmo qualquer crise”. Mas, por outro lado, é
preciso reconhecer e proclamar que “é melhor não ter fé na vida eterna
do que confessar um Deus que, com o olhar num Além melhor, rebaixa,
empequenece e humilha politicamente os seres humanos no ‘aqui e agora’”.
*Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN | 8 MAIO 2021
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