quinta-feira, 13 de maio de 2021

JESUS E A IGREJA. 4

Anselmo Borges*

 

Na Igreja, haverá líderes no, com e para o Povo de Deus, para celebrar nas comunidades e com as comunidades a Eucaristia: a vida, a morte e a ressurreição de Jesus e da Humanidade inteira. A Eucaristia é memória da última Ceia e também de todas as refeições que Jesus tomou concretamente com pecadores e excluídos, precisamente para indicar a presença e actuação do Reino de Deus. Esses banquetes tinham causado profunda impressão nos discípulos. Jesus aliás comparou a realidade do Reino de Deus a bodas e banquete. Não se trata, pois, do padre-sacerdote do culto ritual-sacrificial. Jesus rejeitou o sacerdócio judaico e o culto sacrificial do seu tempo, e nada indica que quisesse instituir um novo culto sacrificial. Ele próprio não era “sacerdote” nem nenhum dos “Doze” nem Paulo. As suas relações com o Templo e o culto nele realizado pelos sacerdotes foram de ruptura, de tal modo que foi o sacerdócio judaico que o levou à cruz. No Novo Testamento, a palavra “sacerdote” no sentido sacrificial-cultual foi evitada. A concepção sacrificial da Eucaristia, que implica a introdução do sacerdote, é posterior, tendo na sua base sobretudo a vontade de impedir a acusação de ateísmo pelo facto de os cristãos se recusarem a prestar culto aos deuses e não oferecerem sacrifícios. Mas então o “povo sacerdotal” transformou-se na “Igreja dos padres”, e, esquecendo a Eucaristia como memorial do amor incondicional de Cristo pela Humanidade até ao fim na vida e na morte, a sua compreensão como sacrifício contribuiu para a concepção do Deus que precisa do sangue das vítimas, a começar pelo sangue do próprio Filho, em ordem a aplacar a sua ira. Deste modo, porém, continuou a história do deus sádico Moloch, em nome do qual é possível legitimar todo o sangue derramado. De facto, se Deus precisa, para ser aplacado na sua ira divina, do sangue de vítimas e até do do próprio Filho, porque é que nós não havemos também de poder derramar sangue e de vingar-nos?


Não se pode esquecer que o divino andou sempre vinculado ao belo, de tal modo que não há encontro autêntico com Deus sem o encontro com a beleza. Ora, é necessário reconhecer que frequentemente as celebrações das comunidades cristãs são confrangedoras no seu mau gosto. Quando nas igrejas se ouve a música que se ouve e se tem de escutar  as homilias que se sabe, é de espantar como é que há ainda tanta gente que vai à igreja. São necessárias celebrações familiares e belas, em que pré-apareça e se experiencie a beleza que nos redime de um quotidiano tantas vezes vulgar e vazio. Por outro lado, em casos especiais, como na situação de confinamento, por exemplo, nunca se pode esquecer que, como fizeram as primeiras comunidades, há possibilidade da celebração em casa. 


Será de acrescentar que hoje, oficialmente, só se consideram sete sacramentos. Mas Santo Agostinho falava em dezenas. E com razão, pois, se no Antigo Testamento Deus fala através de sinais e se no Novo Testamento Jesus fala mediante sinais, também a Igreja o deve fazer. Trata-se de sinais que mostram que o Reino de Deus está presente, trazendo salvação e força à Humanidade, manifestando a bondade de Deus e a sua solicitude. O que é preciso é adaptar e transformar o universo simbólico da Igreja para os novos tempos e necessidades.


Concluindo. Como escreveu J. A. Pagola, “O objectivo de Jesus foi introduzir no mundo o que ele chamava ‘o Reino de Deus’, uma sociedade estruturada de maneira justa e digna para todos, como Deus a quer. Quando Deus reina no mundo, a Humanidade progride em justiça, solidariedade, compaixão, fraternidade e paz. A isto se dedicou Jesus com verdadeira paixão. Por isso foi perseguido, torturado, executado. ‘O reino de Deus’ foi o absoluto para ele”. A conclusão é evidente: a força, o motor, o objectivo, a razão e o sentido último do cristianismo é “o Reino de Deus”, não outra coisa. “O critério para medir a identidade dos cristãos, a verdade de uma espiritualidade ou a autenticidade do que faz a Igreja é sempre ‘o Reino de Deus’. Um reino que começa aqui e alcança a sua plenitude na vida eterna.” Assim,  concluindo: “Uma das ‘heresias’ mais graves que se foi introduzindo no cristianismo é fazer da Igreja o absoluto. Pensar que a Igreja é o centro, a realidade à qual tudo o resto se há-de subordinar; fazer da Igreja o ‘substituto’ do Reino de Deus; trabalhar pela Igreja e preocuparmo-nos com os seus problemas, esquecendo o sofrimento que existe no mundo e a luta por uma organização mais justa da vida.”


O cristão acredita que o Deus Pai de Jesus Cristo é o Criador do mundo. Por isso, esta vida sobre a terra não é uma passagem ou um simples treino para a vida verdadeira do Além. Não! Esta existência neste mundo, aqui e agora, é já vida real e verdadeira, de salvação, com Deus. Mas ainda não somos o que seremos. Aguardamos a consumação e céus novos e uma terra nova. Uma religião que esqueça a Terra está inevitavelmente sob a suspeita de ilusão, como um mundo sem transcendência fica inevitavelmente sob a ameaça da desumanidade.


Como escreveu E. Schillebeeckx, quando a Igreja vive seguindo Jesus na oração e na libertação dos homens e das mulheres, “a fé na ressurreição não conhece por isso mesmo qualquer crise”. Mas, por outro lado, é preciso reconhecer e proclamar que “é melhor não ter fé na vida eterna do que confessar um Deus que, com o olhar num Além melhor, rebaixa, empequenece e humilha politicamente os seres humanos no ‘aqui e agora’”.

 
*Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 8 MAIO 2021

 

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