Especialistas veem um país em estado de negação
Joel Birman: “A polarização que se deu nos últimos três anos, o modo como a extrema direita esgrime contra tudo, tudo isso é marcado pela destrutividade” — Foto: Marcos Ramos/Agência O Globo
Por Amália Safatle — Para o Valor, de São Paulo
Fosse o Brasil uma pessoa, dificilmente se levantaria do berço esplêndido para se deitar em um divã. É preciso admitir a existência de problemas para buscar um tratamento psicanalítico, mas esse sujeito se encontra em estado de negação. O negacionismo, palavra tão em voga, decorre da tentativa de fugir do trauma, um núcleo perturbador, constitutivo do sujeito, que portanto todo mundo tem, em maior ou menor grau. Mas, em vez de atravessar seu trauma, essa pessoa prefere contornar o sofrimento e optar por ideias exógenas, que lhe são mais convenientes.
O Brasil já nutria uma péssima autoimagem, que agora está evoluindo para um comportamento autodestrutivo
Essa saída cobra seu preço. O sujeito age como um adolescente, embora já esteja envelhecendo, tendo acumulado questões não resolvidas de um passado doloroso, marcado por violência, autoritarismo e desilusões em série. A idade adulta chegou da pior forma, tornando esse indivíduo melancólico ou até mesmo depressivo. Mas há caminhos de cura - se o paciente aceitar ajuda terapêutica.
Mário Corso diz que o Brasil é “um país de pensamento
autoritário latente que apresenta alguns momentos de democracia e bons ventos”
— Foto: Reprodução/Youtube
Este é um conjunto de visões descritas por psicanalistas convidados pelo Valor a imaginar um certo paciente Brasil, seus traços de personalidade, dores e crises. O exercício de imaginação foi encarado como um jogo por alguns, como Ricardo Goldenberg. Outros, como Sérgio de Castro, membro da Escola Brasileira de Psicanálise, viram como válida a extensão da psicologia individual para uma dimensão social.
Embora entenda a sociologia e a antropologia como campos mais apropriados para pensar o Brasil, Goldenberg não se furta a um diagnóstico psiquiátrico: o país tornou-se um psicótico parafrênico, que é uma das manifestações da esquizofrenia.
“O indivíduo sofre de um delírio que organiza uma interpretação da realidade - por exemplo, a Terra é plana, a covid é uma gripezinha, a cloroquina cura, há um complô comunista para dominar o mundo -, mas, fora dos assuntos delirantes, raciocina e conduz a vida como qualquer sujeito normal.” Segundo ele, a condução da pandemia de covid-19 expõe uma postura esquizofrênica, pois é como se o sujeito agisse para deixar adoecer um membro do seu corpo, tomando atitudes que levam à piora de seu estado de saúde.
Francisco Daudt: O país do futuro virou uma piada porque
esse futuro nunca chega. A esperança traz alento, mas também maltrata” — Foto:
Marcos Ramos/Agência O Globo
O psicanalista Mário Corso identifica traços de humor depressivo e lembra que o Brasil historicamente já nutria uma péssima autoimagem, como bem descreveu Nelson Rodrigues quando “diagnosticou” o complexo de vira-lata. O Brasil costuma falar mal e fazer troça de si mesmo, ao mesmo tempo que não tolera ser malfalado por alguém de fora.
Essa característica, no entanto, evolui para um comportamento autodestrutivo à medida que, segundo os especialistas, o governo promove um desmonte deliberado do seu patrimônio natural e social, como as áreas de meio ambiente e cultura. Corso cita como exemplo a Amazônia, onde as taxas de desmatamento aumentaram e a impunidade cresceu com o enfraquecimento dos órgãos de controle.
“Os discursos negacionistas são mais convenientes e fáceis de entender do que a complexidade do mundo”, diz Mário Corso
O presidente Jair Bolsonaro foi eleito em 2018 sob a promessa de extinguir os Ministérios da Cultura, que foi rebaixada a uma secretaria, e do Meio Ambiente, que hoje conta, segundo o Observatório do Clima, com o menor orçamento dos últimos 21 anos: R$ 1,8 bilhão previsto para 2021. No campo das negociações internacionais sobre clima, passou de ator protagonista a um pária, na visão de muitos observadores internacionais.
Para Corso, esses desmontes denotam um comportamento depressivo do paciente - que, por sinal, leva o nome de uma árvore, o dizimado pau-brasil. “O deprimido não joga fora qualquer coisa, ele abandona as coisas mais valiosas que possui. É um projeto de autossabotagem”, afirma.
Sérgio de Castro vê o trauma do sujeito-Brasil no longo
período da escravidão, que autorizou o exercício de uma violência
verdadeiramente desmedida — Foto: Reprodução/Youtube
Fora isso, a má gestão da pandemia, que já levou a milhares de mortes evitáveis, é mais um exemplo da manifestação do que Sigmund Freud (1856-1939) denominou de pulsão de morte, na avaliação de Joel Birman, psicanalista e professor titular do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. “A polarização que se deu nos últimos três anos, o modo como a extrema direita esgrime contra tudo e a maneira como as pautas do governo Bolsonaro se organizaram desde o início, tudo isso é marcado pela destrutividade”, avalia.
Além das políticas antiambientais, Birman cita como exemplos de pautas destrutivas as tentativas de suspender o limite de velocidade, de desobrigar o uso de cadeirinhas de bebês e crianças em automóveis e de flexibilizar o porte e a posse das armas, sabendo-se que isso pode facilitar o armamento de milicianos e retirar do Estado a prerrogativa de proteger a população.
Para Birman, o clima destrutivo já tinha sido prenunciado quando o então deputado Jair Bolsonaro homenageou um torturador da ditadura, Carlos Alberto Brilhante Ustra (1932-2015), durante a votação do impeachment de Dilma Rousseff e não sofreu punição. Ao contrário, ganhou as eleições presidenciais dois anos depois.
No campo da saúde, a defesa por parte do governo da imunidade de rebanho - cuja eficácia é questionada pela comunidade científica e vista como possível estímulo ao surgimento de novas variantes -, o tratamento precoce com remédios com ineficácia comprovada e o desprezo pelo uso de máscaras, vacinação e isolamento social somam erros em série. Após um ano de pandemia, ainda não existe um protocolo nacional para guiar a conduta médica. Mas a declaração do presidente é de que só houve acertos no enfrentamento da pandemia.
Tania Coelho dos Santos: “Foi traumática a história do
mensalão, do petrolão e tudo que a Lava-Jato desnudou. E sem comentários sobre
a gestão Bolsonaro” — Foto: Reprodução/Youtube
“Isso leva ao país um sentimento de abandono e desorientação, que contribui para o estado de melancolia”, afirma Birman. “E uma das características da melancolia é a perda de perspectiva. Vive-se hoje a impossibilidade de atestar um futuro possível”, diz.
A ironia é que isso ocorre justamente no aclamado “Brasil, um país do futuro”, expressão que dá título ao clássico livro de 1941 do austríaco Stefan Zweig, radicado no Rio de Janeiro durante a Segunda Guerra Mundial. “Esse mito fundante do país contemporâneo, esse sonho de brasilidade, fica a cada dia mais difícil de ser sustentado”, diz Birman, para quem o paciente Brasil se transformou radicalmente nos anos recentes. “Era alegre e acreditava na sua renovação, apesar de toda a miserabilidade e a desigualdade existentes desde sempre.”
No lugar da alegria, a tristeza e o desalento são, para o psicanalista Francisco Daudt, os sentimentos dominantes hoje. “Não só pelos mortos. Difícil dizer isso, mas as mortes são o sintoma. O país do futuro virou uma piada porque esse futuro nunca chega. É como na história da procura pelo grande amor, em que a pessoa fica entre a esperança e o desalento. Ela pensa: ‘desta vez, vai’. Aí sofre a desilusão. A esperança traz alento, mas também maltrata”, diz ele.
“Tenho ouvido muito as pessoas se perguntarem se ainda acreditam em algo”, conta Tania Coelho dos Santos, professora associada da UFRJ e membro da Associação Mundial da Psicanálise. Para ela, o paciente Brasil deu-se conta de que o tempo passou e os representantes eleitos decepcionaram muito. “Foi traumática a história do mensalão, do petrolão e tudo que a Lava-Jato desnudou. E sem comentários sobre a gestão Bolsonaro e a quantidade de situações vexatórias que temos atravessado”, diz.
Para Tania, esse paciente, que foi vítima de uma credulidade jovem e esperançosa, não consegue mais imaginar o próximo capítulo. Por isso, precisa abandonar a esperança juvenil do amanhã, parar de acreditar em soluções mágicas e na retórica vazia de lideranças populistas e encarar a urgência de reformas profundas e não cosméticas. Mas se encontra envelhecido muito antes de amadurecer.
“Não tem estabilidade democrática e está polarizado pelo ódio recíproco entre grupos políticos. A sonhada igualdade perante a lei deu lugar a uma fragmentação social em grupos identitários”, diz. Segundo ela, esse paciente se comporta como um adolescente que anda em tribos, em vez de assumir a maturidade, que pressupõe a boa convivência entre grupos e visões diferentes. Prevalece a visão dual, com linhas divisórias entre o bem e o mal, entre o amigo e o inimigo. Tania explica que esse é o fundamento de toda estrutura psíquica, um modo primitivo e infantil de ver o mundo. “O esforço da civilização é superar esse juízo, para que se possa compreender que há gradações.”
Ricardo Goldenberg: “A democracia no Brasil é uma exceção. A
norma é uma coisa arcaica, colonialista, uma relação de poder feudal” — Foto:
Reprodução/Facebook
Daudt comenta que, quando a humanidade era formada por grupos de caçadores e coletores, havia o princípio de que o estranho é sempre o inimigo. Ele vê uma regressão com a emergência desse traço primitivo: “Tudo hoje é investimento em tribo. Mesmo quando a pessoa desenvolve uma boa argumentação, frequentemente está investindo na demonização do estranho e do que lhe é oposto”.
A fragmentação em tribos, segundo Daudt, acarreta a perda de identidade nacional desse paciente-país, que passa a cultivar uma identidade tribal. Mas ele nota que o fenômeno não acomete apenas o Brasil. “A tribalização é um desses movimentos mundiais que são pendulares da humanidade. A nossa natureza humana é tirânica, a democracia é uma construção, e a tirania é um imediatismo. O imediatismo, por sua vez, é: ‘Um manda e o outro obedece’”, diz, referindo-se a uma fala de Eduardo Pazuello, ex-ministro da Saúde, a Bolsonaro.
A tribalização dos dias de hoje é reforçada por doses de dopamina que as redes sociais fornecem a esse paciente, segundo Daudt. Os “likes” alimentam os vícios. Esse paciente se vê com milhões de seguidores e percebe que as ideias horrorosas e as notícias falsas obtêm mais engajamento. E quanto menos maduro for o indivíduo, mais ele será seduzido por essa overdose de dopamina.
“Quanto mais o indivíduo causa, mais o algoritmo o premia. A treta, o insulto e a humilhação nas redes são práticas de sadomasoquismo”, avalia Daudt. Tais práticas violentas, obviamente, levam a uma deterioração na personalidade do sujeito. “O nome disso é corrupção. A corrupção não é só ladroagem, é também a deterioração, a degradação e a decadência. Quando um corpo apodrece, diz-se que ele está corrompido.”
O antídoto para a violência, portanto, está no respeito à diferença de visões e na garantia do estado de direito, dentro de um exercício democrático. E haja exercício. Sérgio de Castro lembra: “A civilização exige sacrifícios, dizia Freud”. Ou seja, esse paciente precisa fazer um esforço contínuo se quiser manter-se civilizado, porque isso não faz parte da constituição do seu ser.
Segundo Mário Corso, o Brasil não é um sujeito democrático que tem laivos de autoritarismo e tirania, mas justamente o oposto: “Um país de pensamento autoritário latente que apresenta alguns momentos de democracia e bons ventos”, diz.
Ricardo Goldenberg vai na mesma linha: “A democracia no Brasil é uma exceção. A norma é uma coisa arcaica, colonialista, uma relação de poder feudal”, diz o psicanalista. “Eu venho da Argentina e vivi a ditadura lá. O mais traumático de uma ditadura é que o Estado, a quem cabe cuidar de você, é o que o mata. Mas é cínico o suficiente para dizer que está cuidando de você. Eu vejo o mesmo discurso retornar ao Brasil neste momento, em nome do bem do povo brasileiro.”
Para entender a personalidade autoritária de que os psicanalistas falam, é preciso ir mais a fundo na história de vida desse paciente. “Não nos esqueçamos que o Brasil, ao mesmo tempo que afetuoso, é extremamente violento, e é claro que isso tem sua matriz no trauma.”
Castro explica que todo ser humano constitui a sua subjetividade a partir de um núcleo traumático, que é próprio de cada sujeito. “Todo mundo tem, cada um com seu tom, com suas particularidades.” Uma vez inscrito no período de constituição da pessoa, não se elimina. “O trauma é o núcleo de um certo disfuncionamento, a partir do qual as coisas rateiam, não funcionam bem. Do ponto de vista psicanalítico, não se trata de eliminá-lo, mas de tentar fazer disso o melhor uso possível.”
Feita a explicação, Castro apresenta uma hipótese, a de que o trauma do sujeito-Brasil está no longo período da escravidão. “A escravidão não foi só um modo de produção econômica, mas se tratou da posição de um ser humano diante de outro ser humano, o que já introduz aí um elemento forte de ordem subjetiva, portanto isso concerne à psicanálise. A convicção de que eu posso inclusive dispor da vida de outro ser humano a partir de uma decisão pessoal. Ou que eu posso encarcerar um outro ser humano à revelia e a partir de um sistema jurídico subjacente que me autoriza a isso.”
Não que todos os senhores de escravo fossem intimamente cruéis, mas a escravidão, segundo Castro, autorizou o exercício de uma violência verdadeiramente desmedida. “Será que é tão difícil perceber traços, resquícios, ecos dessa matriz traumática constitutiva do nosso país hoje em dia? Talvez não”, diz. Para Corso, o maior esqueleto guardado no armário é o da escravatura e o quanto ela ainda produz efeitos no imaginário. “O fato de o Brasil ter sido o último país a abolir a escravatura [nas Américas] é uma questão que ainda não foi tratada”, diz.
A esse trauma ele adiciona o da colonização predatória. “Fico lembrando das teses do meu falecido amigo Contardo [Calligaris, psicanalista morto em março], para quem o fantasma do Brasil é a imagem do colonizador, o sujeito que veio para cá explorar sem qualquer lei, apropriar-se das riquezas e ir embora. Isso suporta a ideia do escravo, de transformar o sujeito em um objeto”, diz.
Embora não se possa apagar o trauma constitutivo, Castro afirma que há como lidar com seus efeitos de formas distintas. “A pior veia é recusar o evento traumático. O negacionismo é uma tentativa que vai variar da canalhice a uma ignorância tola de acreditar que isso tornaria aquele evento inexistente”, diz ele. Em novembro de 2020, quando o cliente negro João Alberto Freitas foi espancado até a morte em uma loja do Carrefour, o vice-presidente Hamilton Mourão, em declaração à imprensa, negou a existência de racismo no Brasil. “Isso é uma coisa que querem importar aqui para o Brasil. Isso não existe aqui”, disse.
Corso descreve o trauma como uma espécie de buraco negro. “Tudo que você não elabora cria um espaço de não pensamento que tende a ser repetido e não entendido. Com isso, você não integra aquilo à sua personalidade.” Ele dá como exemplo o fato de a elite do Brasil pensar que este é um país branco, enquanto os Estados Unidos e a Europa nos veem como um pais mestiço ou negro.
O psicanalista explica que um sujeito traumatizado sabe que algo traumático aconteceu, mas não tem um discurso sobre aquilo. Na falta de um discurso próprio, um discurso exógeno toma o lugar, de preferência com algo que nega o fato. “Por isso fazem tanto sucesso os discursos negacionistas, que são mais convenientes e fáceis de entender do que a complexidade do mundo. As ideologias tornam as coisas mais simples, é assim ou assado. O negacionismo ainda oferece uma autoimagem melhor do que realmente somos”, diz. Refutar a Teoria de Darwin, por exemplo, é negar que o humano é apenas uma espécie agressiva de macaco que dominou a linguagem simbólica. “No projeto darwiniano não tem Deus. Somos apenas o fruto do caos que se organizou na forma de vida. Isso é muito insuportável”, diz.
O não pensamento, ainda explica Corso, é um jeito de fugir da verdade e criar uma realidade alternativa mítica, menos sofrida. O tratamento por meio de uma terapia é deixar o paciente contar a sua história de um jeito melhor, mais verdadeiro, e fazer as pazes com os fatos. Até porque, no fundo, o Brasil sabe da subjugação de negros e do assassinato de indígenas. É um país que fundou sua base genética no ventre materno de índias e negras, ao mesmo tempo que rejeitou a cultura dessas civilizações e lhe negou direitos. “Não houve uma miscigenação real e sim com alteridade de poder e subjugação do corpo.”
Isso ajuda, segundo ele, a explicar o complexo de vira-latas. “A gente pode enganar os outros, mas não a si mesmo. Se a pessoa ficar pegando identidades emprestadas, como vai saber quem de fato é? A grande dificuldade do Brasil é de apropriar-se de sua verdadeira identidade. Gosto muito da frase do historiador e jornalista Décio Freitas: ‘Ou bem o Brasil vai ser uma democracia racial ou não será nada’. A primeira coisa que o país precisa fazer para se tratar é assumir que é mestiço.” Enquanto não fizer isso, segundo Corso, continuará achando natural a aberrante disparidade econômica entre as classes sociais que adveio desse passado escravocrata.
Para superar o complexo de inferioridade, Joel Birman afirma que é preciso entender o que de real existe na condição de vira-latas: o fato de que o Brasil é racista, cultua o racismo estrutural há quatro séculos e trata de forma desigual os diversos setores da população.
O trauma da colônia escravocrata, ao não ser elaborado, repete-se na violência da desigualdade e do autoritarismo que desembocou na ditadura, segundo os psicanalistas. Já Tania Coelho dos Santos tem uma outra visão. “Não quero desvalorizar a importância do que resta enraizado no país com relação à escravidão e não estou dizendo que a violência não exista, mas vamos comparar Estados Unidos com o Brasil”, propõe. Para ela, o Brasil tem uma grande diferença em relação a outros países por causa da miscigenação. “Aqui, não é claro diferenciar o preto do branco; nos EUA, sim. Os americanos foram mais rápidos em se livrar da escravidão e, no entanto, não se livraram da violência inter-racial”, diz.
Para Tania, o traço mais marcante desse paciente-país é a dupla moral nos campos social, econômico e sexual, que o antropólogo Roberto da Matta bem descreve. “Somos o país da desigualdade perante a lei. Temos uma lei para os privilegiados - o recorrente ‘Sabe com quem está falando?’ - e outra para o cidadão comum.” Mas ela pondera que existe uma outra face dessa desigualdade: enquanto na ocupação legal e na economia formal existem fiscalização, multas e exigências burocráticas, na cidade informal a tolerância é a regra, com flexibilidade no que se refere aos direitos dos mais pobres de ocupar ilegalmente o solo e tolerância com camelôs e biroscas.
Ela argumenta que a história da Europa e de muitos lugares do mundo é fundada na guerra e de escravização dos vencidos. “Por isso eu não costumo falar do Brasil elegendo essa questão como uma questão principal”, diz a autora de “A cabeça do brasileiro no divã” (Sephora, 2008).
Outros países, no entanto, lidaram com os traumas ligados à violência e ao autoritarismo ao longo de sua história, como a Alemanha que revisitou o nazismo e o Holocausto.
Goldenberg cita o exemplo da Argentina, que, segundo ele, conseguiu de algum modo elaborar o trauma da ditadura militar. “A Argentina transformou a Esma [Escola Superior de Mecânica da Armada], um centro de tortura daquela época, em um museu dedicado à memória dos torturados e da tortura”, diz. Para o psicanalista, o Brasil teve iniciativas como Tortura Nunca Mais e a Comissão da Verdade, mas com efeito político zero. “A Argentina, mal ou bem, botou na prisão perpétua o primeiro escalão do governo militar. O Brasil fez uma anistia geral e varreu tudo para debaixo do tapete. Isso é traumático”, afirma.
Para Birman, a Anistia foi justamente a forma encontrada pelo Brasil para não elaborar o trauma, que retorna em novas manifestações, como a recorrente negação por parte do governo federal de que houve ditadura no Brasil e a violência praticada pelas polícias. Basta ver, diz, a ação que matou 28 pessoas neste mês, na operação mais letal do Rio de Janeiro, com suspeitas de execução pelas mãos do Estado na comunidade do Jacarezinho.
“Os torturadores e colaboradores da ditadura que não foram julgados pela opinião pública ou pela ordem jurídica permaneceram nas sombras e correspondem àquilo que ficou em silêncio nos ditos porões, envergonhados de vir a público logo depois da redemocratização do país. Mas que estavam presentes na sociedade e construíram a mão de obra futura que hoje forma os milicianos no Brasil”, diz Birman.
O professor da UFRJ não vê possibilidade de se fazer uma ruptura com as marcas da ditadura enquanto não houver um pacto contra a desigualdade. Para isso, diz que as elites brasileiras, que nunca abriram mão de seus anéis, terão de perdê-los. Dar um fim à desigualdade “é retirar os anéis das elites para que elas saiam desse lugar onde só ganham, enquanto a miserabilidade cresce”. “Este é o caminho para uma cura estável. Um tratamento estrutural passa pelo combate direto à desigualdade que, inclusive, tem sido pauta de economistas de centro, não necessariamente de esquerdistas”, observa.
Além disso, Birman vê a CPI da Covid como uma das formas de colocar o Brasil ressentido no divã. “Não para ser um sistema irresponsável de acusações, mas no sentido de fazer uma avaliação das responsabilidades do que, como e por que aconteceu”, diz.
Um outro caminho terapêutico, segundo Sérgio de Castro, é indignar-se diariamente com a falta de valor da vida: “É tão impressionante e tão chocante, que todo dia de manhã é bom a gente se assustar com isso”. Mário Corso sublinha a dificuldade de ser essa pessoa chamada Brasil. “Lida com todo esse passado”, diz. Lembrando que, sem revisitar esse passado, o país do futuro não chegará mesmo.
Procurado pela reportagem, o Palácio do Planalto não comentou questões levantadas pelos psicanalistas até o fechamento desta edição.
Nenhum comentário:
Postar um comentário